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Processo n.º 772/12
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, reclama para a conferência ao abrigo do disposto no n.º 3, do artigo 78.º-A, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual redação (LTC), da decisão sumária proferida pelo Relator que decidiu não conhecer do objeto do recurso de constitucionalidade interposto.
2. A reclamação apresentada tem o seguinte teor:
‹(…)
4. Patentemente, o signatário alega de modo expresso no seu requerimento de interposição do recurso sub judice (in II) que a decisão instrutória controvertida foi lavrada de acordo com o “devido formalismo legal” (sic), formalismo legal esse que outro não foi, porque outro não poderia ter sido, senão o rito delineado no artigo 302º do Código de Processo Penal – cujos números 2 e 4, claramente, vedam à pessoa do arguido (que não ao seu “defensor”) o direito seja para requerer a produção de provas indiciárias suplementares seja, muito principalmente, para «formular em síntese as suas conclusões sobre a suficiência ou insuficiência dos indícios recolhidos e sobre questões de direito de que depende o sentido da decisão instrutória», ou seja: o direito, fundamental, de apresentar a sua própria defesa -, conforme era perfeitamente previsível e, coerentemente, já por si pré-arguido de normativamente inconstitucional nos autos, Por conseguinte,
5. não pode o Mmo. Juíz de instrução criminal ter deixado de aplicar implicitamente, mas efetivamente, o normativo sindicado durante a condução do debate judiciário em causa.
6. e, consequentemente, não pode a decisão instrutória dele saída deixar de integrar um sentido (cfr. nº 4 citado, in fine) determinado, defectivamente, pela impossibilidade in concreto de apresentação quer de eventuais indícios suplementares em prol da defesa pelo principal interessado quer, muito especialmente, da ponderação pessoal deste sobre questões de direito em seu entender pertinentes à matéria em debate.”
7. Já sobre o segundo argumento brandido na Decisão em análise, forçoso será notar que, patentemente, a justificação apresentada pelo Recorrente para faltar à audiência de debate instrutório (por mero lapso, irrelevante, dita de “julgamento”) foi a falta de notificação à sua pessoa da decisão tomada por esse mesmo Tribunal supremo numa reclamação por si oportunamente interposta (…) por via da qual pretendia que lhe fosse reconhecido o direito processual fundamental a assegurar pessoalmente, e só por si, a sua própria defesa. Isto dito,
8. impor-se-á concluir que, primo, seria afinal ao Mmo. JIC em ação que, face ao motivo invocado, competiria decretar o adiamento do debate – independentemente, portanto, de requerimento do arguido nesse sentido: o artigo 300.º invocado não exige que este requeira tal, apenas prevê que manifeste a sua impossibilidade de estar presente por força de condicionalismos envolventes, como sucedeu -, o que aquele Magistrado deveria certamente ter feito se, ex vi Constitutionem, decidisse desaplicar, conforme ab initio requerido pelo ora Recorrente, as normas jusprocessuais penais em crise;
9. secundo, a faculdade de um cidadão “prestar declarações como arguido” não é, de modo algum, a expressão do direito processual fundamental garantido quer pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem quer pelo Pacto das Nações Unidas sobre os Direitos Civis e Políticos: é tão-só a manifestação da dependência duma pessoa, dum ser humano, perante outras, ao autorizar-lhe um sistema de justiça iníquo, retrógrado, tão-só que “responda ao que lhe foi perguntado” pelo juiz ou pelo causídicos em funções. Portanto,
10. as normas permitindo in casu ao Recorrente, única e simplesmente, “prestar declarações” são, conforme pré-arguido por este, materialmente inconstitucionais: a sua aplicação não pode, obviamente, ser validada.
(…)›
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público pugnou pelo indeferimento da reclamação apresentada, nos termos de que de seguida se dão conta:
‹(…)
O representante do Ministério Público junto deste Tribunal, notificado da reclamação para a conferência deduzida no processo em epígrafe (cfr. fls. 397-399 dos presentes autos), vem responder-lhe, nos termos que em seguida se indicam.
1º
Pela Decisão Sumária 594/12, de 12 de dezembro (cfr. fls. 389-393 dos autos), o Ilustre Conselheiro Relator decidiu não conhecer do objeto do recurso de constitucionalidade oportunamente interposto pelo ora reclamante, A. (cfr. fls. 370-371 dos autos).
2º
O recorrente requereu, no referido recurso de constitucionalidade, a apreciação da “inconstitucionalidade material das normas dos nºs 2 e 4, principalmente, do artigo 302º do Código de Processo Penal implicitamente aplicadas, necessariamente, no rito do debate instrutório recém-realizado, porquanto consumando violação «de garantias de defesa consagradas no nº 1 do artigo 32º da Constituição»; designada e muito concretamente, «dos direitos fundamentais de ordem jus-internacional análogos a constitucionais, maxime o direito ao processo equitativo» (cfr. fls. 370-371 dos autos).
3º
Entendeu, porém, o Ilustre Conselheiro Relator, na Decisão Sumária ora reclamada, não conhecer do objeto do recurso, referindo, desde logo (cfr. fls. 390 dos autos), o seguinte:
“Na decisão instrutória, o Juízo de Instrução Criminal de Águeda considerou estarem verificados “indícios suficientes da ocorrência da factualidade relatada na acusação pública que tornam provável a futura condenação do arguido”, tendo, em consequência, proferido um despacho de pronúncia. Sobre o requerimento apresentado pelo arguido (fls. 354), decidiu aquele tribunal, em despacho de fls. 365, o seguinte:
«(...)- Requerimento do arguido constante de fls. 354 e ss:
O Debate Instrutório foi realizado nos presentes autos com a presença da Defensora do Arguido que, de resto, não se opôs à sua realização e o arguido foi pessoalmente notificado da data do mesmo, tendo requerido a justificação da sua falta mas não o seu adiamento, sendo certo que, independentemente da questão da sua representação em juízo, sempre poderia, querendo, ter prestado declarações como arguido.
(...)».
Seguiu-se, por fim, o requerimento de recurso de constitucionalidade já mencionado (fls. 370), com data de 5 de Outubro de 2012. Na sequência de tal requerimento, o Juízo de Instrução Criminal proferiu o despacho de fls. 377, admitindo o recurso de constitucionalidade interposto pelo recorrente.”
4º
Considerou, por outro lado, o Ilustre Conselheiro Relator (cfr. fls. 391-392 dos autos), para não conhecer do objeto do recurso (destaques do signatário):
“5. Ora, conforme resulta dos autos, as normas jurídicas objeto do recurso de constitucionalidade – a saber, o artigo 302.º, n.º 2 e 4, do Código de Processo Penal, não foram ratio decidendi da decisão recorrida, que, in casu, vem a ser a decisão instrutória. Por outras palavras, a norma impugnada pelo recorrente não constituiu “fundamento determinante” da decisão recorrida (cf. Acórdão n.º 101/85, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), algo que só ocorre quando o juízo explícita ou implicitamente veiculado pelo tribunal a quo sobre a respetiva constitucionalidade – e que justificou a sua aplicação no processo-base – se projete objetivamente no conteúdo da decisão, moldando-a e determinando o seu sentido (Blanco de Morais, Justiça Constitucional – Tomo II, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2011, p. 750). Por conseguinte, quando a decisão recorrida tenha subjacente um fundamento alternativo, que sempre imporia ou determinaria a solução encontrada (Victor Calvete, “Interesse e relevância da questão de constitucionalidade, instrumentalidade e utilidade do recurso de constitucionalidade – quatro faces de uma mesma moeda”, Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Cardoso da Costa, Coimbra Editora, 2004, p. 405), há que concluir que a norma objeto de recurso de constitucionalidade não foi ratio decidendi da decisão recorrida.
Sucede, porém, que os preceitos em crise não foram ratio decidendi – leia-se, fundamento determinante – da decisão recorrida, que o recorrente identifica como sendo a decisão instrutória. Nesta, o juiz considerou existirem “indícios suficientes da factualidade relatada na acusação pública”, bastando-se para o efeito com a prova indicada na acusação, a qual assumia natureza essencialmente documental.
5º
Considerou, ainda, o Ilustre Conselheiro Relator, na Decisão Sumária reclamada (cfr. fls. 392-393 dos autos) (destaques do signatário):
“Depois, mesmo que se considerasse que o despacho proferido autonomamente pelo juiz de instrução criminal a fls. 365 integrava, afinal, a decisão a instrutória, ainda assim seria de rejeitar o conhecimento do objeto do recurso. Na verdade, a razão pela qual o recorrente não pôde exercer, na audiência instrutória, o “direito a usar da palavra em sua legítima defesa” não resultou do facto de o artigo 302.º, n.º 2 e 4, do Código de Processo Penal não conceder tal faculdade ao arguido propriamente dito (mas apenas ao seu defensor). (…)
Isto porque, mesmo que tal faculdade estivesse ou devesse estar contida naquele preceito, nunca poderia o recorrente ter dela beneficiado a partir do momento em que, tendo justificado a sua falta à audiência instrutória, não requereu o seu adiamento, talqualmente previsto no artigo 300.º, do Código de Processo Penal. Depois, das normas em crise não resulta qualquer proibição, para o arguido, de prestar declarações na audiência instrutória (cfr. artigo 60.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal), se assim o desejar, desde que, claro, não renuncie ao direito de estar presente naquela audiência.
Esta dupla proposição é confirmada pelo juiz de instrução criminal (fls. 365):
«(…)
O Debate Instrutório foi realizado nos presentes autos com a presença da Defensora do Arguido que, de resto, não se opôs à sua realização e o arguido foi pessoalmente notificado da data do mesmo, tendo requerido a justificação da sua falta mas não o seu adiamento, sendo certo que, independentemente da questão da sua representação em juízo, sempre poderia, querendo, ter prestado declarações como arguido.
(…)»
Deflui do exposto que a orientação ou sentido plasmados na decisão instrutória – mesmo admitindo que esta abrange o despacho de fls. 365 - não resultaram de um juízo sobre a constitucionalidade do artigo 302.º, n.ºs 2 e 4, do Código de Processo Penal, mas de outros fundamentos aí elencados, concluindo-se, nessa medida, que tais preceitos não foram ratio decidendi da decisão recorrida. Assim sendo, não se encontram preenchidos os pressupostos processuais de que a CRP e a LTC fazem depender a admissibilidade do presente recurso de constitucionalidade.”
6º
Ora, concorda-se inteiramente com a argumentação aduzida pelo Ilustre conselheiro Relator na Decisão Sumária 594/12.
7º
Invoca, porém, em contrário, o reclamante (cfr. fls. 398 dos autos):
“4. Patentemente, o signatário alega de modo expresso no seu requerimento de interposição do recurso sub judice (in II) que a decisão instrutória controvertida foi lavrada de acordo com o «devido formalismo legal» (sic), formalismo legal esse que outro não foi, porque outro não poderia ter sido, senão o rito delineado no artigo 302º do Código de Processo Penal – cujos números 2 e 4, claramente, vedam à pessoa do arguido (que não ao seu “defensor”) o direito seja para requerer a produção de provas indiciárias suplementares seja, muito principalmente, para «formular em síntese as suas conclusões sobre a suficiência ou insuficiência dos indícios recolhidos e sobre questões de direito de que depende o sentido da decisão instrutória», ou seja: o direito, fundamental, de apresentar a sua própria defesa -, conforme era perfeitamente previsível e, coerentemente, já por si pré-arguido de normativamente inconstitucional nos autos, Por conseguinte,
5. não pode o Mmo. Juíz de instrução criminal ter deixado de aplicar implicitamente, mas efetivamente, o normativo sindicado durante a condução do debate judiciário em causa.
6. e, consequentemente, não pode a decisão instrutória dele saída deixar de integrar um sentido (cfr. nº 4 citado, in fine) determinado, defectivamente, pela impossibilidade in concreto de apresentação quer de eventuais indícios suplementares em prol da defesa pelo principal interessado quer, muito especialmente, da ponderação pessoal deste sobre questões de direito em seu entender pertinentes à matéria em debate.”
8º
Ora, o que se retira deste excerto, é o facto, não de ser esta a ratio decidendi da decisão recorrida, mas, sim, o de tal argumentação dar, mais uma vez, corpo ao desejo, reiterado, de o ora reclamante ver discutido, perante os tribunais nacionais, o problema que o atormenta há anos: o de se não poder defender pessoalmente em matéria penal, mas apenas com a assistência de um defensor.
Na realidade, não é apenas a norma do art. 302º do CPP que estará em causa, para o reclamante, mas sim, também, a prevista no art. 64º do mesmo Código, que nem sequer é citada no presente requerimento de reclamação para a conferência.
9º
Sintomático, a este propósito, o despacho do Meritíssimo Juíz de fls. 374 dos autos, em que este refere, designadamente:
“Nos termos do artigo 83º da LTC nos recursos para o TC é obrigatória a constituição de advogado.
Ao contrário do que se verificava no recurso interposto pelo arguido precisamente contra aquela decisão – que motivou a decisão de (então) admitir o recurso subscrito pelo próprio – não está agora já em causa decisão referente à possibilidade do mesmo advogar em causa própria mas, de outro modo, a decisão instrutória de pronúncia.
Assim, antes de mais, notifique a defensora do arguido para esclarecer se subscreve e/ou ratifica o recurso interposto (com cópia).”
10º
Sintomático, da mesma forma, no seguimento do despacho anterior, a declaração subscrita pela defensora do ora reclamante (cfr. fls. 376 dos autos), segundo a qual “vem esclarecer que os direitos do arguido foram devidamente assegurados no decurso do Debate Instrutório, pelo que, não subscreve e/ou ratifica o recurso interposto”.
11º
Querela antiga, diga-se, que tem atormentado o ora reclamante em sucessivos processos, nacionais e internacionais e que levaram, já, à prolação de um Acórdão de não conhecimento pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (cfr. Anexo 1) e de uma Decisão de mérito pelo Comité das Nações Unidas dos Direitos Humanos (cfr. Anexo 2).
12º
Invoca, também, o ora reclamante (cfr. fls. 398-399 dos autos):
“7. Já sobre o segundo argumento brandido na Decisão em análise, forçoso será notar que, patentemente, a justificação apresentada pelo Recorrente para faltar à audiência de debate instrutório (por mero lapso, irrelevante, dita de «julgamento») foi a falta de notificação à sua pessoa da decisão tomada por esse mesmo Tribunal supremo numa reclamação por si oportunamente interposta (autuada no Proc. nº 665/12 da 3ª Secção), por via da qual pretendia lhe fosse reconhecido o direito processual fundamental a assegurar pessoalmente, e só por si, a sua própria defesa. Isto dito,
8. Impor-se-á concluir que, primo, seria afinal ao Mmo JIC em ação que, face ao motivo invocado, competiria decretar o adiamento do debate – independentemente, portanto, de requerimento do arguido nesse sentido: o artigo 300º invocado não exige que este requeira tal, apenas prevê que manifeste a sua impossibilidade de estar presente por força de condicionalismos envolventes, como sucedeu -, o que aquele Magistrado deveria certamente ter feito se, ex vi Constitutionem, decidisse desaplicar, conforme ab initio requerido pelo ora Recorrente, as normas jusprocessuais penais em crise; e,
9. secundo, a faculdade de um cidadão «prestar declarações como arguido» não é, de modo algum, a expressão do direito processual fundamental garantido quer pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem quer pelo Pacto das Nações Unidas sobre os Direitos Civis e Políticos: é tão só a manifestação da dependência de uma pessoa, dum ser humano, perante outras, ao autorizar-lhe um sistema de justiça iníquio, retrógrado, tão-só que «responda ao que lhe for perguntado» pelo juiz ou pelos causídicos em funções. Portanto,
10. as normas permitindo in casu ao Recorrente, única e simplesmente, «prestar declarações» são, conforme pré-arguido por este, materialmente inconstitucionais: a sua aplicação não pode, obviamente, ver validada.”
13º
Ora, uma tal argumentação, dir-se-á tautológica e primordial, que percorre toda a argumentação do recorrente, qualquer que seja a fase do processo em que possa estar envolvido, não anula a justeza da posição do Ilustre Conselheiro Relator na Decisão Sumária reclamada.
Por um lado, com efeito, a inconstitucionalidade invocada não constituiu ratio decidendi da decisão recorrida. Por outro, o Recorrente não requereu o adiamento do debate instrutório, podendo sempre, querendo, prestar declarações como arguido, assim assegurando os seus direitos de defesa.
Acresce, como igualmente referido em momento anterior, que “o juiz considerou existirem “indícios suficientes da factualidade relatada na acusação pública”, bastando-se para o efeito com a prova indicada na acusação, a qual assumia natureza essencialmente documental”, pelo que a audição do arguido não revestiria, no debate instrutório, a importância que, certamente, revestiria em audiência de julgamento.
14º
Assim, terá de concluir-se que a reclamação para a conferência, em apreciação, não deverá merecer provimento.
Não se vislumbram, com efeito, razões para alterar a Decisão Sumária 594/12, de 12 de dezembro, que determinou a sua apresentação.
É este, pelo menos, o entendimento deste Ministério Público.
(…)›
II. Fundamentação
4. A decisão sumária reclamada tem o seguinte teor:
‹(…)
1. A., melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, da decisão instrutória proferida em 20 de setembro de 2012 pelo Juízo de Instrução Criminal de Águeda, pretendendo ver sindicada a «inconstitucionalidade material das normas dos n.ºs 2 e 4, principalmente, do artigo 302.º do Código de Processo Penal implicitamente aplicadas, necessariamente, no rito do debate instrutório recém-realizado, porquanto consumando violação “de garantias de defesa consagradas no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição”: designada e muito concretamente, “dos direitos fundamentais de ordem jus-internacional análogos a constitucionais, maxime o direito ao processo equitativo”».
2. Com efeito, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido – ora recorrente – imputando-lhe a prática de um crime de injúria agravada (cfr. artigos 181.º, n.º 1, 182.º, 183.º, n.º 1, alínea a), e 184.º, por referência aos artigos 132.º, n.º 2, alínea l), e 188.º, n.º 1, alínea b), todos do Código Penal). Discordando da acusação deduzida, o ora recorrente requereu a abertura de instrução. Notificado da data de realização da audiência instrutória (fls. 344 a 346), o arguido apresentou justificação para a sua ausência, não tendo, no entanto, solicitado o respetivo adiamento. Depois de ter lugar a audiência de debate instrutório – que ocorreu em 11 de setembro de 2012 – mas antes de lida a respetiva decisão instrutória – que seria proferida em 20 de setembro de 2012 – o recorrente apresentou requerimento com data de 19 de setembro de 2012, dirigido ao Juízo de Instrução Criminal, onde avançou o seguinte:
«(...)
A) A audiência de debate instrutório sub judicio, nas condições em que foi de facto realizada: com preterição deliberada do direito do próprio processado a usar da palavra em sua legítima defesa, releva, necessária e inquestionavelmente, da aplicação ao caso das normas materialmente inconstitucionais dos n.ºs 2 e 4, principalmente, do artigo 302.º do Código de Processo Penal, porquanto em violação, textualmente, das garantias de defesa consagradas no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, designada e muito concretamente, dos direitos fundamentais de ordem jus-internacional análogos a constitucionais, maxime o direito ao processo equitativo, que este principal interessado vem invocando desde, inclusive, as suas alegações de recurso autuadas em 18-10-2010. E,
B) Por consequência, a própria decisão instrutória exaranda, qualquer que seja o seu teor, enferma, irredutivelmente, dessa inconstitucionalidade normativa congénita.
(...)»
Na decisão instrutória, o Juízo de Instrução Criminal de Águeda considerou estarem verificados “indícios suficientes da ocorrência da factualidade relatada na acusação pública que tornam provável a futura condenação do arguido”, tendo, em consequência, proferido um despacho de pronúncia. Sobre o requerimento apresentado pelo arguido (fls. 354), decidiu aquele tribunal, em despacho de fls.365, o seguinte:
«(...)
- Requerimento do arguido constante de fls. 354 e ss:
O Debate Instrutório foi realizado nos presentes autos com a presença da Defensora do Arguido que, de resto, não se opôs à sua realização e o arguido foi pessoalmente notificado da data do mesmo, tendo requerido a justificação da sua falta mas não o seu adiamento, sendo certo que, independentemente da questão da sua representação em juízo, sempre poderia, querendo, ter prestado declarações como arguido.
(...)»
Seguiu-se, por fim, o requerimento de recurso de constitucionalidade já mencionado (fls. 370), com data de 5 de Outubro de 2012. Na sequência de tal requerimento, o Juízo de Instrução Criminal proferiu o despacho de fls. 377 admitindo o recurso de constitucionalidade interposto pelo recorrente.
1. Porém, visto que tal despacho não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. artigo 76.º, n.º 3, da LTC), e atento o facto de o presente caso se enquadrar na hipótese normativa delineada no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, passa a decidir-se nos termos e com os seguintes fundamentos.
2. O presente recurso de constitucionalidade é interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, preceito que faz depender o conhecimento do objeto do recurso de uma série de pressupostos processuais. Necessário se revela, portanto, que para além de esgotados os recursos ordinários tolerados pela decisão, o recorrente haja, durante o processo, suscitado de forma adequada o incidente de inconstitucionalidade, incidente que – sublinhe-se – deve respeitar a normas jurídicas que hajam constituído ratio decidendi da decisão recorrida (cfr., entre muitos outros, o Acórdão n.º 355/2005, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
3. Ora, conforme resulta dos autos, as normas jurídicas objeto do recurso de constitucionalidade – a saber, o artigo 302.º, n.º 2 e 4, do Código de Processo Penal, não foram ratio decidendi da decisão recorrida, que, in casu, vem a ser a decisão instrutória. Por outras palavras, a norma impugnada pelo recorrente não constituiu “fundamento determinante” da decisão recorrida (cf. Acórdão n.º 101/85, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), algo que só ocorre quando o juízo explícita ou implicitamente veiculado pelo tribunal a quo sobre a respetiva constitucionalidade – e que justificou a sua aplicação no processo-base – se projete objetivamente no conteúdo da decisão, moldando-a e determinando o seu sentido (Blanco de Morais, Justiça Constitucional – Tomo II, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2011, p. 750). Por conseguinte, quando a decisão recorrida tenha subjacente um fundamento alternativo, que sempre imporia ou determinaria a solução encontrada (Victor Calvete, “Interesse e relevância da questão de constitucionalidade, instrumentalidade e utilidade do recurso de constitucionalidade – quatro faces de uma mesma moeda”, Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Cardoso da Costa, Coimbra Editora, 2004, p. 405), há que concluir que a norma objeto de recurso de constitucionalidade não foi ratio decidendi da decisão recorrida.
Sucede, porém, que os preceitos em crise não foram ratio decidendi – leia-se, fundamento determinante – da decisão recorrida, que o recorrente identifica como sendo a decisão instrutória. Nesta, o juiz considerou existirem “indícios suficientes da factualidade relatada na acusação pública”, bastando-se para o efeito com a prova indicada na acusação, a qual assumia natureza essencialmente documental.
Depois, mesmo que se considerasse que o despacho proferido autonomamente pelo juiz de instrução criminal em fls. 365 integrava, afinal, a decisão a instrutória, ainda assim seria de rejeitar o conhecimento do objeto do recurso. Na verdade, a razão pela qual o recorrente não pôde exercer, na audiência instrutória, o “direito a usar da palavra em sua legítima defesa” não resultou do facto de o artigo 302.º, n.º 2 e 4, do Código de Processo Penal não conceder tal faculdade ao arguido propriamente dito (mas apenas ao seu defensor). Pode ler-se naquele preceito, com efeito, o seguinte:
«(...)
Artigo 302.º
Decurso do debate
1 - O juiz abre o debate com uma exposição sumária sobre os atos de instrução a que tiver procedido e sobre as questões de prova relevantes para a decisão instrutória e que, em sua opinião, apresentem caráter controverso.
2 - Em seguida concede a palavra ao Ministério Público, ao advogado do assistente e ao defensor para que estes, querendo, requeiram a produção de provas indiciárias suplementares que se proponham apresentar, durante o debate, sobre questões concretas controversas.
3 - Segue-se a produção da prova sob a direta orientação do juiz, o qual decide, sem formalidades, quaisquer questões que a propósito se suscitarem. O juiz pode dirigir-se diretamente aos presentes, formulando-lhes as perguntas que entender necessárias à realização das finalidades do debate.
4 - Antes de encerrar o debate, o juiz concede de novo a palavra ao Ministério Público, ao advogado do assistente e ao defensor para que estes, querendo, formulem em síntese as suas conclusões sobre a suficiência ou insuficiência dos indícios recolhidos e sobre questões de direito de que dependa o sentido da decisão instrutória.
5 - É admissível réplica sucinta, a exercer uma só vez, sendo, porém, sempre o defensor, se pedir a palavra, o último a falar.
(…)»
Isto porque, mesmo que tal faculdade estivesse ou devesse estar contida naquele preceito, nunca poderia o recorrente ter dela beneficiado a partir do momento em que, tendo justificado a sua falta à audiência instrutória, não requereu o seu adiamento, talqualmente previsto no artigo 300.º, do Código de Processo Penal. Depois, das normas em crise não resulta qualquer proibição, para o arguido, de prestar declarações na audiência instrutória (cfr. artigo 60.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal), se assim o desejar, desde que, claro, não renuncie ao direito de estar presente naquela audiência.
Esta dupla proposição é confirmada pelo juiz de instrução criminal (fls. 365):
«(…)
O Debate Instrutório foi realizado nos presentes autos com a presença da Defensora do Arguido que, de resto, não se opôs à sua realização e o arguido foi pessoalmente notificado na data do mesmo, tendo requerido a justificação da sua falta mas não o seu adiamento, sendo certo que, independentemente da questão da sua representação em juízo, sempre poderia, querendo, ter prestado declarações como arguido.
(…)»
Deflui do exposto que a orientação ou sentido plasmados na decisão instrutória – mesmo admitindo que esta abrange o despacho de fls. 365 - não resultaram de um juízo sobre a constitucionalidade do artigo 302.º, n.ºs 2 e 4, do Código de Processo Penal, mas de outros fundamentos aí elencados, concluindo-se, nessa medida, que tais preceitos não foram ratio decidendi da decisão recorrida. Assim sendo, não se encontram preenchidos os pressupostos processuais de que a CRP e a LTC fazem depender a admissibilidade do presente recurso de constitucionalidade.
5. Atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objeto do recurso.
(…)»
5. A reclamação apresentada pelo reclamante em nada impõe a alteração da decisão sumária proferida. Com efeito, o juízo de não conhecimento agora objeto de reclamação fundou-se no não preenchimento, pelo recurso de constitucionalidade interposto, dos pressupostos processuais inferidos a partir da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, concretamente, na circunstância de a interpretação normativa impugnada não ter sido ratio decidendi da decisão recorrida.
Tal interpretação, talqualmente invocada pelo reclamante em requerimento de fls. 354, pugnava pela inconstitucionalidade do artigo 302.º, n.ºs 2 e 4, do CPP, quando interpretado no sentido da “preterição deliberada do direito do próprio processado a usar da palavra em sua legítima defesa”, por violação das garantias de defesa consagradas no n.º 1 do artigo 32.º da CRP. Concluiu a decisão sumária que tal entendimento normativo não havia sido fundamento determinante da decisão instrutória, mesmo que nela se integrasse o despacho autonomamente proferido pelo juiz de instrução criminal de fls. 365. Tal conclusão assentou na convicção de que o não uso da palavra pelo arguido não se ficou a dever ao sentido extraído pelo juiz de instrução criminal a partir dos preceitos impugnados, mas à circunstância de o recorrente ter renunciado ao direito de estar presente no debate instrutório (cfr. artigo 300.º, do CPP).
Visando rebater o acerto da argumentação expendida na decisão sumária, sustenta agora o reclamante que “seria afinal ao Mmo. JIC em ação que, face ao motivo invocado, competiria decretar o adiamento do debate – independentemente, portanto, de requerimento do arguido nesse sentido: o artigo 300.º invocado não exige que este requeira tal, apenas prevê que se manifeste a sua impossibilidade de estar presente por força de condicionalismos envolventes, como sucedeu (…)”.
Porém, não tem razão. Cumpre desde logo esclarecer que a interpretação do artigo 300.º, do CPP, agora contestada pelo reclamante, foi aquela que, de forma implícita, esteve subjacente ao despacho de fls. 365, proferido pelo juiz de instrução criminal. Aí é possível ler, com efeito, o seguinte:
‹(…)
O Debate Instrutório foi realizado nos presentes autos com a presença da Defensora do Arguido que, de resto, não se opôs à sua realização e o arguido foi pessoalmente notificado da data do mesmo, tendo requerido a justificação da sua falta mas não o seu adiamento, sendo certo que, independentemente da questão da sua representação em juízo, sempre poderia, querendo, ter prestado declarações como arguido.
(…)›
Assim sendo, não se vislumbra o relevo que tal argumento possa ter na reapreciação da decisão sumária objeto de reclamação. Por um lado, não cabe ao Tribunal Constitucional sindicar da correção do iter hermenêutico percorrido pelo tribunal a quo a propósito do artigo 300.º, do CPP (v., entre outros, o Acórdão n.º 186/00, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Por outro, mesmo que assim não se entendesse, o momento processualmente adequado para a arguição da inconstitucionalidade de um tal entendimento teria sido o requerimento de fls. 354, ou mesmo o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional. Como é bom de ver, a arguição de uma questão de constitucionalidade na reclamação para a conferência (cfr. artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC) não é tempestiva, não sendo, via de regra, de admitir, à luz do disposto no artigo 72.º, n.º 2, da LTC, e da teleologia inerente aos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade (Carlos Blanco de Morais, Justiça Constitucional, tomo II, 2.ª ed., 2011, p. 759).
Depois, invoca ainda o reclamante que ‹a faculdade de um cidadão “prestar declarações como arguido” não é, de modo algum, a expressão do direito processual fundamental garantido quer pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem quer pelo Pacto das Nações Unidas sobre os Direitos Civis e Políticos: é tão-só a manifestação da dependência duma pessoa, dum ser humano, perante outras, ao autorizar-lhe um sistema de justiça iníquo, retrógrado, tão-só que “responda ao que lhe foi perguntado” pelo juiz ou pelos causídicos em funções.› Daqui decorre, portanto, que a controvérsia em torno do debate instrutório não tem que ver, no entender do reclamante, com o direito do arguido de prestar declarações, mas antes com “o direito, fundamental, de apresentar a sua própria defesa.”
Ora, também este arrazoado é de rejeitar. De facto, não foi esta a interpretação normativa suscitada pelo reclamante no requerimento de fls. 354, pelo que, atuando o Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, como instância de recurso, exige-se, bem entendido, coincidência entre a interpretação apreciada pelo tribunal recorrido e aquela que aquele Tribunal é chamado a reapreciar (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed. revista, 2010, p. 944). Esta coincidência é, in casu, inexistente, porque a “preterição do direito do próprio processado a usar da palavra em sua legítima defesa” não se confunde com o “direito fundamental de apresentar a sua própria defesa”.
Assim, dado que o (ora) reclamante apenas confrontou o tribunal recorrido com a primeira dessas interpretações, e não já com a segunda, é de reiterar o já veiculado na decisão sumária reclamada quanto a este ponto: o entendimento normativo extraído pelo reclamante dos preceitos impugnados não foi fundamento determinante da decisão recorrida. Se o reclamante não fez uso da palavra em sede de debate instrutório, tal circunstância não teve por base qualquer entendimento retirado pelo juiz a quo do artigo 302.º, n.º 2 e 4, do CPP, antes a opção por parte daquele de não estar presente nesse debate, de não requerer o respetivo adiamento, e de não prestar aí quaisquer declarações como arguido.
Confirma-se, pois, o acerto da decisão sumária reclamada quanto ao não preenchimento, no caso vertente, dos pressupostos processuais inerentes aos recursos de constitucionalidade da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC.
III. Decisão
6. Termos em que, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação apresentada e, por conseguinte, confirmar a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 29 de janeiro de 2013. – José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral - Joaquim de Sousa Ribeiro.