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Processo nº 606/01
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, proferiu o Relator a seguinte DECISÃO SUMÁRIA:
“1. M... e marido, A ..., C... e marido, H... e marido, D... e marido, R... e marido, B... e marido, J... e mulher, S... e mulher, todos com os sinais identificadores dos autos, vieram interpor recurso para este Tribunal Constitucional, ‘ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, b) e nº 2, da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, na sua actual redacção’, do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24 de Abril de 2001, que negou provimento ao recurso de apelação por eles interposto, ‘confirmando-se a Sentença apelada’, ou seja, a sentença da primeira instância que julgara improcedente a acção por eles intentada e absolvido o R., ‘declarando-se o Município de Mafra proprietário dos prédios em causa, por aquisição do respectivo direito por usucapião e condenando-se os A.A. a reconhecerem tal direito’.
Como o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade nada dizia, para além do acima transcrito quanto à invocação da norma da Lei nº
28/82, foram os recorrentes convidados pelo Relator neste Tribunal a darem cumprimento ao disposto no artigo 75º-A, da mesma Lei nº 28/82, aditado pelo artigo 2º, da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro.
Vieram responder ao convite dizendo que as ‘normas cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie são as normas que se extraem do artigo 62°, nºs
1 e 2, da Constituição da República’ e que, no ‘caso em apreço’, o Tribunal a quo ‘interpretou aquele artigo no sentido de que é constitucional e legal a aquisição, por usucapião, por parte da Câmara Municipal de Mafra da propriedade dos lotes de terreno dos autos com base numa factualidade artificialmente criada por esta, por forma a contornar a obrigatoriedade de instauração de processo de expropriação por utilidade pública, e considerou igualmente constitucional e legal a ocupação que esta Câmara Municipal, sem autorização de ninguém, fez dos mesmos lotes de terreno, sem que para o efeito tivesse desencadeado um processo de expropriação por utilidade pública’.
E mais à frente:
‘Ou seja, o Tribunal ‘a quo’ extraiu do artigo 62°, nºs 1 e 2, da Constituição da República uma norma segundo a qual a Câmara Municipal de Mafra pode impedir que os legítimos proprietários registados de dois lotes de terreno situados na
área do seu Município utilizem os mesmos, porque os classificou como ‘espaços livres’ e, depois, com o fundamento na realização de alguns actos de limpeza, regularização de terrenos, etc, pode adquirir a propriedade desses mesmos lotes por usucapião e sem o recurso à expropriação por utilidade pública, alegando que os referidos proprietários ali não exercem quaisquer actos de posse. Actos estes que a Câmara, ao abrigo dos seus poderes de autoridade, impediu.
Ora, salvo o devido respeito, a norma assim extraída pelo Tribunal ‘a quo’ é inconstitucional, por violar o citado artigo 62°, nºs 1 e 2, da Constituição da República acima citado, na medida em que constitui uma forma hábil de contornar a obrigatoriedade constitucional e legal de respeito pela propriedade privada e sem o recurso ao mecanismo da expropriação’.
Para concluírem como se segue:
‘Assim, a norma que o Tribunal ‘a quo’ extraiu do citado artigo 62°, nºs 1 e 2, da Lei Fundamental, no sentido de que a Câmara Municipal de Mafra podia usurpar o direito de propriedade dos Recorrentes sobre os lotes de terreno, ocupá-lo e ali realizar obras sem a autorização daqueles e sem que a mesma Câmara tivesse qualquer direito de propriedade legitimamente reconhecido sobre esses lotes ou sem que tivesse desencadeado o processo de expropriação é claramente inconstitucional, por violação dos citados preceitos’.
2. Do que acaba de ficar transcrito resulta à evidência que os recorrentes nunca identificaram uma qualquer norma infraconstitucional (nem sequer do Código das Expropriações, citado apenas qua tale) como objecto do recurso de constitucionalidade, só reportando-se ao artigo 62º, nºs 1 e 2, da Constituição ou às ‘normas que se extraem’ desse artigo ou ainda a interpretação que o tribunal a quo dele fez ‘no sentido de que é constitucional e legal a aquisição, por usucapião, por parte da Câmara Municipal de Mafra (...)’.
Ora, uma disposição da Lei Fundamental não pode constituir objecto idóneo de um recurso de constitucionalidade, só podendo ser – a par de princípio ou princípios constitucionais – parâmetro de (in)constitucionalidade do direito infraconstitucional. São as normas deste direito que as partes interessadas têm o ónus de identificar para controlo da constitucionalidade.
Como os recorrentes não o fizeram, tem de admitir-se que o acórdão recorrido não aplicou norma de direito infraconstitucional arguida de inconstitucionalidade durante o processo, falhando, assim, um pressuposto processual específico do respectivo recurso.
Com o que não pode tomar-se conhecimento do presente recurso.
3. Termos em que, DECIDINDO, não tomo conhecimento do recurso e condeno os recorrentes nas custas, com a taxa de justiça fixada em seis unidades de conta”.
B. Dessa DECISÃO vieram os recorrentes, “ao abrigo78º-A, no 3, da Lei do Orgânica do Tribunal Constitucional, na sua redacção actual, RECLAMAR PARA A CONFERÊNCIA”, invocando que (“certamente por não se terem expressado adequadamente, não se fizeram entender”) o que “está em causa neste recurso é apenas e só a questão de saber se o Tribunal a quo podia, face ao disposto no artigo 62°, nºs 1 e 2, da Constituição, aplicar as normas dos artigos 334º,
1287° e 1296° do Código Civil nos termos em que o fez, atendendo à factualidade considerada provada no processo” .
E depois acrescentam:
“3. Da leitura que os Recorrentes fazem da Constituição, naquele caso concreto a Câmara Municipal de Mafra não podia adquirir os lotes de terrenos dos autos por usucapião, antes devendo lançar mão do mecanismo da expropriação por utilidade pública.
O Tribunal a quo, extraindo do artigo 62° da Constituição uma norma que o mesmo não comporta, como os Recorrentes fizeram notar no seu requerimento anterior, considerou que uma tal aquisição era constitucional. A folhas 13 do douto Acórdão recorrido pode ler-se:
‘Quanto à conclusão 20ª. O que está em causa, em sede de reconvenção é a aquisição pelo R./Reconvinte do direito de propriedade sobre os prédios dos autos por usucapião e os respectivos pressupostos (art°. 1287° e 1296° do C.C.) e não uma expropriação.
Deste modo não se vislumbra qualquer violação à Constituição da República Portuguesa, designadamente ao disposto nos nºs 1 e 2 do seu art° 62° invocado pelos Recorrentes’.
4. Assim e salvo o devido respeito, desde a fase das alegações junto do Tribunal da Relação de Lisboa que se encontra perfeitamente definido o âmbito do recurso de constitucionalidade que os Recorrentes trouxeram perante este Tribunal Constitucional. Não é, por isso, exacta a afirmação que se faz no douto despacho reclamado segundo a qual os Recorrentes ‘nunca identificaram uma qualquer norma infraconstitucional’. Bem ao contrário, as normas infraconstitucionais que os Recorrentes entendem violar a Constituição neste caso concreto encontram-se bem identificadas desde aquela fase das alegações.
Daí que os Recorrentes tenham entendido o convite que lhes foi efectuado no sentido de procurar explanar melhor em que medida é que, na óptica dos Recorrentes, os artigos 3340 , 1287° e 1296° do Código Civil poderiam ofender o artigo 62°, nºs 1 e 2, da Constituição e em que medida é que o Tribunal a quo terá considerado uma tal aquisição constitucional, visto que os demais contornos da questão já se encontravam delimitados”
Para concluírem requerendo “prosseguimento do processo com vista à apreciação da
(in)constitucionalidade nos termos supra indicados”.
C. A recorrida Câmara Municipal de Mafra não respondeu à reclamação.
D. Tudo visto, cumpre decidir.
O que fica transcrito da DECISÃO reclamada – e nomeadamente a transcrição feita das peças processuais apresentadas pelos reclamantes – mostra que o aí decidido não sai minimamente beliscado com a presente reclamação.
Na verdade, não se revela ter sido devidamente identificado o objecto do recurso de constitucionalidade, através da indicação das normas do ordenamento jurídico infraconstitucional que se pretende ver questionadas, numa óptica jurídico-constitucional, radicando toda a argumentação à volta do artigo 62º, nºs 1 e 2, da Lei Fundamental.
Só agora, por via da reclamação, adiantaram os reclamantes as normas do Código Civil que identificam, trazendo, aliás, à colação um trecho do acórdão recorrido e não qualquer peça processual que tivessem apresentado com a suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa, mas não é este o momento processual adequado para o fazer (e a falta de precisão dos recorrentes com a interposição do recurso de constitucionalidade levou até que na DECISÃO reclamada se tivesse pensado que tais normas poderiam ser do Código das Expropriações e não do Código Civil).
Com o que não pode merecer acolhimento a presente reclamação.
E. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se a reclamação e confirma-se a decisão de não tomar conhecimento do recurso, condenando-se solidariamente os reclamantes nas custas, com a taxa de justiça fixada em quinze unidades de conta.
Lisboa, 5 de Fevereiro de 2002 Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa