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Proc. nº 2/02 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional:
1 – M... e mulher, identificados nos autos, interpuseram recurso para este Tribunal do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, documentado a fls. 12 e segs, e dos subsequentes que lhe indeferiram os pedidos de esclarecimento e de reforma daquele aresto, pretendendo a apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 116º do Código do Registo Predial e do Decreto-Lei nº 284/84, de 22 de Agosto que violariam os artigos 2º, 13º, 20º,
203º, 204º e 205º da Constituição.
O recurso não foi admitido conforme despacho certificado a fls. 25.
É deste despacho que os requerentes agora reclamam nos seguintes termos:
“Os reclamantes interpuseram recurso do acórdão proferido nos autos em referência, para esse Tribunal Constitucional, com o fundamento de que, em tempo oportuno, suscitaram a violação do artº 116º do Código de Registo Predial e o constante do Decreto- Lei nº 284/84 de 22 de Agosto.
Veio o douto despacho reclamado o qual não admite o recurso, “Por se entender que já não está em tempo de suscitar a inconstitucionalidade do artº
116º do CRP...”
Mas, salvo o devido respeito, entendemos que o Exmo. Senhor Juiz Desembargador Relator não tem legitimidade para não admitir o recurso para esse Tribunal, pois só este é que poderia decidir da tempestividade ou não daquela suscitação.
Termos em que requer que seja revogado aquele despacho e que seja proferido outro a admitir o recurso.”
O Exmo. Magistrado do Ministério Público sustenta que a reclamação deve ser indeferida, nos seguintes termos:
“A presente reclamação é manifestamente improcedente, já que – por um lado – não se mostra sequer delineada, pelo recorrente, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa – suscitada em termos procedimentalmente adequado, de modo a constituir objecto idóneo de um recurso fundado na alínea b) do nº. 1 do artigo 70º da Lei nº. 28/82; na verdade, o recorrente limitou-se a imputar, em termos vagos, genéricos e perfeitamente injustificados a pretensa inconstitucionalidade à “aplicação” das normas que referencia, sem especificar minimamente qual a concreta dimensão interpretativa que reputa de inconstitucional.
Por outro lado, tal questão apenas foi levantada no âmbito de um pedido de reforma do acórdão proferido pela Relação, deduzido, aliás, manifestamente fora dos pressupostos em que tal incidente pós decisório tem cabimento e admissibilidade – sendo certo que o entendimento acerca da inidoneidade do procedimento de que lançou mão, com base nos referidos preceitos legais, há muito que constava do processo, tendo, aliás, a petição apresentada sido objecto de indeferimento liminar, confirmado pelo acórdão da Relação, que carece, deste modo, manifestamente de natureza ou carácter inovatório ou surpreendente.”
Cumpre decidir.
2 – Resulta dos autos:
- Por sentença do 1º Juízo Cível do Tribunal da Comarca de Viseu foi liminarmente indeferida a petição inicial em acção de justificação judicial intentada pelos ora reclamantes.
- Desta sentença foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, invocando os recorrentes a violação do disposto nos artigos 2º, 3º e
6º do Decreto-Lei nº 284/84, 60º, 88º a 90º e 116º do Código de Registo Predial e 234º nº 4 nº 4 e 234º-A nº 1 do Código de Processo Civil e não tendo suscitado qualquer questão de inconstitucionalidade.
- O acórdão de fls. 12 e segs. negou provimento ao recurso.
- Na parte que interessa, o acórdão começa por interpretar parte do pedido formulado pelos requerentes. E diz:
“(...) a) Caso do prédio rústico com a inscrição matricial 3782ª
Estando o mesmo descrito na CRP, com o nº 973/930324, por virtude de doação, efectuada por José Rodrigues Correia e mulher, a favor de Maria Amélia Correia, subsistindo sobre ele, apenas, a inscrição de aquisição de 1/7, constante da inscrição matricial em nome daquele e, depois, desta, pretendem os requerentes obter o registo de parte – 1/7, constante da inscrição matricial, em nome do requerente – mas, determinado e autonomizado, alegando que o adquiriram, por partilhe verbal, efectuada, há mais de 40 anos, por óbito dos pais dele – o António Rodrigues Correia, 1º titular da inscrição matricial – invocando a usucapião, com todos os seus elementos.
b) Caso do prédio rústico, com a inscrição matricial 1220ª
Estando o mesmo descrito, na CRP, com o nº 463/930324, tendo sido inscrito, por virtude da compra, efectuada por António Rodrigues Correia e mulher Sara de Azevedo da Câmara Pestana de Lemos e Sousa, registada em
32/09/27, subsistindo sobre ele a inscrição de aquisição de 1/6, constante da inscrição matricial, em nome de José Rodrigues Correia, a favor deste, por doação e partilha, em 93/03/24, e a inscrição desta ora dita fracção, por doação de José Rodrigues Correia e mulher a Maria Natália Figueiredo Correia Monteiro, pretendem os recorrentes obter o registo do 1/6, constante da inscrição matricial, em nome do requerente, mas, autonomizado, alegando a aquisição, pela partilha verbal, antes referida; e alegando mais que. sobre parte da dita fracção autonomizada, construíram, de novo, há mais de 20/30 anos, o prédio urbano, com a inscrição matricial urbana 289ª, pretendem obter, aí, também, o registo desta inscrição, invocando a usucapião, com todos os seus elementos.”
Segue-se a definição do direito aplicável nos seguintes termos:
“3 – O processo de justificação judicial dos artºs 116º do CRP e 1º do Dec.-Lei 284/84 – tal como a justificação notarial dos artºs 116º do CRP e
100º e 101º do C. Notariado – serve para 1) a 1ª inscrição (registo prévio), tendo lugar quando o prédio a justificar não está descrito, nem subsiste sobre ele inscrição de aquisição, ou seja, para o “estabelecimento do trato sucessivo”
– nº 1; 2) “reatamento do trato sucessivo”, tendo lugar quando o prédio a justificar está descrito, subsistindo sobre ele inscrição de aquisição, mas não há documentos comprovativos para poder restabelecer o sucessivo encadeamento dos actos, até ao requerente – nº 2; 3) “estabelecimento de novo trato sucessivo”, tendo lugar quando, na hipótese anterior, falta não o título, mas o acto a documentar, não havendo solução de continuidade, na cadeia das aquisições derivadas, fazendo-se o estabelecimento de novo trato, a partir da aquisição, pela usucapião.”
Finalmente, o acórdão de fls. 12 e segs. aplica o direito aos factos, como segue:
“4 - Se bem se atentar, os requerentes pretendem a 1ª inscrição, para a inscrição matricial urbana 289ª - construção por eles levada a cabo em parte da inscrição matricial rústica 1220ª, com o registo 463 da CRP – mas distinta, determinada e autonomizada desta.
Quanto ás outras inscrições matriciais rústicas 1220ª e 3782ª - registos 463 e 973 – embora pareça pretenderem o estabelecimento de novo trato, a partir da aquisição por usucapião, com base na aquisição originária, por faltar o invocado acto da partilha (verbal), pedem a sua determinação e autonomização delas, com indicação de confrontações próprias e distintas delas, e tendo feito contas às áreas originais, indicaram outras novas áreas – o total menos 1/6 e menos 1/7.
5 – Ora, se eles podem ter adquirido a propriedade da inscrição matricial urbana 289ª, com exclusão de outrém, por acessão imobiliária, na parte do terreno adquirido por usucapião, nos termos do artº 1325º e segs. do C. Civil, em relação às outras inscrições matriciais rústicas 1220ª e 3782ª, invocada a sucessão e partilha, os restantes co-herdeiros receberam esses bens pela mesma forma e pelo mesmo título.
6 – Se os requerentes tivessem pedido a justificação judicial, apenas das suas ditas fracções de 1/6 e 1/7, não haveria qualquer obstáculo à pretendida justificação, uma vez que os mesmos teriam adquirido a posse e consequentemente a propriedade através da usucapião, conjuntamente com os demais herdeiros do António Rodrigues Correia e mulher, sendo assim todos comproprietários das ditas inscrições matriciais, nada obstando ao registo das fracções de 1/7 e 1/6 delas a seu favor – tal como outros adquirentes e interessados já o conseguiram antes.
7 – Como os requerentes pretendem obter o registo de prédios determinados, distintos e autónomos, com áreas definidas e confrontações já actuais, com novos proprietários, estão eles a reivindicar a sua propriedade exclusiva sobre prédios determinados, distintos e autónomos, o que só pode obter-se através da acção declarativa correspondente proposta contra os demais comproprietários, para os convencerem dessa aquisição determinada e autonomizada das fracções deles e não através da acção especial de justificação judicial que intentaram.
8 – Entendemos assim, que para além do mais, os requerentes quiseram andar depressa demais. Melhor fora se tivessem requerido a justificação judicial das suas fracções de 1/6 e 1/7 sobre a totalidade dos prédios em causa, tal como constam das inscrições matriciais e do registo, acção essa nos termos do artº
116º do CRP e Dec-Lei 284/84, contra o M.P.. interessados incertos e titulares da última inscrição.
Obtido isso, então através da acção de reivindicação – se a divisão de coisa comum não for viável – poderão conseguir o registo dos pretendidos determinados e autonomizados prédios.”.
- Vieram, depois, os ora reclamantes pedir o esclarecimento do citado acórdão, o que lhes foi negado.
- Ainda inconformados, requereram a reforma ao abrigo do artigo 669º nº 2 alíneas a) e b) do Código de Processo Civil.
- No respectivo requerimento disseram a concluir:
“Pela jurisprudência das cautelas desde já se suscita a inconstitucionalidade na aplicação das normas no mesmo citadas, bem como neste pedido de reforma, por violação dos artºs 2º, 13º, 20º, 204º e 206º da Constituição de República Portuguesa, o que só agora se faz, por anteriormente ser imprevisível e só agora se verificarem estas irregularidades”
- O pedido de reforma foi indeferido, pelo acórdão documentado a fls. 22.
3 – Como se deixou dito, o recurso para este Tribunal não foi admitido por despacho do Relator no Tribunal “a quo” que se expressou nos seguintes termos:
“Por se entender que já não está em tempo de suscitar a inconstitucionalidade do artº 116º do CRP e, sequer para o Tribunal Constitucional, não se admite o recurso interposto, por intempestivo.
.............................................................................................................”
Ora, em primeiro lugar, há que interpretar este despacho dada a sua aparente equivocidade quando nele se alude a “não est[ar] em tempo se suscitar a inconstitucionalidade” e, simultaneamente, à não admissão do recurso “por ser intempestivo”.
Apesar de, com tal expressão, se poder entender que a não admissão do recurso se fundamentaria no desrespeito do respectivo prazo de interposição, entende-se - fundamentalmente, pelo trecho inicial do despacho e por, de todo em todo, se não ver que aquele prazo tivesse expirado à data da interposição do recurso (o prazo não corria enquanto não tivessem sido decididos os pedidos de esclarecimento e de reforma) - que o fundamento do despacho reclamado assenta na
“intempestividade” da suscitação da questão de constitucionalidade, ou seja, no facto de esta não ter sido suscitada – usando os termos do artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC – “durante o processo”.
Foi, aliás, assim, que os reclamantes o entenderam, limitando a impugnação do despacho a uma alegada falta de poderes do relator no tribunal “a quo” para não admitir o recurso com tal fundamento – esses poderes caberiam, em exclusivo, ao Tribunal Constitucional.
Interpretado deste modo o despacho reclamado, manifesto é que a sua impugnação não merece acolhimento.
Com efeito, sendo certo que a última palavra em matéria de admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional compete a este mesmo Tribunal (cfr. artigo 76º nºs 3 e 4 da LTC), não menos o é que os poderes conferidos pelo artigo 76º nºs 1 e 2 da LTC ao tribunal que profere a decisão recorrida compreendem o conhecimento de todos os pressupostos de admissibilidade do recurso, neles se incluindo o da oportunidade da suscitação da questão de constitucionalidade (”durante o processo”).
Indo mais além dos termos da impugnação dos reclamantes, não pode deixar de se sufragar a tese do despacho reclamado.
Com efeito, como é jurisprudência pacífica deste Tribunal, o pedido de reforma da decisão recorrida não é, em regra, o momento apropriado para suscitar a questão de constitucionalidade que se pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional (cfr. Acórdãos nºs 364/00, ainda inédito e 418/98 publicado in DR, II Série, de 20/7/98). Não é, como não foi aqui, em que a aplicação das normas em causa se não deveu a “lapso manifesto”.
Ora os reclamantes só suscitaram a questão de constitucionalidade – de resto sem a mínima substanciação e alegadamente “justificada” pela “jurisprudência das cautelas”– no pedido de reforma. E podiam (deviam) fazê-lo aquando do recurso interposto do despacho de indeferimento liminar da petição inicial, sendo certo que, de acordo com o que consta do relatório do acórdão de fls. 12 e segs, a tese sustentada nesse despacho (a acção de justificação teria como pressuposto
“a necessária correspondência entre os factos alegados e os dados objectivos, constantes dos documentos, relativos à descrição dos prédios, correspondência que se não verifica, restando [aos requerentes] o recurso aos meios comuns, para obterem o reconhecimento dos seus direitos” não diferia substancialmente da que foi sufragada pela Relação de Coimbra.
Em contrário do que alegam os recorrentes, uma vez mais sem qualquer justificação, não se verifica, deste modo, no acórdão recorrido, qualquer
“decisão surpresa” que, a verificar-se, dispensaria mesmo a suscitação da questão de constitucionalidade no referido pedido de reforma.
4 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa, 5 de Fevereiro de 2002 Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa