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Processo nº 376/01
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Pela sentença de fls. 1369, de 14 de Setembro de 1999, do Tribunal de Família de Lisboa, foi julgado o pedido de regulação do exercício do poder paternal pedido por J... contra R..., relativo a seu filho A.... Desta sentença recorreram a Curadora de Menores junto daquele Tribunal
(requerimento de fls. 1374) e J... (requerimento de fls. 1387). Pelo requerimento de fls. 1398, apresentado em aditamento àquele, J... veio suscitar a inconstitucionalidade da “interpretação do artº 185º, nº 1 da O.T.M. no sentido de ser taxativo e vinculativo o efeito devolutivo aí referido (...) porquanto, neste caso concreto, tal interpretação poria em causa o efeito útil do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa, violando os seguintes artigos da Constituição da República Portuguesa: artº 20º (...), artº
13º (...), arts. 2º, 3º e 205º (...), artº 36º (...), artº 41º (...)”. Pelo despacho de fls. 1401, foi admitido “o recurso interposto a fls. 1374 e
1387, que é de apelação a subir imediatamente”, com efeito suspensivo. Novo despacho do mesmo teor foi proferido a fls. 1648, por, entretanto, ter sido anulado parte do que havia sido processado.
2. Pelo despacho de fls. 1931, de 5 de Maio de 2000, do Tribunal da Relação de Lisboa, foi alterado o efeito atribuído ao recurso, passando a ser meramente devolutivo, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 185º da Organização Tutelar de Menores. Este efeito foi mantido pelo acórdão da conferência de 20 de Fevereiro de 2001, de fls. 2096, proferido por reclamação do recorrente (requerimento de fls.
1969), nos seguintes termos:
“2. Apreciando e decidindo: Os art. 150° da O.T.M. e 1409° do C.P.C. não têm aplicação directa ao caso dos autos, uma vez que existe uma norma própria, especial – a do art. 185º da L.T.M.
– que regula directamente a matéria do efeito do recurso interposto da decisão final proferida em sede de processo de regulação de poder paternal. O efeito consagrado pela lei é o meramente devolutivo. E, a lei não ressalvou a aplicação do efeito suspensivo em qualquer uma hipótese por mais especial que ela seja, sendo certo que, no caso dos autos, não se vê que ele seja por demais diferente de tantas outras situações que carecem da intervenção do tribunal por os pais se não entenderem relativamente ao exercício do poder paternal sobre os seus filhos. Por outro lado, não é legítimo lançar mão do valor da decisão recorrida para fixar um ou outro dos efeitos possíveis. O legislador, ao fixar sem excepção, o efeito devolutivo ao recurso, partiu, certamente, do princípio de que, embora a decisão da primeira instância possa vir a ser alterada em sede de recurso, aquela deve prevalecer até que tal alteração se dê, pois que será mais conforme
à situação factual do que a mera situação de facto que motivou o pedido de intervenção do tribunal ou alguma decisão provisória, entretanto proferida. E, com fundamento, considerou esta posição, pois que a decisão final da primeira instância foi precedida de averiguação, em que se confere grande margem de liberdade ao tribunal na recolha das provas e na decisão a tomar, permitindo-se-lhe até julgar segundo a equidade. Tudo isto confere fidedignidade suficiente à decisão da primeira instância como sendo a que melhor acautela os interesses do menor, de tal modo que a lei optou, sem ressalva, por fixar o efeito meramente devolutivo aos recursos interpostos dessas decisões. Esta interpretação do disposto no art. 185° da L.T.M. não se vê que viole qualquer uma das normas constitucionais invocadas, pois nenhuma delas se prende com esta matéria. Quanto muito a decisão recorrida é que poderá ter violado algum dos princípios nelas consagrados. Mas isso é matéria que só em sede de apreciação do recurso poderá ser tida em conta. Pelo exposto julga-se a questão prévia improcedente e, em consequência, confirma-se o despacho reclamado, ou seja, que o recurso tem efeito meramente devolutivo”.
3. Deste acórdão recorreu J... para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, nos seguintes termos:
“(...)
1 - O recorrente é autor do processo de Regulação de Poder Paternal n.º 333-A/96 que correu termos no 1° Juízo, 1ª secção do Tribunal de Família de Lisboa.
2 - Da decisão final aí proferida interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.
3- No seu requerimento de interposição do recurso, bem como nas alegações desse recurso, suscitou desde logo a inconstitucionalidade da interpretação da norma do art. 185°, n°. 1 da O.T.M./L.T.M, no sentido de o efeito devolutivo referido nessa norma ser taxativo e vinculativo, por impedir, em qualquer circunstância, a aplicação de outras disposições legais determinantes para ponderação do interesse do menor, porquanto, neste caso concreto, tal interpretação viola os artºs 2º, 3°, 13°, 20°, 36°, 41° e 205° da Constituição da República Portuguesa, pondo em causa o efeito útil do recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa. Isto, porque a decisão recorrida passaria a produzir efeitos imediatos, fazendo operar a violação dos princípios, direitos e garantias constitucionais consagrados nos artigos seguintes: art.º 20° 'Acesso ao direito e tutela juridiscional efectiva', designadamente o seu n°. 5; art.º 13° 'Princípio da igualdade', designadamente o n°. 2; art.ºs 2°, 3° e 205°, 'Estado de direito',
'Soberania e legalidade', e 'Decisões dos tribunais'; art.º 36° 'Família, casamento e filiação', designadamente os seus n°.s 5 e 6; art.º 41°, 'Liberdade de consciência, religião e de culto'.
4- O despacho de admissão do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa, proferido na 1ª Instância em 6-12-99, fixou-lhe o efeito suspensivo, fazendo uma interpretação correcta da norma do art.º 185°, n°.1 da 0.T.M./L. T
.M.
5- Por despacho de 4-5-00 o Mmº Juiz Relator do Tribunal da Relação de Lisboa, decidiu alterar o efeito atribuído ao recurso na 1ª Instância, fixando-lhe o efeito devolutivo, interpretando a norma do art.º 185°, n.º 1 da 0.T.M/L.T.M., no sentido de que o efeito devolutivo aí referido é taxativo e vinculativo no caso de recurso interposto da sentença que regula o exercício do poder paternal, interpretação essa que, em concreto, é inconstitucional, tal como o recorrente havia arguido anteriormente, no seu requerimento de interposição do recurso.
6- Deste despacho o recorrente reclamou para a Conferência continuando a arguir a inconstitucionalidade da interpretação da norma do art.º I85°, n.º1 da
0.T.M./L.T.M. que aquele despacho havia feito.
7- 0 Acórdão proferido em consequência desta reclamação para a Conferência mantém aquela interpretação inconstitucional da norma do art. 185°, n.º1 da O.T.M./L.T.M, decidindo que 'Esta interpretação do disposto no art.º 185° da L.T.M. não se vê que viole qualquer das normas constitucionais invocadas, pois nenhuma delas se prende com esta matéria. Quando muito a decisão recorrida é que poderá ter violado alguns princípios nelas consagrados', confirmando o despacho reclamado.
(...) O recurso foi admitido, em decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do artigo
76º da Lei nº 28/82).
4. Notificadas para o efeito, as partes apresentaram as suas alegações. O recorrente concluiu da seguinte forma:
“CONCLUSÕES:
1°- As decisões judiciais, designadamente em processo de Regulação do Poder Paternal, mal ponderadas podem violar gravemente princípios, direitos liberdades e garantias pessoais de um menor, constitucionalmente consagrados, entre os quais direitos absolutos.
2º- As decisões judiciais, são impugnáveis por via do recurso, vd. art.º 676 do C.P.C. e, em processo de Regulação do Poder Paternal o art. 185 n.º1 da 0.T.M.
3°. Na pendência do recurso não é possível pedir a alteração do regime fixado por decisão final ainda não transitada em julgado. 0 pedido de alteração só pode ocorrer relativamente a um regime efectivo, em resultado de uma decisão transitada, e em consequência ou do não cumprimento dessa decisão, ou de circunstâncias supervenientes, vd. o art.º 182º da 0.T.M.
4°- Até ao seu trânsito em julgado a 'exequibilidade” imediata de uma decisão final que comporte a violação de direitos, liberdades e garantias de um menor e que, por essa razão foi interposto recurso, só é evitável mediante o afastamento da taxatividade da norma do art.º 185 n.º1 da O.T.M.
5º- O sistema de impugnação de tais decisões não prevê qualquer outra saída de efeito regulador, senão aquele que consiste na interpretação do art.º 185 n°. 1 da O.T.M. como estabelecendo apenas um efeito regra para o recurso delas interposto, admitindo excepções.
6º- O presente recurso vem interposto do Acórdão da Conferência, no âmbito de uma reclamação do despacho do juiz relator que, baseando-se no texto do art.º
185º n.º1 da O.T.M, decidiu alterar o efeito ao recurso atribuído na 1.ª Instância, fixando-lhe o efeito meramente devolutivo.
7º- O Tribunal da 1ª Instância, ao atribuir o efeito suspensivo ao recurso, afastando o efeito regra, fê-lo ponderando o interesse do menor no caso concreto, segundo juízos de equidade e oportunidade, ao abrigo do disposto nos art.ºs 150 da O.T.M. e 1409 do C.P.C.
8º- A interpretação e aplicação, que o Acórdão recorrido fez da norma do art.º
185º n.º1 da O.T.M., no sentido de que o efeito devolutivo aí referido é, sempre e sem excepção, taxativo e vinculativo impedindo a aplicação de outras disposições legais (designadamente, os art.ºs 150º e 157º da O.T.M. e art.ºs
1409º e 1410 do C.P.C.) é inconstitucional porquanto, tal interpretação, viola os art.ºs 2°, 3°, 13°, 20º , 36º, 41° e 205° da C.R.P.
9º- Aliás, tal interpretação inconstitucional, tornaria imediatamente exequível a decisão em recurso para o Tribunal da Relação, a qual, ao aplicar as normas do art.º 1905º do C.Civil, do art.º 180º da OTM e do art.º 1410º do C.P.C., no que tange ao interesse do menor, fê-lo em flagrante violação dos arts. 13°, 20º, 36° e 41° da C.R.P.
10º- Pelo que, aquela interpretação levaria a que uma decisão não transitada, que não se fundamentasse na lei, que fosse proferida com flagrante desajustamento temporal e inadequada à idade actual do menor, que pura e simplesmente afastasse o menor de um dos seus progenitores, que discriminasse o menor ou um dos seus progenitores em razão da sua religião ou do sexo e que não fundamentasse a razão de ser de uma tal decisão, fosse exequível, sendo, portanto, tal interpretação violadora dos art.ºs 2, 3, 20, 36, 13, 41 e 205 da C.R.P
11º- Assim, no hiato entre a decisão final em processos de Regulação do Poder Paternal e o trânsito do Acórdão proferido no recurso dela interposto, levaria necessariamente a que, nesse período de tempo, operassem as violações daqueles direitos, liberdades e garantias pessoais do menor e demais pessoas afectadas.
12.. A única saída de efeito regulador que evite aquelas violações consiste na interpretação da norma do art.º 185 n.º 1 da 0.T.M. como estabelecendo um efeito regra, de modo a permitir a aplicação de outras disposições legais que evitem tais violações.
13º- A provisoriedade de uma decisão não transitada em julgado, não se compadece com a profundidade humana e de cidadania dos direitos constitucionais, alguns deles absolutos, que essa decisão possa pôr em causa. Só uma decisão definitiva
é que poderia ser susceptível de restringir ou limitar um direito absoluto.
14º- Assim, se não se afastar a taxatividade da norma do art.º 185 n°. 1 da O.T.M., uma decisão violadora de direitos, liberdades e garantias pessoais do menor, ofensiva, injusta e inadequada, seria sempre exequível através do mero efeito de um recurso .
15º- Segundo o entendimento do Acórdão recorrido de que a norma do art.º 185 n.º1 da O.T.M. é taxativa, sem excepção, então, mercê do efeito meramente devolutivo aí referido, ficaria bloqueada a possibilidade de evitar violações dos direitos, liberdades e garantias pessoais do menor, e de apreciar em cada caso o interesse do menor.
16º- Ainda tal entendimento, de que 'os art°.s 150° da O.T.M. e 1409° do C.P.C. não têm aplicação em caso de recurso da decisão final proferida em sede de Regulação do Poder Paternal, porque existe uma norma própria especial – a do art.º 185 n.º 1 da O.T.M – que regula directamente a matérias de efeito de recurso interposto e que não é legítimo lançar mão do valor da decisão recorrida para fixar um outro dos efeitos possíveis', colide com o princípio fundamenta1 do processo tutelar cível, o interesse do menor e da jurisdição voluntária, a equidade e a oportunidade.
17º- Entender, como faz o Acórdão recorrido, que o legislador fixou, sem excepção, o efeito meramente devolutivo a este tipo de recurso, radica no formalismo processual, independentemente e para além do que seja o interesse concreto de um menor .
18º- O interesse do menor não é um conceito abstracto que resulte da mera enumeração de um princípio, mas um conceito de valor e protecção aos menores tal como vem aflorado nos artº.s 69º e 70º da C.R.P., que se realiza pela ponderação e aplicação desse princípio a cada caso concreto, sob pena de prejuízos irreparáveis para a formação do carácter e personalidade do menor.
19º- Se o legislador partiu, certamente, do princípio que uma decisão final na
1. Instância possa ser alterada por recurso, não significa que no espírito do legislador, dentro da coerência do sistema jurídico, e articulando os princípios que consagra, o efeito referido no art.º 185º n°.1 da O.T.M. consista num efeito fixo, taxativo e sem excepção, considerando que a realidade humana regu1amentada pela Jurisdição de Menores é necessariamente fluída e mutável, e em que cada caso, é um caso.
20º- A formatação em série, fixa e sem excepção, do efeito devolutivo do recurso, até por princípio, certamente colidirá, em alguma circunstância, com os direitos liberdades e garantias estabelecidos constitucionalmente e, obviamente, com o interesse do menor, o que constitui uma excepção ao princípio da oportunidade e equidade, vd. artigos 150º da OTM e 1409º do CPC e 1905º do C Civil.
21º- O interesse do menor não pode decorrer, nem aferir-se, por um raciocínio jurídico formal: de que uma decisão final em processo de regulação do poder paternal defende melhor os interesses do menor do que uma outra ainda que de carácter provisório que entretanto venha a ser proferida, e que pondere em concreto e com actualidade o interesse do menor.
22°. Pelo que, o art.º 185 n°.1 da O.T.M. não pode ser interpretado como bloqueio ou limitador da apreciação do interesse do menor em concreto. Tem que interpretar-se em conformidade com os preceitos que estabelecem aquele princípio fundamental e enformador da Jurisdição de Menores. Caso contrário, os Valores que se contemplam e protegem quer na lei constitucional quer na lei ordinária, são a limitados e excluídos por outro lado, através de uma interpretação daquele preceito, sob pena de múltiplas violações de direitos liberdades e garantias pessoais do menor constitucionalmente consagrados.
23º- Pelas razões expostas, deverá ser julgada inconstitucional a interpretação que o Acórdão recorrido fez da norma do art.º 185 n.º1 da O.T.M. e, consequentemente, ser concedido provimento ao recurso.
Assim se fará Justiça”.
O Ministério Público, após ter observado que, de todos as normas e princípios constitucionais referidos pelo recorrente, só faria sentido confrontar a norma que constitui o objecto do recurso com o princípio da igualdade, embora numa perspectiva diferente da que é apontada pelo recorrente, concluiu as suas alegações deste modo:
“3. Conclusão Nestes termos e pelo exposto conclui-se:
1° - A norma constante do artigo 185° de LTM. interpretada como estabelecendo, para o recurso da decisão final de mérito proferida em processo de regulação do exercício do poder paternal um regime de (necessário e automático) efeito meramente devolutivo – permitindo, deste modo, a imediata exequibilidade da composição de interesses alcançada pelo juiz de 1ª instância – não pode configurar-se como solução legislativa arbitrária ou discricionária, como tal colidente com o princípio da igualdade, perspectivado como princípio de controlo negativo do exercício da margem de discricionariedade consentida ao legislador infraconstitucional.
2º- Na verdade – e apesar de algum afloramento no nosso ordenamento adjectivo da regra de que a apelação interposta de decisões finais tem efeito suspensivo – não envolve arbítrio legislativo a atribuição de uma posição de prevalência à composição final do litígio. alcançada pelo juiz de 1ªinstância, após cumprimento exaustivo do contraditório. ponderação do interesse do menor e aprofundada valoração de todas circunstâncias do caso – relativamente à solução meramente cautelar alcançada provisoriamente no início da lide.
3°- Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
A recorrida R... concluiu:
“III Conclusões
1. O que o recorrente pretende atacar é a decisão final de mérito da primeira instância, com cujo conteúdo material se não conforma, e não a interpretação e a aplicação que o Tribunal a quo fez da norma processual do art.º 185° n° 1 da OTM;
2. O raciocínio subjacente à tese do recorrente está à partida viciado, na medida em que faz apelo ao critério do interesse do menor, em função do qual perspectiva as diferentes desconformidades à Constituição que suscita, para subverter o efeito legal em que deve ser admitido a subir um recurso de uma decisão proferida no âmbito de uma Regulação do Poder Paternal, partindo do princípio de que não foi justamente o interesse do menor que ditou essa mesma decisão, e apenas porque, na sua perspectiva, o Tribunal de primeira instância, interpretou o interesse do menor em termos diferentes dos seus.
3. Os juízos de inconstitucionalidade que formula dirigem-se, não à interpretação que o Tribunal a quo fez da norma que atribui efeito meramente devolutivo ao recurso da decisão de 17.09.1999 (cit. art.º185º n° 1 da OTM), mas sim à leitura que o Tribunal de primeira instância fez do que é o melhor interesse atendível do menor, bem como aos juízos de conveniência e oportunidade relativamente às soluções ali adoptadas, confundindo a dimensão meramente adjectiva ou de tramitação em que consiste a interpretação de uma norma que apenas se refere ao efeito a atribuir ao recurso de uma decisão, com a dimensão do mérito da solução material consagrada nessa decisão, sendo esta última que verdadeiramente reputa de inconstitucional.
4. A dirimição da estrita questão processual da imediata exequibilidade da solução jurídico-material acolhida na sentença de mérito, não pode colidir com os direitos atinentes à família, casamento ou filiação, ou com a liberdade de religião ou de culto, com os princípios do Estado de direito, da soberania e da legalidade, do acesso ao direito ou do respeito pelas decisões dos tribunais, sendo manifesto que a conexão de tais direitos e princípios fundamentais, a existir, será com o decidido na sentença que julgou o mérito da causa, e não com o acórdão recorrido que fixou o efeito do recurso.
5. Nesta sede não cabe rebater a linha de argumentação do recorrente, uma vez que proferida a sentença final de primeira instância, só volta a discutir-se a ponderação ali feita do interesse do menor seu filho, no recurso de Apelação interposto daquela sentença, já que na questão a que se circunscreve o objecto do presente recurso, o legislador infra-constitucional associou ao recurso da sentença final o efeito meramente devolutivo ope legis, isto é, por mero efeito da lei e independentemente de qualquer ulterior ponderação do interesse do menor pelo Tribunal, e justamente no pressuposto de que a imediata execução das soluções consagradas é, sem necessidade de novos juízos, a que melhor serve aquele interesse.
6. A interpretação da norma do art.º 185° n° 1 da LOTM através dos argumentos literal, sistemático e teleológico, só comporta o entendimento e a aplicação acolhidos e expressos pelo Tribunal a quo.
7. O argumento teleológico permite sindicar a solução consagrada pelo legislador infra-constitucional em legítimas razões justificativas do regime especial fixado na norma em questão já que, se é o interesse dos menores que deve ser o critério orientador do Tribunal em todas as decisões que profere no
âmbito de processos desta natureza, é de supôr que, nas soluções que em cada momento consagra, o julgador ponderou e quis acautelar o interesse actual e imediato do menor; devendo, por isso, as decisões ser de exequibilidade imediata.
8. E se o Tribunal entender dever adoptar qualquer solução em nome do interesse do menor, mas considerar que é do interesse deste deferir a exequibilidade da mesma para um momento posterior, é perfeitamente livre de o fazer, ao abrigo do disposto no artº 157º da OTM.
9. Sendo o presente processo, nos termos do art° 150º da OTM, considerado de jurisdição voluntária, o Tribunal de primeira instância, ao fim de cerca de três anos durante os quais investigou livre e aturadamente os factos, coligiu as provas, ordenou os competentes inquéritos e recolheu as informações que considerou necessárias à decisão, e garantiu o exercício do contraditório, ao proferir a douta sentença de 17.09.99, não pode senão ter adoptado as soluções que julgou mais convenientes e oportunas como lho impunha a norma do artº 1410º do Código de Processo Civil; e este juízo de conveniência e de oportunidade legalmente imposto, necessariamente formulado na perspectiva dos interesses do menor em questão, é também indício insofismável de que o legislador infra-constitucional ponderou, considerou e quis que a decisão final de primeira instância fosse de execução imediata.
10. A tese com fundamento na qual o recorrente pretende ver declarada a inconstitucionalidade da norma do artº 185° n° 1 da LOTM, tal como o Tribunal a quo a interpretou e aplicou, apenas faria sentido no pressuposto de que a decisão de primeira instância não fosse a mais adequada à tutela dos interesses do menor, e de que a mesma virá a ser alterada; o que está – naturalmente – por demonstrar, e só o será, eventualmente, em sede própria, que é o douto Acórdão do Tribunal da Relação que vier a decidir a Apelação. ll. Se uma sentença proferida no âmbito de uma R.P.P., deve, nos termos do disposto nos artºs 150º da LOTM e 1410º do Código de Processo Civil, adoptar as soluções mais convenientes e oportunas, e se o Tribunal que a proferiu, sabe, à partida, que o recurso que da mesma vier a ser interposto tem, nos termos expressos da lei, efeito meramente devolutivo (art.º 185° n° 1 da OTM), parece que o legislador, terá, por definição e por coerência sistemática, decidido resolver expressa e automaticamente a questão do efeito a atribuir ao recurso, na norma cuja inconstitucionalidade ora se discute, justamente para vincar a sua imperatividade.
12. 0 legislador, em perfeito respeito pela Lei Fundamental, não raras vezes assume deliberadamente o risco de sacrificar o valor da justiça ao valor da segurança jurídica, mormente quando estão em causa interesses relevantes de natureza delicada e premente, como os que se discutem no âmbito de uma Regulação do Poder Paternal.
13. E opta pela imediata execução de certas decisões, susceptíveis de ainda virem a ser alteradas, bastando-se para tanto com um grau de indagação que as justifica, por tal ser de preferir ao arrastar de uma situação de maior indefinição jurídica, muitas vezes associada à morosidade dos tribunais ou à necessidade de prevenir o risco de lesões maiores dos interesses em jogo.
14. Por essas razões os regimes provisórios são de execução imediata por serem preferíveis ao vazio jurídico, e por isso, também, os regimes definitivos são preferíveis aos provisórios, por serem fixados em função de uma mais aprofundada ponderação dos interesses a ter em conta, e após um exercício mais amplo do contraditório.
15. 0 que, tudo, é de molde a justificar o regime especial imperativo fixado na norma em questão.
16. Por todo o exposto, impõe-se a conclusão de que não pode proceder a pretensão do recorrente quanto aos juízos de inconstitucionalidade que pretende ver formulados por este Tribunal, já que no seu recurso o que é questionado não
é a conformidade às normas constitucionais dos artºs 2º, 3°, 13°, 20º, 36°, 41° e 205º da CRP da interpretação e aplicação feita pelo Tribunal a quo da norma do n° 1 do artº 185° da LOTM, que é totalmente legítima e justificada, mas a conformidade às referidas normas constitucionais da ponderação dos interesses relevantes do menor dos autos feita pela primeira instância na douta sentença de
17 de Setembro de 1999. Nestes termos deve ser negado provimento ao presente recurso, como é de elementar
JUSTIÇA!!!”
5. É o seguinte o texto do nº 1 do artigo 185º da Organização Tutelar de Menores
(Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de Outubro):
“1. Os recursos de quaisquer decisões proferidas nos processos previstos nesta secção têm efeito meramente devolutivo”.
Os processos abrangidos são os que respeitam à “regulação do exercício do poder paternal e resolução de questões a este respeitantes” (título da secção em que se integra o artigo 185º citado). O presente recurso tem assim como objecto a norma, constante do nº 1 deste artigo 185º da Organização Tutelar de Menores, segundo a qual a apelação interposta de uma decisão proferida no âmbito de um processo de regulação do exercício do poder paternal tem sempre efeito meramente devolutivo. O recorrente considera que esta interpretação – que, portanto, retira ao tribunal a possibilidade de lhe conferir efeito suspensivo – é inconstitucional, por ofensa dos preceitos e princípios já referidos.
6. Ora a verdade é que, lidas atentamente as considerações expostas pelo recorrente para fundamentar a acusação de inconstitucionalidade, se verifica que não podem ser relevantes no âmbito de um recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas. Com efeito, no âmbito deste recurso apenas podem ser conhecidas questões de constitucionalidade normativa; o Tribunal Constitucional não tem competência para apreciar de eventuais inconstitucionalidades atribuídas a decisões judiciais. Ora o que o recorrente faz, no requerimento de interposição de recurso e nas subsequentes alegações, é manifestar o seu desacordo quanto ao conteúdo da decisão que regulou o exercício do poder paternal e afirmar que a respectiva execução imediata vai ofender as regras e os princípios constitucionais que enumera; mesmo quando a acusa de não ser fundamentada – questão que nunca poderia ser analisada no âmbito de um recurso de constitucionalidade –, é sempre desta perspectiva que se coloca. Ora saber se é ou não contrária à Constituição uma norma que determine que um recurso interposto no âmbito de um processo destes tenha sempre efeito apenas devolutivo é uma tarefa que tem de ser levada a cabo independentemente do conteúdo concreto da decisão de que se recorreu, ou seja, independentemente da forma como, no caso, o exercício do poder paternal foi regulado pelo tribunal de
1ª instância. Se assim não fosse, o Tribunal Constitucional estaria a julgar da conformidade constitucional desta decisão da 1ª instância, mediante a apreciação da questão da constitucionalidade da norma que define o efeito que deve ser atribuído ao recurso dela interposto. Esta observação não quer dizer, em rigor, que o Tribunal Constitucional não possa conhecer do objecto do recurso, por ter sido atacada a constitucionalidade da decisão perante ele recorrida, e não a de uma norma aplicada por essa mesma decisão; o recorrente coloca, directamente, uma questão de constitucionalidade normativa – a que se refere à norma que o Tribunal da Relação de Lisboa extraiu do nº 1 do artigo 185º da Organização Tutelar de Menores. A observação feita dirige-se, antes, à fundamentação apresentada para sustentar a acusação de inconstitucionalidade desta norma.
7. E a verdade é que das normas e princípios constitucionais invocados pelo recorrente nada se retira que possa sustentar a inconstitucionalidade invocada. Assim, no que toca à violação dos artigos 2º, 3º, 36º, e 41º da Constituição, não se vê qualquer relação com a questão colocada, restrita ao efeito do recurso. Relativamente ao artigo 20º da Constituição, que consagra o direito de acesso ao direito e aos tribunais, sempre se dirá que não se crê que uma norma que considere exequível uma sentença ainda pendente de recurso o possa lesar. Quanto ao artigo 205º, já se observou que não cabe no âmbito deste recurso avaliar da sua violação por uma sentença, ainda que a questão seja colocada através do problema do efeito atribuído ao recurso de que foi objecto.
Finalmente, há que considerar a alegação de violação do princípio da igualdade. É que, nas alegações, como se disse já, o Ministério Público observa que a norma impugnada poderia ser analisada à luz deste princípio; e, procedendo a essa análise, conclui pela não inconstitucionalidade, por entender que, embora o legislador se afaste da tendência geral do sistema, não o faz de forma arbitrária, não excedendo a sua liberdade de conformação do direito ordinário. A verdade, todavia, é que não parecem totalmente exactas as premissas de que parte, e que levam a que faça sentido este confronto. Em primeiro lugar, sustenta o Ministério Público que “está efectivamente subjacente ao ordenamento adjectivo que nos rege a atribuição, em certa medida, de alguns poderes ao juiz para – na sequência do requerido pelas partes – fixar os efeitos dos recursos interpostos das decisões jurisdicionais”; em segundo lugar, afirma que há que reconhecer “que o direito adjectivo em vigor se orienta, em ampla medida, para a atribuição do efeito suspensivo aos recursos interpostos de decisões de mérito proferidas em 1ª instância”.
8. Contrariamente ao que faz o Ministério Público, não se vai considerar, neste âmbito, o recurso de agravo. O agravo é interposto de decisões que não respeitam ao mérito da causa, em geral interlocutórias, o que exclui desde logo a adequação de considerações como as que são apresentadas pelo recorrente; basta pensar que, na maioria dos casos, o efeito suspensivo – que, nos termos que se conhecem, lhe pode efectivamente ser atribuído como meio de garantir a utilidade da decisão – respeita, tão somente à suspensão da marcha do processo.
É certo que o efeito suspensivo do agravo pode traduzir-se, já não, ou não só, na suspensão do andamento do processo, mas também na paralisação da exequibilidade da decisão recorrida; mas, ainda aqui, a circunstância de ser uma decisão que não versa sobre o mérito da causa afasta a utilidade da comparação.
9. Ora a verdade é que a análise das regras relativas ao efeito do recurso de apelação nas diversas formas de processo não permite acompanhar as considerações apresentadas pelo Ministério Público. Com efeito, e começando pelo argumento apresentado em segundo lugar, não parece exacta a afirmação de que a lei atribua à apelação, em regra, efeito suspensivo; dir-se-ia, até, que a regra é a oposta, e que a apelação, em princípio, tem efeito meramente devolutivo. Só no processo ordinário é que a lei atribui à apelação, por princípio, efeito suspensivo (artigo 692º do Código de Processo Civil); quer no processo sumário, quer nos processos especiais, a apelação tem efeito meramente devolutivo, como resulta do disposto no nº 3 do artigo 463º e no artigo 792º do Código de Processo Civil. Ora esta observação, conjugada com a rejeição da utilidade de confronto com o agravo, é por si só suficiente para afastar a ideia de que se poderia considerar acolhida, em geral, pelo ordenamento processual civil português a atribuição ao juiz do poder de fixar o efeito do recurso, que é o argumento utilizado pelo Ministério Público em segundo lugar. Tratando-se, no caso presente, de um processo especial, a que se aplicam as normas relativas à jurisdição voluntária (cfr. artigo 150º da Organização Tutelar de Menores), e, portanto, as regras que para ele define o Código de Processo Civil que não forem contrariadas por normas próprias, a aplicação do regime geral conduziria a fixar ao recurso o mesmo efeito que decorre do disposto no nº 1 do artigo 185º da Organização Tutelar de Menores. Tem todavia razão o Ministério Público quando confronta a norma impugnada, extraída deste nº 1 do artigo 185º, com o artigo 159º da Organização Tutelar de Menores, que, para a generalidade dos processos tutelares cíveis, permite que o juiz fixe o efeito do recurso; não pela razão que aponta nas suas alegações – a de que se trataria de um afloramento de um princípio geral –, mas porque seria a norma aplicável se não fosse afastada pelo mesmo nº 1 do artigo 185º. Com efeito, de entre os processos tutelares cíveis, o legislador afastou essa faculdade e impôs a exequibilidade imediata das decisões proferidas no âmbito de processos de regulação do exercício do poder paternal. Ou seja: considerando, em abstracto, naturalmente, que quando se torna necessário recorrer a estes processos é porque há urgência em definir judicialmente a situação de um menor, a lei impôs o efeito meramente devolutivo do recurso interposto, não querendo, manifestamente, que se mantivesse a situação anterior até que o tribunal superior julgasse. Não se consegue encontrar nenhum motivo para considerar tal norma inconstitucional; seria necessário, para concluir de forma diversa, extrair da Constituição uma norma ou um princípio que impusesse que, nestes processos, o juiz tivesse o poder de determinar o efeito dos recursos que fossem interpostos de uma decisão de 1ª instância; e essa norma não se encontra, nem o recorrente a aponta.
Nestes termos, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no que respeita à questão de constitucionalidade. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs.
Lisboa, 6 de Fevereiro de 2002- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida