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Proc. n.º 388/01 Acórdão nº 577/01
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 281 e seguintes, não se tomou conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A ..., SA., pelos seguintes fundamentos:
“6. Constitui pressuposto processual de qualquer recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – como é o caso do presente recurso – a aplicação, na decisão recorrida, da norma (ou da norma, numa certa interpretação) cuja conformidade constitucional o recorrente questiona. Impõe-se, portanto, saber se a norma do artigo 461º da Reforma Aduaneira, na interpretação apontada pela recorrente na resposta ao despacho de aperfeiçoamento (supra, 5.), foi aplicada na decisão recorrida. Isto é, se tal norma, nessa interpretação, fundou a decisão de rejeição do recurso contencioso de anulação por extemporaneidade, proferida pelo Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo. Se se concluir negativamente, não pode naturalmente tomar-se conhecimento do objecto do presente recurso, por falta de um dos seus pressupostos processuais.
7. O artigo 461º da Reforma Aduaneira (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 46 311, de
27 de Abril de 1965) estava sistematicamente integrado no capítulo II do título IV do livro V dessa Reforma (dedicado aos deveres, direitos e incompatibilidades dos despachantes oficiais) e determinava o seguinte:
«A profissão de despachante oficial regular-se-á, em tudo o que não estiver previsto nesta reforma, pelas disposições da lei geral sobre mandato e prestação de serviços no exercício das profissões liberais». A recorrente pretende a apreciação da conformidade constitucional desta norma numa particular interpretação: a de que a notificação ao despachante oficial de um acto administrativo que sanciona a mora no desalfandegamento de uma mercadoria e que tem natureza transgressional produz efeitos na esfera jurídica do mandante. Cumpre, pois, saber se tal interpretação normativa foi adoptada na decisão recorrida.
8. Ao Tribunal Constitucional não compete, naturalmente, determinar a extensão do mandato conferido pela lei ao despachante oficial, nem verificar se, no caso dos autos, o mandatário excedeu ou não os seus poderes. Na verdade, nos recursos interpostos ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – nos quais se enquadra o presente recurso –, a competência do Tribunal Constitucional cinge-se à apreciação de questões de constitucionalidade normativa, não abrangendo a fixação do sentido da própria norma de direito ordinário nem o apuramento da matéria de facto. Por isso, nunca poderia este Tribunal apreciar se o mandato do despachante está ou não limitado ao despacho de mercadorias, questão que a recorrente também coloca na resposta ao despacho de aperfeiçoamento (supra, 5.) e nas alegações produzidas perante o Supremo Tribunal Administrativo, a fls. 238 e seguintes
(supra, 3.).
9. Será que na decisão recorrida se perfilhou a interpretação normativa acima identificada (supra, 7.) e que está em discussão? A resposta a esta questão é negativa.
É certo que a decisão recorrida considerou que ao despachante oficial devia ser reconhecido o poder de, por conta do mandante, receber as notificações que, no
âmbito do procedimento de dispensa de pagamento da percentagem devida por mercadorias demoradas ou abandonadas, lhe fossem feitas, e que tais notificações, por força do mandato, sempre produziriam efeitos na esfera jurídica do mandante.
É certo também o Supremo Tribunal Administrativo que considerou que a referida percentagem constituía uma sanção pela mora no desalfandegamento. Simplesmente, na decisão recorrida entendeu-se:
– por um lado, que o pedido de dispensa do pagamento da percentagem devida por mercadorias demoradas ou abandonadas, se insere, «obviamente, ainda no despacho de mercadorias»;
– por outro lado, que «a referida percentagem, longe de constituir a contrapartida pelo cometimento de um ilícito de natureza transgressional, como sustenta a recorrente, não é mais do que uma mera sanção processual pela mora no desalfandegamento». Portanto, não é possível sustentar que a interpretação normativa cuja conformidade constitucional a recorrente pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional – e que é, recorde-se, a de que a notificação ao despachante oficial de um acto administrativo que sanciona a mora no desalfandegamento de uma mercadoria e que tem natureza transgressional produz efeitos na esfera jurídica do mandante – tenha sido perfilhada na decisão recorrida. Dito de outro modo, a norma do artigo 461º da Reforma Aduaneira foi aplicada na decisão recorrida numa dimensão diversa daquela que a recorrente pretende que este Tribunal aprecie. Para usar uma expressão paralela à da recorrente, a interpretação adoptada na decisão recorrida poderia porventura condensar-se no seguinte: a notificação ao despachante oficial de um acto administrativo que indefere o pedido de dispensa do pagamento da percentagem devida por mercadorias demoradas ou abandonadas – inserindo-se ainda no despacho de mercadorias e tendo a natureza de mera sanção processual – produz efeitos na esfera jurídica do mandante. Todavia, a conformidade constitucional de tal norma, nesta última interpretação, não foi questionada pela recorrente durante o processo nem foi submetida à apreciação do Tribunal Constitucional. Ora, ao Tribunal Constitucional cabe apenas considerar o objecto do recurso, tal como delimitado pelo recorrente, verificando, antes de mais, se estão preenchidos os pressupostos processuais de um recurso com tal objecto. No caso concreto, a norma que se pretende submeter ao julgamento do Tribunal Constitucional não foi aplicada na decisão recorrida, com o sentido que a recorrente considera inconstitucional. Como tal, não pode conhecer-se do objecto do recurso.”
2. Inconformada com a referida decisão sumária, A ..., SA. dela veio reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 299 e seguintes). Alega, em síntese, o seguinte:
a) O acórdão recorrido clarifica que “[a] questão a decidir é, pois, a de saber se a notificação efectuada na pessoa do despachante oficial é ou não relevante para efeitos da determinação do «dies a quo» do recurso contencioso”; b) O acórdão recorrido caracterizou a percentagem de 10% sobre fazendas demoradas/abandonadas como uma sanção processual pela mora no desalfandegamento; c) Não se cuida se a referida percentagem configura sanção transgressional ou meramente processual, importando apenas que o acórdão recorrido – e é este o entendimento que viola a Constituição e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem – dá por integrada, no âmbito do mandato conferido ao despachante, a capacidade para receber toda a sorte de notificações, produzindo-se logo os respectivos efeitos na esfera do mandante; d) A reclamante concorda que ao Tribunal Constitucional não compete determinar a extensão do mandato conferido pela lei ao despachante oficial, nem verificar se, no caso dos autos, o mandatário excedeu ou não os seus poderes; e) Ao contrário do que se sustenta na decisão sumária, a interpretação normativa aplicada na decisão recorrida é a mesma cuja conformidade constitucional a reclamante questiona e diz respeito ao âmbito do mandato do despachante oficial no que concerne aos efeitos da sua notificação para determinação de prazos de recurso e direitos de defesa.
Cumpre apreciar.
II
3. Na decisão sumária reclamada entendeu-se que a interpretação normativa cuja conformidade constitucional a recorrente questionava não havia sido aplicada na decisão recorrida e que, como tal, não era possível conhecer do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A ..., SA..
Na verdade, da leitura da resposta da ora reclamante ao despacho de aperfeiçoamento de fls. 277 e v.º resultava (vide n.º 4 dessa resposta, a fls.
278-279) que se pretendia a apreciação, pelo Tribunal Constitucional, da norma do artigo 461º da Reforma Aduaneira numa particular interpretação: a de que a notificação ao despachante oficial de um acto administrativo que sanciona a mora no desalfandegamento de uma mercadoria e que tem natureza transgressional produz efeitos na esfera jurídica do mandante.
Ora, essa norma, nessa particular interpretação, não havia sido acolhida na decisão recorrida, na medida em que, como se explicou na decisão sumária, o tribunal recorrido entendeu, por um lado, que o pedido de dispensa do pagamento da percentagem devida por mercadorias demoradas ou abandonadas ainda se inseria no despacho de mercadorias e, por outro lado, que essa percentagem constituía mera sanção processual pela mora no desalfandegamento (não tendo portanto natureza transgressional).
A argumentação aduzida na presente reclamação contra a decisão sumária pode condensar-se no seguinte: a reclamante não pretende questionar, perante o Tribunal Constitucional, a natureza atribuída pelo tribunal recorrido
à percentagem de 10% sobre fazendas demoradas/abandonadas, mas simplesmente o entendimento de que a notificação, ao despachante oficial, de um acto administrativo que sanciona a mora no desalfandegamento, produz efeitos na esfera jurídica do importador, sendo que este entendimento foi efectivamente acolhido na decisão recorrida.
4. Resulta do exposto que, através da presente reclamação, a reclamante não põe em causa a conclusão a que se chegou na decisão sumária acerca da não aplicação, pelo tribunal recorrido, da interpretação normativa delimitada pela própria reclamante na resposta ao despacho de aperfeiçoamento proferido pela relatora.
Com efeito, ao referir que não pretende questionar, perante o Tribunal Constitucional, a natureza atribuída pelo tribunal recorrido à percentagem de 10% sobre fazendas demoradas/abandonadas, a reclamante limita-se a modificar o objecto do recurso por si configurado na mencionada resposta ao despacho de aperfeiçoamento. Nesta resposta, a questão de constitucionalidade prendia-se com o alargamento, alegadamente feito pelo tribunal recorrido, do
âmbito do mandato do despachante a matérias de natureza transgressional; na presente reclamação, a questão de constitucionalidade já não se prende com a natureza de tais matérias.
Neste momento processual não é, porém, possível modificar o objecto do recurso para o Tribunal Constitucional, objecto esse que a reclamante teve ocasião de delimitar na resposta ao despacho de aperfeiçoamento (uma vez que o não havia feito no requerimento de interposição do recurso). Dito de outro modo, a reclamação da decisão sumária tem como fim controlar a legalidade dessa decisão sumária – que, como se disse, a reclamante não põe minimamente em causa
– e não formular novos (e, portanto, extemporâneos) pedidos perante o Tribunal Constitucional. III
5. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação, mantendo-se a decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 14 de Dezembro de 2001 Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida