Imprimir acórdão
Procº nº: 683/2001.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Em 10 de Dezembro de 2001 proferiu o relator decisão sumária do seguinte teor:-
“1. No processo instaurado para reforma de autos desaparecidos, pendente pelo Supremo Tribunal de Justiça, surpreende-se que:-
- por acórdão proferido pelo tribunal colectivo de Viana do Castelo, o arguido M... foi condenado na pena única de três anos e nove meses de prisão pela autoria de factos que foram subsumidos ao cometimento de um crime de atentado ao pudor agravado e de um crime de maus tratos ou sobrecarga de menor, previstos e puníveis pelos artigos 205º, nº 2, e 208°, e 153°, nº 1, alínea a), ambos da primitiva redacção do Código Penal;
- que desse acórdão recorreu o arguido para o Tribunal da Relação do Porto, o qual, por acórdão de 2 de Fevereiro de 2000, negou provimento ao recurso;
- deste último aresto recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo, nas alegações que então formulou, concluído, inter alia:
‘...................................................................................................................................................................................................................................................................
3 - Não se aplica em sede de direito penal as regras do caso julgado Formal do processo civil, sob pena deste constituir grave diminuição dos direitos processuais do arguido e condicionar o princípio da verdade material que é escopo fundamental do processo penal.
....................................................................................................................................................................................................................................................................
5 - A decisão no despacho de pronúncia sobre questões prévias ou incidentais a que se refere o art. 308, n° 3 do C.P.P., não forma caso julgado formal, podendo o juiz de julgamento tomar delas conhecimento e decidir de modo diferente.
....................................................................................................................................................................................................................................................................
8 - Mesmo que se entenda haver Caso Julgado Formal, o tribunal de Recurso sempre teria de analisar e decidir sobre a questão da legitimidade ou não do M.P., para aferir qual o regime mais favorável ao arguido - CP 82 ou CP 95.
9 - O crime de natureza sexual de cuja prática o arguido foi condenado, no
âmbito do CP de 95 tem natureza semi pública e para a instauração de respectivo procedimento criminal é necessária a apresentação de queixa pelo seu titular ou representante legal.
....................................................................................................................................................................................................................................................................
11 - Os requisitos de procedibilidade, como pressupostos processuais devem verificar-se no momento em que é instaurado o procedimento criminal, ou seja, no caso sub judice em 3.04.97, quando já se encontrava em vigor o CP de 95.
12 - Em matéria processual, o princípio é a aplicação imediata da lei vigente - tempus regit actum -, ou seja o CP de 95. E, se o principio da aplicação imediata se aplica aos processos já instaurados, - neste sentido Ac. STJ de
11.02.98 CJ ano VI tomo I, por maioria de razão se aplica aos processos a instaurar .
14- Quando o presente processo foi instaurado a menor já tem 13 anos, e encontra-se em vigor o CP. de 95 que no seu art. 178º no ° 1 faz depender de queixa do representante legal ( art. 113º, nº 3) o procedimento criminal pelo Crime previsto nos art. 172° - o que se não verificou in casu, violando 0 princípio da legalidade do processo (art. 2° do CPP).
15 - Ainda que se entenda que no caso se aplica o disposto no art. 178° nº 2, uma vez que é dado como provado que os factos ocorreram até 4/96 e a menor tinha completado 12 anos em 15.01.95, sempre é de considerar que esta disposição não afasta a natureza semi-pública deste crime - cfr. Ac da RL do Porto de 3.12.97. CJ, pag 233.
16 - A função do M.P. . no âmbito do art 178º. n ° 2 é cautelar , devendo aquele
provocar o exercício do direito de queixa pelo respectivo titular ou representante.- Ac. Rel. Porto de 10.02.99, in CJ tomo I ano 1999, que expressamente refere que os crimes sexuais mesmo quando 0 ofendido é menor de 12 anos continuam a ser crimes semi-públicos.
17- No Caso, não foram nunca invocadas especiais razões de interesse público, nem foi provocado o exercício do direito de queixa, pelo respectivo titular.
....................................................................................................................................................................................................................................................................
19- Mesmo que se entenda que o crime pelo qual o arguido foi condenado é público, nos termos do art. 211° do CP 82, operou-se uma sucessão de leis penais no tempo, pelo que nos termos do art. 2º. n ° 4 do CP - instrumento de garantia dos direitos fundamentais consagrados na CRP - há que apurar qual dos regimes é o mais favorável ao arguido em concreto.
20 - Em abstracto uma lei que transforme um crime público em semi--público é mais favorável ao arguido que a anterior -Ac STJ de 29.01.97 CJ ano V tomo I pag
207.
21 – É-o igualmente em concreto se a queixa nem existiu. Para tanto vale o p. constitucional da obrigatoriedade da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido, expresso no art. 29º, nº 4 da CRP.
22 - Essa lei penal mais favorável é alcançada por vezes também através da lei processual penal quando esta se integra em institutos que desencadeiam a aplicação daquele principio como é o caso do instituto do direito de queixa, condição objectiva de procedibilidade. - no mesmo sentido entre outros Prof. Figueiredo Dias, in obra citada.
23 - O Tribunal não aplicou o regime mais favorável ao arguido pelo que o prosseguimento do presente processo constitui manifesta violação do art. 2º, nº
4 do C.P. e do art. 29° da CRP.
....................................................................................................................................................................................................................................................................
35 - Violou, pois, o acordão recorrido, o art.2º do CPP, o art. 2º nº 4 do CP., e 310° do CPP ,o art. 29° nº 4, art. 32° nº. 2 da Constituição da República Portuguesa, o art. 178º, n.º 1 e 2 do CP. de 1995, bem Como 113° nº 3 e 115º do CPP. E ainda o art. 153° n.º 1 do CP de 1982, 129° do CPP, 374° nº 2 do CPP e
379º, al. a) bem como o art. 50°e51°e 70°e 71°do CP’;
- na alegação escrita produzida pelo arguido no Supremo Tribunal de Justiça, escreveu-se:-
‘................................................................................................................................................................................................................................................................... Assim, uma vez que o crime pelo qual foi o arguido condenado é público no regime de 82 e semi público no regime de 95, faltando um pressuposto processual, como a legitimidade do MP., não poderia o tribunal prosseguir o processo, devendo declarar extinto o procedimento criminal. O Tribunal de Julgamento não aplicou o regime mais favorável. O Tribunal da Relação deveria ter apreciado a questão da falta de queixa, uma vez que é necessário aferir qual o regime mais favorável ao arguido relativamente ao crime de atentado ao pudor - pois na sentença foi decidido ser o regime de 82, de que o recorrente discorda. Ao não aplicar a leis mais favorável, ou seja o CP de 95, a sentença padece de inconstitucionalidade, pois violou o principio constitucional de aplicação da lei mais favorável ao arguido. – 29º, n. ° 4.
...................................................................................................................................................................................................................................................................’
Tendo o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 30 de Maio de 2001, negado provimento ao recurso, e tendo sido indeferido, por acórdão de 3 de Outubro seguinte, um pedido de aclaração dirigido ao primeiro, veio o arguido apresentar nos autos requerimento com o seguinte teor: -
‘ M..., arguido nos autos à margem referenciados, notificado do douto acórdão proferido por esse Venerando Tribunal, dele pretende interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), n. ° 1 do artigo
70° da Lei no 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional). Por esta via, pretende o ora Recorrente ver apreciada e declarada a inconstitucionalidade do artigo 211º, n.º 1, do Código Penal de 1982 e do artigo
178º, n. ° 1 e 2, do Código Penal de 1995, na interpretação que daquelas normas se faz na douta decisão recorrida, por frontal violação dos artigos 18º n. ° 1 e
2 (princípio constitucional da intervenção mínima) e 29°, n. ° 4 (princípio da aplicação da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido), da Constituição da República Portuguesa, na medida em que o Ministério Público actuou como se de verdadeiros crimes públicos se tratassem, apesar do não exercício do direito de queixa pelo respectivo titular e bem como não aplicou, no caso, o regime mais favorável ao arguido. Mais pretende ver apreciada e declarada a inconstitucionalidade do artigo 308º, n. ° 1, do Código de Processo Penal, na interpretação que dele se faz na douta decisão recorrida, por frontal violação dos artigos 18, n. ° 1 e 2 (principio constitucional da intervenção mínima), 29º, n. ° 1 e 4 (princípios da legalidade e da aplicação da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido) e 32º, n ° 5
(principio da estrutura acusatória do processo penal), da Constituição da República Portuguesa, na medida em que o Juiz de Instrução considerou verificados todos os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena quando na realidade não se verificava, no caso, a legitimidade do Ministério Público para a promoção do processo, sendo certo ser a legitimidade um verdadeiro pressuposto da punição. Estas questões de inconstitucionalidade foram suscitadas em sede de alegações de recurso para o Tribunal da Relação e ainda em sede de motivação do recurso e nas alegações para este Venerando Supremo Tribunal.
.........................................................................................................................................................................................................................................................................’
O recurso interposto pelo transcrito requerimento veio a ser admitido por despacho proferido em 5 de Novembro de 2001 pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça.
2. Porque tal despacho não vincula este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa (cfr. nº 3 do artº 76° da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro) e porque se entende que o recurso não deveria ter sido admitido, elabora-se, ex vi do nº 1 do art° 78°-A da mesma lei, a vertente decisão, por intermédio da qual se não toma conhecimento do objecto desta impugnação.
Na verdade - e independentemente da circunstância de o requerimento de interposição de recurso para este Tribunal não respeitar os requisitos ínsitos nos números 1 e 2 do artº 75°-A, ainda da mesma Lei (note-se que nele nem sequer são indicadas quais as interpretações normativas que foram seguidas pelo aresto intentado impugnar) -, situando-nos, como nos situamos, perante um recurso estribado na alínea b) do nº 1 do artº 70°, também daquele diploma, mister é, por entre o mais, que a «parte» (que, posteriormente, deseja servir-se dessa forma de impugnação) tenha, antecedentemente à prolação da decisão judicial que quer submeter à censura do Tribunal Constitucional, suscitado, de modo claro e processualmente adequado, a questão de desconformidade com a Lei Fundamental por banda de normas ou normas (ou de uma sua qualquer dimensão interpretativa) constantes do ordenamento jurídico infra-constitucional.
E, estando em causa uma dimensão interpretativa, mister é, também, que a
«parte», anteriormente à decisão judicial que impugna perante este órgão de administração de justiça, identifique, de modo preciso e claro, qual seja essa dimensão, por sorte a que, caso este Tribunal a venha a julgar contrária ao Diploma Básico, possa enunciar isso na sua decisão, a fim de que os destinatários dela e os operadores jurídicos fiquem a saber que a norma não pode ser interpretada e aplicada com essa dimensão ou sentido interpretativo (cfr., neste sentido, o Acórdão no 367/94, publicado no 28° Volume dos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 147 e segs.).
Por outro lado, e como sabido é, o vício de incompatibilidade com a Constituição reporta-se, para efeitos de abertura dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade, a normas jurídicas (ou a um seu sentido interpretativo), e não a quaisquer outros actos emanados do poder público, tais como, verbi gratia, as decisões judiciais qua tale consideradas.
Pois bem.
Assente esta perspectiva paramétrica, verifica-se que, no caso sub specie, o ora recorrente não assacou a um qualquer normativo constante do direito infra-constitucional o vício de desconformidade com o Diploma Básico, identicamente o não tendo assacado a uma sua qualquer dimensão interpretativa.
Isso resulta claro das amplas transcrições acima levadas a efeito, das quais se infere, inquestionavelmente, que nunca o ora impugnante sustentou a enfermidade constitucional por parte de uma qualquer norma jurídica (ou de uma sua dimensão interpretativa adoptada pelo Tribunal da Relação do Porto que, aliás, nunca enunciou ou identificou), antes sustentando que a violação da Lei Fundamental fora levada a cabo pelo aresto lavrado naquele Tribunal.
Significa isto, pois, que o vício de desconformidade com a Constituição foi dirigido à própria decisão judicial, não tendo, assim, como alvo, quaisquer normativos (quer alcançados da literalidade dos preceitos onde se inserem, quer de um dado processo interpretativo).
Não se reúne, pois, no caso sub iudicio, a totalidade dos requisitos condicionadores do recurso querido interpor, razão pela qual se não toma conhecimento do objecto da impugnação em apreço.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa justiça em cinco unidades de conta”.
Da transcrita decisão sumária reclamou o arguido M... nos termos do nº 3 do artº 78º-A da Lei nº 28/82, dizendo, em síntese, que suficientemente indicou “qual a dimensão interpretativa das normas a aplicar cuja inconstitucionalidade se pretende ver declarada”, o que resultava das várias peças processuais juntas aos autos, indicando também quais “os normativos infra constitucionais cuja interpretação feita pelos Juizes a quo violou os princípios constitucionais referidos”.
Ouvido sobre a reclamação, o Ex.mo Representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido do seu indeferimento.
Cumpre decidir.
2. É óbvia a improcedência da vertente reclamação.
Na realidade, a decisão sumária sub iudicio fundou-se na circunstância de o ora reclamante não ter assacado a qualquer normativo infra-constitucional (ou a uma sua qualquer dimensão interpretativa) qualquer vício de desconformidade com a Lei Fundamental, antes tendo sustentado que esse ou esses vícios foram cometidos por banda da própria decisão judicial que pretendia impugnar.
E, o que é certo é que o reclamante não logra minimamente, na peça processual ora em apreciação, demonstrar o contrário, sendo certo, por outro lado, que, como resulta das transcrições levadas a efeito na decisão sumária em crise, se torna inquestionável que aquilo em que se baseou a decisão sumária não merece censura (cfr., designadamente, as «conclusões» 23ª e
35ª da motivação do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, e a alegação escrita produzida naquele Alto Tribunal, umas e outra ali transcritas).
3. Termos em que, sem necessidade de ulteriores considerações, se indefere a reclamação, condenando-se o ora impugnante nas custas processuais, fixando em quinze unidades de conta a taxa de justiça.
Lisboa,5 de Fevereiro de 2002 Bravo Serra Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa