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Processo n.º 813/2012
3.º Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, A. veio interpor recurso, para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações posteriores (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
2. O recorrente foi condenado, em 1.ª Instância, na pena única de cinco anos e seis meses de prisão, pela prática de três crimes de abuso sexual de crianças e um crime de coação.
Inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 16 de maio de 2012, negou provimento ao recurso e confirmou o acórdão recorrido.
Notificado de tal aresto, o recorrente arguiu a sua nulidade.
Por acórdão de 11 de julho de 2012, foi julgada improcedente tal arguição.
É este acórdão que o recorrente identifica como decisão recorrida, no seu requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade.
Na aludida peça processual, o recorrente reporta-se ao objeto do recurso, nos seguintes termos:
“(…) O recorrente considera que aquele douto acórdão [de 11/07/2012] violou os princípios do direito ao recurso, do contraditório e do direito de defesa previstos nos nºs 20º e nº 1, 5º e 6 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, ao entender e defender a interpretação de que o artigo 412º nº 1 do Código de Processo Penal não tem que ser observado pela Relação do Porto, apesar de terem sido apresentadas conclusões sobre a medida da pena e o tribunal a quo não se ter pronunciado sobre essas conclusões, dizendo apenas que fica prejudicada a questão.”
3. Por decisão de 16 de outubro de 2012, tal recurso não foi admitido, com os seguintes fundamentos:
“(…) Dado que não foi suscitada durante o processo a inconstitucionalidade de qualquer norma aplicada no acórdão recorrido e que é suscitada antes a inconstitucionalidade do acórdão, que não é passível de ser sindicada, o recurso não é admissível.
Pelo exposto, não admito o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.”
É desta decisão, proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, que o recorrente presentemente reclama.
4. Para fundamentar a reclamação apresentada, manifesta o recorrente a sua discordância relativamente à decisão reclamada.
Refere que, aquando da invocação de nulidade do acórdão proferido em 16 de maio de 2012, invocou a inconstitucionalidade do artigo 412.º, n.º 1, do Código Penal, por violação dos artigos 20.º, n.º 1, e 32.º, n.os 1, 5 e 6, da Constituição da República Portuguesa. Assim, considerando o reclamante que tal norma foi aplicada na decisão recorrida, pelo menos implicitamente, no sentido por si questionado, conclui que não assiste razão ao Tribunal da Relação quando, no despacho reclamado, se refere à não suscitação prévia da questão em análise.
Acrescenta o reclamante que, sendo o recurso delimitado pelas conclusões, nomeadamente quanto à medida da pena, é de concluir que a circunstância de o acórdão de 16 de maio de 2012 não se pronunciar sobre a medida da pena, por considerar tal questão prejudicada, constitui violação do artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e interpretação redutora de tal norma.
Nestes termos, peticiona o reclamante a admissão do recurso de constitucionalidade oportunamente interposto.
5. O Ministério Público, no Tribunal Constitucional, começa por acentuar que o reclamante não enunciou, no requerimento de interposição de recurso, uma questão de inconstitucionalidade normativa, única que poderia constituir objeto idóneo do recurso de constitucionalidade. Ao invés, imputou a violação de princípios constitucionais à própria decisão jurisdicional.
Tal circunstância bastaria, de acordo com o reclamado, para indeferir a reclamação.
Acrescenta, porém, que, ainda que se vislumbrasse um conteúdo normativo na questão colocada, sempre se concluiria que a “interpretação” enunciada não corresponde ao sentido normativo aplicado na decisão recorrida.
Na verdade, de acordo com a decisão recorrida, a impugnação da medida da pena dependia do sucesso do recurso quanto à impugnação da matéria de facto. Porém, tal dependência não se encontra refletida na formulação que o recorrente escolheu para a questão plasmada no requerimento de interposição do recurso.
Por último, refere ainda o Ministério Público que a apreciação da questão colocada pelo reclamante não se revestiria de qualquer efeito útil, uma vez que a decisão recorrida expressamente refere que, não fora a aludida dependência, “a questão da medida da pena seria manifestamente improcedente, pois não é apresentada razão alguma (ou qualquer outra) para a redução da pena (…)”
Nestes termos, conclui pelo indeferimento da reclamação.
6. O reclamante foi notificado do parecer do Ministério Público, para, querendo, se pronunciar, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 69.º da LTC.
Respondendo a tal convite, apresentou peça processual, em que reitera que suscitou, no requerimento de arguição de nulidade, a inconstitucionalidade da norma que pretendia ver declarada inconstitucional, ou seja, o artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Mais refere que a inconstitucionalidade de tal norma, quando interpretada no sentido de o tribunal não ter que se pronunciar sobre as conclusões formuladas pelo recorrente, apenas foi invocada no momento aludido, por corresponder à única oportunidade processual para o efeito.
Assim, defendendo o reclamante que estão preenchidos todos os requisitos de admissibilidade do recurso, conclui pugnando pela sua admissão e consequente prosseguimento do processo.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
7. O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
8. Vejamos, então, se os aludidos requisitos – de necessária verificação cumulativa - se encontram preenchidos in casu.
Comecemos por analisar a natureza do objeto do recurso.
O recurso de constitucionalidade apenas pode incidir sobre a constitucionalidade de normas ou interpretações normativas e não de decisões, nomeadamente jurisdicionais, não compreendendo o nosso ordenamento jurídico a figura do recurso constitucional de amparo ou queixa constitucional.
A esse propósito, pode ler-se no Acórdão deste Tribunal Constitucional, com o n.º 633/08 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt ):
“ (…) cumpre acentuar que, sendo o objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas, que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em si própria, mesmo quando esta faça aplicação direta de preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto (correção do juízo subsuntivo).
Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efetuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao ato judicial de “aplicação” a violação (direta) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efetuado in concreto pelo tribunal a quo. A intervenção do Tribunal Constitucional não incide sobre a correção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida (…)”
Ora, analisado o requerimento de interposição do recurso, é manifesto que o reclamante pretende, não a sindicância da constitucionalidade de um verdadeiro critério normativo, mas a sindicância da própria decisão jurisdicional, a que, aliás, imputa expressamente, na mesma peça processual, a violação de vários princípios constitucionais.
De facto, o reclamante não autonomiza e enuncia qualquer critério normativo – entendido este como regra abstrata vocacionada para uma aplicação genérica - que, sendo extraído da interpretação do artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, seja ainda recondutível à literalidade de tal preceito.
Pelo contrário, a sua enunciação do objeto do recurso, centrando-se nas concretas circunstâncias do caso, apreciadas de acordo com a subjetiva perspetiva do reclamante, é manifestamente reveladora de que o mesmo pretende obter a sindicância da decisão recorrida, quanto ao concreto juízo de improcedência da arguição do vício de nulidade, componente que se encontra subtraída à competência deste Tribunal Constitucional.
Nestes termos, demonstrada a inidoneidade do objeto do recurso, torna-se ociosa a discussão sobre a verificação dos restantes pressupostos de admissibilidade do recurso - atenta a sua natureza cumulativa – concluindo-se, desde já, pela inadmissibilidade do recurso e pela improcedência da reclamação.
III - Decisão
6. Pelo exposto, decide-se julgar inadmissível o recurso de constitucionalidade interposto e, em consequência, julgar improcedente a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 22 de janeiro de 2013 – Catarina Sarmento e Castro – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral