Imprimir acórdão
Processo n.º 732/12
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 4, do artigo 76.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), do acórdão que indeferiu o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, proferido em 7 de março de 2012.
2. A reclamação para a conferência assume o seguinte teor:
«(...)
Reclamação
Do despacho que indeferiu o requerimento de recurso
I. Fundamentação da decisão reclamada
O Tribunal da Relação de Coimbra entendeu fundamentar a deliberação de rejeição do recurso interposto nos termos seguintes e “pela singela razão do operado ajuizamento da invalidade/nulidade do próprio ato de apresentação a a juízo da respetiva peça incidental – já definitivamente estabilizado por correspondente caso-julgado – logo, obviamente impeditivo da meritória apreciação de qualquer pretenso/suscitado vício de inconstitucionalidade (…), e, consequentemente, ora condicionante da ilegitimidade do id.º sujeito para o exercício de tal arrogado direito ao referido recurso e, em lógica decorrência, ao concernante vedamento, tudo em conformidade com a dimensão normativa resultante da conjugada interpretação daqueles citados arts. 70.º, n.º 1, al. b), 72.º, n.º 2, e 76.º, ns. 1 e 2, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional.”
Cumpre desencriptar a esdrúxula fundamentação do despacho reclamado para que se identifiquem (i) a legitimidade do reclamante, (ii) a tempestividade e admissibilidade do recurso interposto, (iii) a manifesta ilegalidade, por aplicação de norma com dimensão já declarada inconstitucional, do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra denegatório do direito ao recurso judicial ordinário, e, finalmente, (iv) a manifesta ilegalidade, da própria deliberação de não admissão do recurso para o Tribunal Constitucional, denegatória do direito ao recurso de constitucionalidade.
E, desencriptando no ponto subsequente veremos ao (pouco) que se reduzem os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra.
II. Admissibilidade do recurso e fundamentação da reclamação
Pelo acórdão arguido de nulidade de 01.06.2011 o Tribunal da Relação de Coimbra (i) julgou inexistentes os despachos de prorrogação de prazo de interposição de recurso e de resposta a recurso, proferidos em 1.ª instância e transitados em julgado, e (i) rejeitou por consequente extemporaneidade o recurso apresentado; cf. fls. 4726 a 4732.
Pelo acórdão recorrido de 30.11.2011 o Tribunal da Relação de Coimbra declarou o “irreconhecimento da invalidade jurídica – nulidade – do acórdão desta Relação, exarado na peça de fls. 4726/4732”, arguido nulo; cf. fls. 1 a 7 e 105 do acórdão.
Para tanto a Relação de Coimbra aplicou as normas jurídicas recorridas dos artigos 414.º, nº 3 e 420º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal, ambas na dimensão que prevê (i) a possibilidade de destruição, pelo tribunal superior, de efeitos jurídicos anteriormente produzidos por uma decisão não impugnada de primeira instância, que declarou prorrogado o prazo em curso para interposição de recurso pelo arguido em processo penal, e (ii) nomeadamente que o tribunal possa declarar inexistente decisão transitada em julgado.
Pelo acórdão agora reclamado de 07.03.2012, o Tribunal da Relação de Coimbra, rejeitou o recurso de constitucionalidade, fazendo decorrer a ilegitimidade do recorrente da declarada estabilização de sentença de primeira instância. Estabilização operada por decisão do próprio Tribunal da Relação de Coimbra de 01.06.2011, que declarou inexistente o despacho que prorrogou o prazo para interposição de recurso em 1.ª instância.
Pelas sucessivas deliberações o Tribunal da Relação de Coimbra:
- elimina o grau de recurso jurisdicional, por aplicação de normas do Código de Processo Penal com dimensão já declarada inconstitucional;
- elimina o grau de recurso constitucional, quanto à questão da inconstitucionalidade das normas que fundamentaram a eliminação do recurso jurisdicional;
- precludindo concatenadamente todos os graus de recurso.
Este efeito de preclusão de todos os graus de recurso – jurisdicionais e constitucional - não pode ser sindicável, como pretende [numa quadratura iluminista, mas imprópria de um Estado de Direito] o Tribunal da Relação de Lisboa.
Demais quando, como alegado, a inconstitucionalidade das normas impugnadas, nas concretas dimensões normativas aplicadas pelo Tribunal da Relação de Coimbra foi já declarada [pelo menos] nas seguintes decisões do Tribunal Constitucional:
- Acórdão n.º 44/2004, proferido no âmbito do processo 636/2003 (Rel. Cons.ª Maria Fernanda Palma);
- Acórdão n.º 39/2004, proferido no âmbito do processo 124/03 (Rel. Cons. Paulo Mota Pinto)
- Acórdão n.º 722/2004, proferido no âmbito do processo 435/03 (Rel. Cons. Benjamin Rodrigues)
- Acórdão n.º 103/2006, proferido no âmbito do processo 53/05 (Rel. Cons. Paulo Mota Pinto).
Percebendo-se mal que a Relação de Coimbra insista no erro da aplicação de normas inconstitucionais com preclusão das garantias de defesa em processo criminal.
E não se podendo perceber que a Relação de Coimbra se permita excluir a sindicância constitucional dos normativos mal aplicados nas decisões que proferiu.
Afirma-se por referência às normas concretamente invocadas para fundamentarem a deliberação de não admissão do recurso pelo Tribunal da Relação de Coimbra e que são as dos artigos 70.º, n.º 1, al. b), 72.º, n.º 2, e 76.º, ns. 1 e 2 da LOFPTC.
Dispõe o artigo 70.º, n.º 1, al. b) que cabe recurso das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Ora,
O Tribunal da Relação de Coimbra aplicou as normas dos artigos 414.º, n.º 3 e 420.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal, pelo acórdão de 01.06.2011, de fls. 4726 a 4732.
O reclamante arguiu a nulidade do acórdão pela peça de fls. 4751 a 4774.
O Tribunal da Relação de Coimbra indeferiu a arguição de nulidade pelo acórdão de 30.11.2011, de fls. 4868 a 4977.
Estão reunidos os pressupostos de que depende o cabimento do recurso para a Secção do Tribunal Constitucional.
Dispõe o artigo 72.º, n.º 2, que os recursos só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
Ora, como visto
O reclamante arguiu a nulidade do acórdão pela peça de fls. 4751 a 4774.
E o Tribunal da Relação de Coimbra conheceu dela efetivamente pelo acórdão que indeferiu a arguição de nulidade de 30.11.2011, de fls. 4868 a 4977.
Pelo que,
Estão reunidos todos os pressupostos de que depende a legitimidade do reclamante para interpor recurso para a Secção do Tribunal Constitucional.
Finalmente, dispõe o artigo 76.º, ns. 1 e 2 que a decisão sobre a admissibilidade é da competência do tribunal que tiver proferido a decisão recorrida, devendo ser indeferido o recurso quando não satisfaça os requisitos do artigo 75.º-A, quando a decisão não o admita, quando o recurso haja sido interposto fora de prazo, quando o requerente careça de legitimidade ou ainda quando o recurso for manifestamente infundado.
Ora,
Do leque de causa de indeferimento o Tribunal da Relação de Coimbra referiu apenas a da falta de legitimidade.
A legitimidade do reclamante ficou demonstrada no ponto anterior.
E o recurso para o Tribunal Constitucional foi apresentado em prazo, e com cumprimento das obrigações de forma e de fundamentação no artigo 75.º-A da LOFPTC, como resulta documentado
(…)
O despacho reclamado do Tribunal da Relação de Coimbra, que não admitiu o recurso é manifestamente ilegal, impondo-se a sua revogação.
(…)›
3. Na sequência de decisão condenatória proferida em primeira instância, o ora reclamante obteve, em despacho com data de outubro de 2010 (fls. 4243), prorrogação excecional do prazo para a interposição de recurso na segunda instância, despacho esse que transitou em julgado. Em 9 de novembro de 2011, o reclamante interpôs recurso junto do Tribunal da Relação de Coimbra, o qual, em acórdão com data de 1 de junho de 2011, julgou inexistente o despacho de prorrogação de prazo de interposição de recurso e de resposta a recurso, proferidos em primeira instância e rejeitou, por extemporaneidade, o recurso interposto.
Inconformado, o reclamante arguiu, em requerimento que deu entrada em 9 de junho de 2011, a nulidade do mencionado acórdão, produzindo, para o efeito, as seguintes conclusões:
‹(…)
I. O acórdão recorrido, ao declarar a inexistência do despacho judicial transitado de fls. 4243, tomou conhecimento de questão que não podia conhecer.
II. Fazendo-o violou a força de trânsito em julgado intraprocessualmente definitivamente fixada quanto ao prazo para exercício do direito de recurso.
III. O acórdão recorrido procedeu à aplicação das normas dos artigos 414.º/3 e 420º/1/b) do CPP na interpretação segundo a qual é permitida a destruição, pelo tribunal superior, de efeitos anteriormente produzidos por uma decisão não impugnada da primeira instância, dimensão já declarada inconstitucional, por violação dos princípios da segurança jurídica, da confiança e das garantias de defesa consagrados nos artigos 2.º e 32.º, n.º 1, da Constituição.
IV. O acórdão recorrido é nulo por violação das regras contidas nos artigos 668º/1/d) do CPC, ex vi artigo 4.º do CPP, e 204.º da Constituição da República Portuguesa.
V. Vício que expressamente se argui, devendo o mesmo ser conhecido e declarado com prosseguimento do processo.
(…)›
Instado a pronunciar-se sobre a referida nulidade, o Tribunal da Relação de Coimbra, em acórdão com data de 30 de novembro de 2011, determinou o seguinte:
‹(…)
2 – Consequentemente, em razão de tão categóricos ditames legais, mormente da dimensão normativa decorrente do cruzamento e correlacionamento do preceituado no n.º 1 do art.º 150.º e no art.º 138.º-A, do C. P. Civil, com o firmado na atual versão dos arts. 1.º, al. a) e 2.º, da Portaria n.º 114/2008, de 06/02, claríssima e inequivocamente excludente – a contrario sensu – da tramitação por meios eletrónicos dos atos processuais escritos a realizar no âmbito do processo criminal/contraordenacional (ressalvando-se apenas, desde 12 de abril de 2010 – por efeito da estatuição do art.º 7.º da Portaria n.º 195-A/2010, 08/04 -, os que devam ser praticados nos tribunais de execução de penas), o ato de apresentação, por tal meio – correio-eletrónico simples -, pelo id.º sujeito, do seu enunciado incidente de arguição de nulidade, porque contrário a lei expressa, haver-se-á que considerar inexoravelmente nulo, e, como tal, juridicamente inválido, por força dos comandos normativos ínsitos nos arts. 294.º/295.º e 286.º, do Código Civil (de aplicação geral – em qualquer jurisdição).
(…)
Porém, ainda que outro virtual entendimento – sem qualquer suporte legal – porventura se ousasse, e independentemente da despropositada convocação do art.º 668.º, n.º 1, al. d), do C.P. Civil, cujo equivalente normativo se encontra expressamente prevenido no art.º 379.º, n.º 1, al. c), do C. P. Penal (!), sempre se imporia o irreconhecimento da suscitada invalidade do dito aresto, posto que, pelo respetivo conteúdo, o pertinente órgão colegial, realizando o poder-dever estabelecido no n.º 3 do art.º 414.º do CPP, legitimamente valorou a conduta do Ex.mo juiz signatário dos despachos de fls. 4.243, 4.670 e 4586 como arbitrária e inadmissivelmente criadora de nova norma/dimensão jurídica atinente à prorrogação – substantivo obviamente significativo de prolongamento/prolongação, estendimento, alargamento, continuação, dilatação, etc., e nunca de adição/soma, como é de presumível entendimento de qualquer indivíduo minimamente conhecedor do idioma português (de Portugal!) – de prazos processuais de recurso e de respetiva resposta, que o competente órgão legislador, Assembleia da República – cujo pensamento qualquer intérprete da lei deverá ter sido sábia, expressa e adequadamente consagrado nos precisos dizeres do respetivo texto, como postulado pelos ns. 2 e 3 do art.º 9.º do Código Civil -, presumivelmente não quis introduzir no ordenamento jurídico nacional – concretamente no n.º 6 do art.º 107.º do Código de Processo Penal, já que, em função da própria consignação (pela A.R), com força de lei, da permissão, em casos de especial complexidade processual, de prorrogação, ou seja, de prolongamento, estendimento, alargamento, até ao limite máximo de 30 (trinta) dias dos prazos gerais de 20 (vinte dias) estabelecidos no ns. 1 e 3 do art.º 411.º do mesmo compêndio legal, com incontornável exclusão do especial de 30 (trinta) dias definido no n.º 4 deste mesmo dispositivo, logicamente se imporá inescapavelmente inteligir que em caso algum quis permitir o alargamento de qualquer prazo de recurso para além de tal barreira de 30 (trinta) dias – e, como tal, juridicamente inexistente e, logo, de nenhum efeito jurídico, na medida em que, invadindo a esfera de correspetiva competência da Assembleia da República, os prolongou para além de tal limite legal máximo de 30 (trinta) dias.
(…)›
Seguiu-se, da parte do reclamante, a interposição de recurso de constitucionalidade, em requerimento que deu entrada em 15 de dezembro de 2011. O recurso foi interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, tendo por objeto os artigos 414.º, n.º 3 e 420.º, n.º1, alínea b), do CPP, ambos na dimensão que prevê “a possibilidade de destruição, pelo tribunal superior, de efeitos jurídicos anteriormente produzidos por uma decisão não impugnada de primeira instância, que declarou prorrogado o prazo em curso para interposição de recurso pelo arguido em processo penal, e (ii) nomeadamente que o tribunal possa declarar inexistente decisão transitada em julgado.”
Em acórdão com data 7 de março de 2012, o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu não admitir o recurso de constitucionalidade interposto pelo reclamante, “pela singela razão do operado ajuizamento da invalidade/nulidade do próprio ato de apresentação a juízo da respetiva peça incidental – já definitivamente estabilizado por correspondente caso-julgado – logo, obviamente impeditivo da meritória apreciação de qualquer pretenso/suscitado vício de inconstitucionalidade (…), e, consequentemente, ora condicionante da ilegitimidade do id.º sujeito para o exercício de tal arrogado direito ao referido recurso e, em lógica decorrência, ao concernante vedamento, tudo em conformidade com a dimensão normativa resultante da conjugada interpretação daqueles citados arts. 70.º, n.º 1, al. b), 72.º, n.º 2, e 76.º, ns. 1 e 2, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional.
Deste acórdão interpôs o reclamante a reclamação que agora se aprecia.
4. Notificado para o efeito, o Ministério Público respondeu à reclamação, pugnando pelo seu deferimento, nos termos que de seguida se transcrevem:
«(...)
1. Nos presentes autos, o arguido, A., veio reclamar do despacho de não admissão de recurso, proferido pelo Ilustre Desembargador do Tribunal da Relação de Coimbra (cfr. fls. 7-14 dos autos).
2. Anteriormente, por Acórdão de 1 de junho de 2011 (cfr fls. 35-38 dos autos), o mesmo Tribunal superior julgou inexistentes os despachos de prorrogação de prazo de interposição de recurso e de resposta a recurso, proferidos em 1ª instância e transitados em julgado, pelo que rejeitou o recurso apresentado, por extemporaneidade.
3. Ora, o digníssimo magistrado judicial de 1ª instância, do Juízo de Instância Criminal de Albergaria-A-Velha (comarca do Baixo Vouga), por despacho de 18 de outubro de 2010, tinha entendido (cfr. fls. 126 dos autos) (destaques do signatário):
“Considerando o número de arguidos envolvidos nos presentes autos, a matéria em causa e bem assim a densidade dos autos, compostos [de] 17 volumes, entendemos que será de deferir a prorrogação do prazo para interposição do recurso nos exatos termos requeridos.
Em face do exposto, defere-se a requerida prorrogação do prazo para interposição de recurso, pelo período de vinte dias, de harmonia com o disposto no artigo 107º, nº 2 e 6 do Código de Processo Penal”.
4. Posteriormente, em 21 de outubro de 2010 (cfr. fls. 127 dos autos), veio igualmente considerar, o mesmo magistrado, que “o número de arguidos envolvidos, a matéria em causa e a densidade dos autos justificam a declaração de excecional complexidade dos autos, nos termos do artigo 215º, nº 3 do Código de Processo Penal, o que conduziu ao deferimento do requerimento de prorrogação de prazo para interposição de recurso, sendo que tal deferimento de prorrogação de prazo aproveita a todos os arguidos, nos termos do disposto nos artigos 411º, nº 1 e 113º, nº 12, ambos do Código de Processo Penal” (destaques do signatário).
5. Inconformado com o Acórdão de 1 de junho de 2011, do Tribunal da Relação de Coimbra, a que atrás se fez referência, veio o ora reclamante dele arguir nulidades (cfr. fls. 39-50 dos autos).
No entanto, por Acórdão de 30 de novembro de 2011, o Tribunal da Relação de Coimbra declarou o “irreconhecimento da invalidade jurídica – nulidade” do referido Acórdão.
6. O arguido interpôs, então, recurso para este Tribunal Constitucional (cfr. fls. 107 verso-109 dos autos).
Tal recurso foi, porém, rejeitado, por novo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, agora de 7 de março de 2012 (cfr. fls. 110 verso-116 dos autos).
É deste último acórdão, que vem interposta a presente reclamação por não admissão de recurso.
7. Ora, julga-se que o reclamante tem inteira razão na sua argumentação.
Tem sido, com efeito, jurisprudência reiterada deste Tribunal Constitucional, ainda recentemente confirmada pelo Acórdão 3/13, de 9 de janeiro de 2013, proferido em recurso proveniente justamente do Tribunal da Relação de Coimbra, “julgar inconstitucional, por violação dos princípios da segurança jurídica e da tutela da confiança consagrados no artigo 2.º da Constituição e das garantias de defesa em processo penal consagradas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 107.º, n.º 6, conjugada com as normas do artigo 411.º,n.ºs 1, 2, 3 e 4, todas do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de que um tribunal superior pode julgar extemporâneo um recurso interposto nos termos de prazo fixado por despacho anterior não recorrido”.
8. Pelo exposto, crê-se que a presente reclamação deverá merecer deferimento por parte deste Tribunal Constitucional.
II. Fundamentação
5. O recurso de constitucionalidade cuja decisão de não admissão, proferida pelo tribunal recorrido, agora se aprecia, foi interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, e tem por objeto as questões de constitucionalidade introduzidas pelo reclamante no respetivo requerimento de arguição de nulidade. No acórdão proferido em 30 de novembro de 2011 pelo Tribunal da Relação de Coimbra, este entendeu não admitir o recurso de constitucionalidade em virtude de o “operado ajuizamento da invalidade/nulidade do próprio ato de apresentação a juízo da respetiva peça incidental” já se encontrar “definitivamente estabilizado por correspondente caso-julgado”, o que se predica “impeditivo da meritória apreciação de qualquer pretenso/suscitado vício de inconstitucionalidade.”
Não lhe assiste razão. Vejamos. O recurso de constitucionalidade vertente convoca um conjunto de requisitos processuais: exige-se, com efeito, que o recorrente haja esgotado os recursos ordinários tolerados pela decisão recorrida, e que haja suscitado tempestiva e adequadamente uma questão de constitucionalidade normativa, incidente, pois, sobre normas jurídicas que tenham constituído ratio decidendi daquela decisão.
Ora, o recurso de constitucionalidade não admitido pelo tribunal recorrido incide sobre as decisões produzidas nos acórdãos de 1 de junho de 2011 e de 30 de novembro de 2011. As normas ou interpretações normativas que o ora reclamante predica inconstitucionais constituíram, efetivamente, fundamento jurídico determinante ou ratio decidindi daquele primeiro aresto. Recorde-se, com efeito, que nesse acórdão, o Tribunal da Relação de Coimbra julgou inexistente o despacho, proferido pelo tribunal de primeira instância, de prorrogação do prazo de interposição de recurso (entretanto transitado em julgado), com fundamento no facto de o mesmo se fundar numa interpretação ilegal dos prazos constantes do artigo 411.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, invadindo desse jeito “a esfera de correspetiva competência da Assembleia da República”. Em virtude disso, o tribunal recorrido recusou o recurso interposto por extemporaneidade. Percebe-se, portanto, que o sentido plasmado em tal acórdão – de desatenção ao despacho proferido pela primeira instância e não impugnado, e de correspondente não admissão do recurso – resultou do entendimento normativo extraído, pelo Tribunal da Relação, dos artigos 411.º, n.º 3, 414.º, n.º 3, e 420.º, n.º 1, alínea b), do CPP, e de que é precisamente sobre esse entendimento que recai a censura constitucional veiculada pelo reclamante.
Depois, é patente que a questão de constitucionalidade levantada pelo reclamante assume conteúdo normativo. De facto, ele logra extrair da conjugação daqueles dois preceitos uma interpretação normativa dotada de suficiente generalidade e abstração e que, nessa medida, se afigura desintegrável das particularidades do processo-base para (alegadamente), ela mesma, assumir a imputação do vício de constitucionalidade assacado.
Finalmente, se é certo, por um lado, que o próprio reclamante admite ter suscitado o incidente de inconstitucionalidade no requerimento de arguição de nulidade, leia-se, num incidente pós-decisório, também é verdade, por outro, que, in casu, soçobram boas razões para considerar que não lhe seria exigível outro comportamento processual. Analisemos cada uma destas proposições.
O reclamante suscitou a questão de constitucionalidade aquando da arguição de nulidade do acórdão de 1 de junho de 2011. Talqualmente se lê na conclusão III daquele requerimento, “o acórdão recorrido procedeu à aplicação das normas dos artigos 414.º/3 e 420º/1/b) do CPP na interpretação segundo a qual é permitida a destruição, pelo tribunal superior, de efeitos anteriormente produzidos por uma decisão não impugnada da primeira instância, dimensão já declarada inconstitucional, por violação dos princípios da segurança jurídica, da confiança e das garantias de defesa consagrados nos artigos 2.º e 32.º, n.º 1, da Constituição.”
Sublinhe-se não obstante que, entendido o requisito da suscitação prévia da questão de constitucionalidade num sentido não puramente formal, antes funcional, considera-se que deve tal invocação ter lugar “em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão” (cfr. Acórdão n.º 352/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Assim sendo, é tida, via de regra, por extemporânea a arguição ocorrida em incidentes pós-decisórios, como, por exemplo, o requerimento de arguição de nulidade da decisão. Sucede, porém, que a jurisprudência constitucional consolidada vem admitindo algumas exceções a esta regra, constituindo uma delas as chamadas “decisões-surpresa”, as quais têm lugar quando a aplicação de uma norma pelo tribunal “a quo” ou a interpretação dada no processo aplicativo à mesma norma por aquele tribunal, assuma um caráter objetivamente insólito, inesperado ou imprevisível.
Cumpre apurar, portanto, se no caso vertente se encontram verificados os requisitos que permitem qualificar a decisão do tribunal recorrido como uma “decisão-surpresa”. Exigindo a jurisprudência constitucional consolidada nesta matéria que o recorrente “formule um juízo de prognose relativo às possíveis alternativas que subjazem à referida aplicação ou interpretação” (cfr. Acórdão n.º 479/89, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), tudo está em saber se, no caso vertente, seria exigível ao recorrente que, antecipando o entendimento extraído pela Relação de Coimbra dos artigos 414.º, n.º 3 e 420.º, n.º 1, alínea b), do CPP, houvesse suscitado o incidente de inconstitucionalidade no próprio requerimento de recurso para aquele Tribunal.
Considera-se que tal antecipação não lhe era exigível, atendendo, sobretudo, à circunstância de a interpretação normativa cuja constitucionalidade é censurada pelo recorrente, mas que foi veiculada pelo tribunal recorrido, já por duas vezes ter sido julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional (cfr. os Acórdãos n.ºs 44/2004 e 103/2006, ambos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Tal facto, não precludindo em absoluto a sua aplicação – dado o efeito inter partes daqueles juízos (cfr. artigo 80.º, n.º 1, da LTC) – torna consideravelmente improvável a reiteração de tal entendimento pelos tribunais ordinários, tanto mais que da decisão destes que aplique norma anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional cabe recurso obrigatório para o Ministério Público (cfr. o artigo 280.º, n.º 5, da CRP, e o artigo 72.º, n.º 3, da LTC).
Assim sendo, entende-se que o acórdão proferido pelo tribunal recorrido, que não admitiu o recurso de constitucionalidade interposto, é desprovido de fundamento, visto que tal recurso dá preenchimento cabal àqueles que são os pressupostos processuais inferidos dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC.
III. Decisão
6. Nos termos supra expostos, o Tribunal Constitucional decide dar provimento à reclamação apresentada, e, por conseguinte, admitir o recurso de constitucionalidade interposto.
Sem custas.
Lisboa, 29 de janeiro de 2013.- José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.