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Processo nº 281/00
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - A Caixa de Crédito.... (doravante designada por Caixa) instaurou, no Tribunal Judicial da comarca de Portalegre, acção executiva ordinária contra A ... e mulher, M..., identificados nos autos, com o objectivo de, por esse meio, obter o pagamento de determinada quantia, garantida por hipoteca constituída sobre um prédio urbano destes últimos.
Citados os executados e efectuada a penhora, veio a exequente aos autos comunicar que se encontrava totalmente liquidada a quantia exequenda, bem como os respectivos juros, assim requerendo a remessa dos autos à conta e a extinção da instância.
A execução foi sustada e os autos levados à conta. No entanto, não tendo os executados pago as custas contadas, o Ministério Público promoveu o prosseguimento dos autos e fez registar a penhora do imóvel, após o que se deu cumprimento ao disposto no artigo 864º do Código de Processo Civil
(CPC).
Efectuada a venda, por negociação particular, o Juiz declarou cancelados os direitos de garantia e demais direitos que oneravam o imóvel vendido, do que se deu conhecimento à Caixa, que veio arguir a nulidade da venda, por falta de citação, nos termos do artigo 864º, nº 3 (1ª parte), do CPC.
O Juiz, por despacho de fls. 39 e segs. dos presentes autos, reconheceu a falta de citação da Caixa para reclamar os seus créditos e anulou o processado, a fim de, citada essa entidade, eventualmente se proceder a nova verificação e graduação de créditos, mas exceptuou a venda da anulação, essencialmente com fundamento do nº 3 do citado artigo 864º, no entendimento, doutrinariamente apoiado, de que, em regra geral, as vendas ou adjudicações não se anulam, uma vez que a lei quis proteger a tutela do terceiro adquirente, que concorre à aquisição dos bens e não tem responsabilidade pela falta de citação.
2. - Desta decisão agravou a exequente para o Tribunal da Relação de Évora, tendo suscitado – no que ora interessa ao presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade – a questão da inconstitucionalidade da interpretação concedida àquele nº 3 do artigo 864º, que, sonegando ao credor hipotecário o conhecimento do estado da pendência da acção executiva e da respectiva venda e, do mesmo passo, limitando a anulação dos actos processuais nos termos feitos, não permite o exercício do direito de preferência ou de remição, consubstanciando violação ao disposto nos artigos
20º, nºs. 1 e 4, 202º, nº 2, e 204º da Constituição da República (CR).
3. - O Tribunal da Relação de Évora não partilhou, no entanto, do ponto de vista da recorrente e negou provimento ao agravo, confirmando o despacho decisório recorrido.
Aí se escreveu, designadamente, resultar do nº 3 do artigo 864º do CPC de que só são anulados os actos de pagamento, de venda de bens, de remição e de adjudicação de bens de que o exequente seja o exclusivo beneficiário, exceptuando-se da consequência desse vício os actos de venda, de adjudicação, de remição ou de pagamento de que o exequente não haja sido o único beneficiário.
No tocante à específica questão de constitucionalidade, o aresto considerou que a interpretação dada ao segmento do nº 3 do artigo 864º relativo à anulação da venda “não viola, manifestamente, qualquer das referidas normas da Constituição”.
Como então se ponderou:
“O artigo 20º da Constituição refere-se ao acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, estabelecendo o nº 1 que “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos; e o nº 4 estatui que ‘todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitatito’. Também aqui não se vislumbra que a interpretação acolhida do mencionado segmento do nº 3 do art. 864º do CPC possa ter violado os princípios dos nºs. 1 e 4 do art. 20º da Constituição, pois à agravante não foi negado o acesso ao tribunal, nem foi privada de aceder ao tribunal em condições de igualdade.”
Por sua vez, nega-se qualquer paralelismo com a situação apreciada no acórdão do Tribunal Constitucional nº 516/93 (publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Janeiro de 1994), invocado nas alegações da recorrente, uma vez que esta se debruçou sobre a constitucionalidade dos artigos
4º do Dec. Lei 33.276, de 24 de Novembro de 1943, e 18º, nº 3, do Dec. Lei
693/70, de 31 de Dezembro, ao preverem um tratamento diferenciado para a D... nos casos em que se ordena a venda em processos em que esta seja exequente ou reclamante, com a cominação expressa de que a falta de notificação à Caixa do despacho que ordenar a venda de bens que garantam créditos por si concedidos importará a anulação da mesma venda.
A questão apreciada foi, assim, considerada distinta daquela que vem equacionada no recurso, porquanto a agravante não goza do estatuto particular que a lei atribuía à D....
Não está, pois, ferido de inconstitucionalidade o segmento da norma do nº 3 do art. 864 do CPC em apreciação neste recurso e com o sentido interpretativo que se deixou consignado – concluiu-se.
4. - Inconformada, recorreu a Caixa para o Supremo Tribunal de Justiça, retomando a problemática da inconstitucionalidade, acrescentando ao elenco de normas supostamente afrontadas, as do artigo 13º, nº 1, e do nº 5 do artigo 20º da lei fundamental.
Também aqui sem êxito. Ao negar provimento ao agravo, e no que à matéria da competência deste Tribunal respeita, ponderou o Supremo, no seu acórdão de fls. 156 e segs.:
“Antes de mais, entende-se que a situação do exequente, que é a recorrente, quando o MP vem requerer o prosseguimento na execução, para cabal pagamento das custas, não implica que tenha de ser citado para vir reclamar o seu crédito. Ele ao intentar a execução veio pedir o pagamento do seu crédito, não fazendo sentido que tenha de ser citado (quando a citação só se emprega nos casos do nº
1 do art. 228º do CPC). Para vir reclamar outros créditos, tinha que ser notificado (nº 2 do art. 228º). Afastada a qualidade de exequente do MP, que se limitou a requerer o prosseguimento da execução para total pagamento das custas, sendo a nulidade em causa a de falta de uma notificação, há que aplicar-lhe o regime dos arts. 201ºe ss., combinado com o princípio geral que se extrai do disposto no nº 3 do art.
864º. Face a ele, se o exequente não foi o exclusivo beneficiário, não sendo de considerar beneficiários o executado (porque quando a lei fala em ‘beneficiário’ está a referir-se aos que se cobraram de créditos de que o executado é devedor) nem o Estado, quando cobra custas (pois se limita a receber precipuamente o devido pelo serviço que é prestado pelo tribunal, alheio aos referidos créditos), segue-se que não pode senão aplicar o princípio plasmado no nº 3 do art. 864º. Porque a lei quis acautelar os interesses dos que adquirem os bens na execução e assim se entende a ressalva do citado nº 3, havendo casos em que, pagas à cabeça as custas, o exequente é exclusivo beneficiário do produto da venda, não se pode considerar que seja ofendido o princípio da igualdade (nº 1 do art. 13º da CRP), esteja a ser condicionado o acesso ao direito, em processo equitativo e efectivo
(nºs. 1. 4 e 5 do art. 20º da CRP), a cargo dos tribunais (nº 2 do art. 202º da CRP), pelo que não é caso previsto no art. 204º da CRP. Termos em que se nega provimento ao agravo, com custas pela recorrente.”
5.1. - Deste acórdão, interpõe agora a Caixa recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Recebido o recurso, escreveu-se que se pretende obter a apreciação da constitucionalidade da norma do nº 3 do artigo 864º do CPC no segmento “«...mas não importa a anulação das vendas, adjudicações, remições ou pagamentos já efectuados, das quais o exequente não haja sido exclusivo beneficiário, ficando salvo à pessoa que devia ter sido citada o direito de ser indemnizada, pelo exequente, do dano que haja sofrido», na medida em que, e à semelhança, do que entendeu o Tribunal ‘a quo’, impede que o credor com garantia real, não sendo citado para a execução, nos termos do artº 864/1/2 CPC, possa anular a venda e proteger a garantia do seu crédito, que atempadamente acautelara. Quando é certo que o mesmo credor com garantia real se for citado para a execução, mas ocorrer a preterição da notificação do despacho que ordena a venda e designa data, hora e local para a realização da mesma, os artºs. 886º -A/4,
909º/1 e 201º todos do CPC lhe permitem anular a venda efectuada [...]”
5.2. - A recorrente, ao alegar, apresentou as seguintes conclusões:
“A) Os presentes autos tiveram o seu início em acção executiva hipotecária intentada pela Recorrente contra os executados, tendo sido desde logo junta escritura da hipoteca e certidão do respectivo registo predial. B) A fls. 65, a Recorrente requereu a extinção da instância nos termos do art.
287º/ e) CPC, tendo o processo sido remetido à conta. C) Porém, as custas não foram pagas pelos executados, pelo que o M.P. promoveu o prosseguimento da execução para a sua cobrança, e foi neste âmbito que, sempre sem de tal se dar conhecimento à Recorrente, foi penhorado e vendido em hasta pública o imóvel sobre o qual esta tinha garantia real. D) O Tribunal ’ quo’ não procedeu à citação da Recorrente, em obediência e para os efeitos do disposto no artº 864º/1-b) e nº 2 CPC, pelo que aquela não reclamou o seu crédito. E) A Recorrente só com a notificação do requerimento de fls. 136 e do despacho de fls. 138, que sobre o mesmo recaiu, é que veio a tomar conhecimento da venda em hasta pública do bem imóvel penhorado nos presentes autos sobre o qual tinha garantia real. F) De imediato, a Recorrente invocou a falha da sua citação e arguiu a nulidade de todo o processado posterior ao requerimento do M.P., nos termos do art.
864º/3, 194º e 195º CPC. G) Porém, o Mmº Juiz ‘a quo’, dando, embora parcial provimento, ao pedido, fez subsistir no processo a venda já efectuada a terceiro, ao abrigo do art. 864/3 CPC, sendo tal decisão confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Évora e pelo Supremo Tribunal de Justiça. H) Esta última decisão afastando a qualidade de exequente do Ministério Público e imputando-a à aqui Recorrente conclui pela desnecessidade da citação prevista no artº 864º/2 do CPC e pela impossibilidade de anulação da venda, uma vez que considera que o exequente não foi seu exclusivo beneficiário. I) Importa, no entanto, lembrar que aqui a Recorrente ‘perdeu’ a qualidade de exequente com o seu requerimento de fls. 65 e consequente despacho de fls. 66, tendo actualmente, tão só, a posição processual de credor reclamante. J) Na verdade, a relação processual entre exequente e executado cessou quando transitou em julgado o despacho que declarou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, daí que o então exequente ( o ora Recorrente) tivesse perdido aquela qualidade. K) A execução foi renovada, mas por exclusivo impulso do MºPº (que assim assumiu a posição de exequente) e com o único objectivo de obter o pagamento de custas judiciais que o executado não pagara em tempo. L) Arredado da lide, que fora renovada e prosseguia de forma alheia ao exequente inicial, sempre se impunha, com a junção aos autos da certidão dos direitos,
ónus ou encargos inscritos (artº 864º/1 CPC), o chamamento a juízo da Recorrente
(enquanto credor com garantia real), nos termos e para os efeitos do disposto no nº 1 – alínea b) e nº 2 do citado preceito. M) E esse chamamento sempre deveria ser feito através de citação que não de notificação, como, aliás, expressamente, impõe o artº 864º/2 CPC. N) Por outro lado, pretende a douta decisão recorrida que beneficiário da venda será sempre tão somente quem, através da venda, «cobre créditos de que o executado é devedor», afastando com tal entendimento o Estado e o próprio executado, concluindo, no entanto, no sentido de considerar o terceiro adquirente de bem em hasta pública como co-beneficiário daquela venda. O) A questão de direito em apreço resulta da aparente opção da lei em proteger o terceiro adquirente em detrimento do titular do direito de crédito não citado e, igualmente, da dificuldade conceptual quanto ao que se deve entender pela expressão ‘o exequente não haja sido exclusivo beneficiário’. P) A decisão recorrida implica que o exequente só pode ser considerado exclusivo beneficiário da venda quando, for ele próprio o comprador ou o adjudicatário, sem que sobrevenham remições ou preferências e lhe caiba, em pagamento, todo o preço da coisa alienada. Q) O entendimento perfilhado com base no condicionalismo imposto pelo artº
864º/3 CPC é insusceptível de se verificar, tornando inexistente qualquer hipótese de anulação da venda efectiva com preterição de citação do credor com garantia real sobre o bem vendido. R) Na verdade, quer o executado, com o benefício correlativo ao pagamento da totalidade ou parte da dívida, quer o Estado, mercê do disposto no artº 455º do CPC, sempre terão de ser considerados como co-beneficiários da venda, pelo menos acompanhados do exequente. S) Acresce que o interesse do terceiro adquirente de um bem em hasta pública é o mesmo, quer seja perante a situação de preterição da citação de credor com garantia real, quer seja na situação de omissão da notificação ao mesmo do despacho quem ordena a venda e designa data, hora e local para a praça. T) Donde, mal se percebe que a lei possibilite a anulação da venda no caso da lata da referida notificação (artº 886º-A/4, 909º/1 –c) e 201º CPC) e inviabilize a mesma anulação no caso mais gravoso de omissão de citação de credor com garantia real (artº 864º /1 – b) /2 /3 CPC). U) Sendo certo que omitindo-se aquela citação se sonega ao credor qualquer hipótese de conhecimento sobre a pendência da acção executiva e da respectiva venda; porém, se omitir a notificação imposta pelo artº 886º - A/3 CPC, já o mesmo credor teve anterior conhecimento dos autos, impendendo sobre ele o dever geral de diligência de acompanhamento dos mesmos o que lhe permitirá, confrontado com ela, arguir a respectiva nulidade e pôs em causa a venda. V) Donde e sendo o bem jurídico protegido o mesmo, o interesse do terceiro adquirente, num caso e noutro, deve, até pela similitude de situações, por maioria da razão e por elementares critérios de igualdade e equidade constitucionalmente consagrados, e interpretação sistemática a assacar ao nº 3 do artº 864º do CPC, ser declarada a inconstitucionalidade do seguinte segmento do artº. citado:
«...mas não importa a anulação das vendas, adjudicações, remissões ou pagamentos já efectuados, das quais o exequente não haja sido exclusivo beneficiário, ficando salvo à pessoa que devia ter sido citada o direito de ser indemnizada, pelo exequente, do dano que haja sofrido». X) Na medida em que, e à semelhança, do que entendeu o Tribunal ‘a quo’, impede que o credor com garantia real, não sendo citado para a execução, nos termos do artº 864/1/2 CPC, possa anular a venda e proteger a garantia do seu crédito, que atempadamente acautelara. Z) Quando é certo que o mesmo credor com garantia real se for citado para a execução, mas ocorrer a preterição da notificação do despacho que ordena a venda e designa data, hora e local para a realização da mesma, os artºs. 886º-A/4,
909º/1 e 201º todos do CPC lhe permitem anular a venda efectuada. AA) Ora, a interpretação dada a este segmento da norma pelas instâncias afronta clamorosamente, além do mais o disposto nos artigos 13º/1, 20º/1/4/5, 202º e
204º todos da Constituição da República Portuguesa. BB) Na verdade, tal interpretação, no confronto com a solução adoptada para a falta de notificação do despacho que designe dia, hora e local para efectivação da praça, implica para o credor titular de garantia real injustificado tratamento desigual. CC) Sendo certo que a constituição de uma garantia real pressupõe um interesse que o credor pretendeu ver acautelado e que, à final resultará frustrado face à interpretação que é dada pelas instâncias ao disposto no artº 864º/3 do CPC. Termos em que deverá ser declarada a inconstitucionalidade do segmento do supra referido nº 3 do artº 864 do CPC por violar o disposto nos artºs. 13/1,
20/1/4/5, 202 e 204 todos da Constituição da República Portuguesa, com as demais consequências legais.”
5.3. - Por sua vez, o magistrado do Ministério Público competente neste Tribunal rematou, assim, as conclusões das respectivas alegações:
“1- Não é inconstitucional, por colidente com o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, o regime constante do nº 3 do artigo 864º do Código de Processo Civil, interpretado em termos de – prosseguindo certa execução, sob o impulso do Ministério Público, para cobrança das custas em dívida – a omissão de notificação de tal prosseguimento ao originário exequente – credor provido de garantia real sobre os bens penhorados – não implicar anulação da venda realizada a terceiro, conferindo-lhe apenas direito de indemnização contra o Estado-exequente, para ressarcimento dos danos causados com a caducidade de tal garantia real, nos termos do artigo 824º, nº 2, do Código Civil – e sem que, por força da omissão cometida, se tivesse podido produzir o efeito translativo estatuído no nº 3 deste preceito legal.
2- Na verdade, tal solução legal traduz realização de um adequado balanceamento ou ponderação de interesses entre o credor preterido e o terceiro adquirente dos bens – facultando àquele a possibilidade de uma efectiva e plena reparação pelo Estado dos danos causados com a preterição do contraditório e indevida preclusão da garantia real, sem pôr em causa as legítimas e fundadas expectativas de quem adquiriu judicialmente tais bens.
3- Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
6. – Posteriormente, foi lavrado despacho pelo ora relator, em
13 de Julho último, proporcionando às partes a oportunidade de se pronunciar sobre eventual não conhecimento do objecto do recurso.
Recorrente e recorrido, notificados, nada disseram.
II
1. - Constitui objecto do presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade a interpretação dada pelo acórdão recorrido à norma do nº 3 do artigo 864º do CPC, nos termos da qual a omissão do acto judicial destinado a convocação de credores e subsequente verificação de créditos, nos termos do nº 1 do mesmo preceito, em execução hipotecária cuja instância foi julgada extinta mas que prosseguiu sob o impulso do Ministério Público, para cobrança das custas em dívida, não importa a anulação da venda nesse interim efectuada do imóvel sobre o qual recaía o ónus real, entretanto caducado, de que o primitivo exequente era titular.
2.1. - Nos termos do nº 3 do artigo 864º do CPC, a falta das citações dos credores e do cônjuge do executado na fase processual de convocação de credores e verificação dos créditos, “tem o mesmo efeito que a falta de citação do réu [a implicar a anulação de todo o processado após a decisão inicial, apenas se salvando esta: cfr. artigo 194º, aplicável ex vi do artigo
801º, ambos do CPC], mas não importa a anulação das vendas, adjudicações, remições ou pagamentos já efectuados, dos quais o exequente não haja sido exclusivo beneficiário, ficando salvo à pessoa que devia ter sido citada o direito de ser indemnizada, pelo exequente, do dano que haja sofrido”.
2.2. - Não sendo um preceito de linear exegese, vem-se entendendo, sedimentadamente, que a lei, entre o interesse do cônjuge ou do credor prejudicado pela falta de citação e o interesse do comprador, do adjudicatário, do remidor, do interessado que obteve pagamento, dá predomínio a este, sem, no entanto, deixar desprotegido o interesse da pessoa que devia ser citada (cfr. J. Alberto dos Reis, Processo de Execução, vol. 2º, reimpressão, Coimbra, 1982, pág. 240).
Recai, no entanto, obrigação de indemnizar sobre o exequente, quando este tenha sido o beneficiário?
A lógica jurídica conduz à solução que o autor citado propõe:
“Desde que a lei considera o exequente responsável pela falta de citação, não é razoável que ele tire proveito dessa falta, em prejuízo da pessoa que devia ser citada e que, por culpa dele, o não foi” (ob. cit., pág. 241).
Mas quem é o beneficiário dos pagamentos? Beneficia deles a pessoa que os recebe, e mais ninguém; o exequente não é beneficiário dos que foram feitos a outras pessoas.
Escreve, a este respeito, Eurico Lopes-Cardoso (in Manual da Acção Executiva, Lisboa, 1987, pág. 505 e 506):
“Serão anulados, pois, os que o exequente receba, quer do produto da alienação de bens penhorados, quer nos termos do artigo 874º, por entrega de dinheiro penhorado. Das vendas e adjudicações, é que o exequente beneficia sempre, seja qual for o comprador ou adjudicatário, posto que pelo produto delas virá a ser pago. Beneficia das vendas e adjudicações ainda que haja substituição do adquirente, por efeito de direito de preferência ou pela remição dos bens adquiridos. Mas a lei exige, para anulação das ditas vendas e adjudicações, não só que o exequente seja seu beneficiário mas ainda que ele seja beneficiário «exclusivo». Tal não sucederá quando seja comprador outra pessoa, quando seja adjudicatário outro credor, quando os bens adquiridos pelo exequente forem remidos ou quando for reconhecido direito de preferência doutra pessoa na aquisição feita pelo exequente. Então, haverá dois beneficiários: - imediatamente o comprador, adjudicatário, remidor ou preferente; mediatamente o exequente, que virá a ser pago pelo produto da alienação. Também haverá dois beneficiários, quando, embora o exequente seja comprador ou adjudicatário e ninguém tenha preferido ou remido, o produto da compra ou adjudicação houver de ser distribuído por outros credores. Ao determinar que, regra geral, as vendas ou adjudicações não se anulam, a lei quis proteger aqueles que concorrem à aquisição dos bens penhorados e não têm culpa da falta de citações. Protegendo-os também consegue que os bens sejam vendidos mais facilmente e com maior rendimento. Temos, em conclusão, que o exequente só poderá considerar-se «exclusivo beneficiário» da venda ou adjudicação quando se verifiquem cumulativamente duas condições:
1ª Ser ele o comprador ou adjudicatário, sem que sobrevenha preferência ou remição:
2ª Caber-lhe em pagamento todo o preço da coisa adquirida. Só quando assim for, a venda ou adjudicação é anulada por falta de citação do cônjuge ou credor do executado. Note-se que, já no tempo do Código de 1939, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que, julgada procedente a falta de citações, depois da venda mas antes dos pagamentos, a venda subsistia mas os pagamentos não se faziam. Quando as vendas, adjudicações, remições ou pagamentos subsistam, o credor ou cônjuge não citado fica com direito a ser indemnizado pelo exequente, das perdas e danos que sofrer com a falta da sua citação.
É claro que a indemnização não pode ser pedida nem fixada na acção executiva; há-de ser objecto de acção especialmente proposta para obter a condenação do exequente a pagá-la.”
Ainda no dizer de outro autor, a regra de não anulação teve como razão de ser, em primeira linha, a protecção ao adquirente dos bens, estranho à execução, com a manutenção dos seus direitos e, indirectamente, a segurança de venda para maior eficiência dela, imunizando-o de todo o risco e. em segundo lugar, a protecção aos credores a quem tenham sido liquidados os seus créditos por qualquer forma (cfr. Artur Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 3ª ed., Coimbra, 1977, págs. 190 e segs.).
Também em sentido idêntico se tem pronunciado a jurisprudência, como é o caso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de Abril de 1993 – publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 426, págs.
426 e segs. – ao salientar que, não sendo caso de “exclusivo beneficiário”, a excepção à regra da nulidade visa “proteger aqueles que concorrem à aquisição dos bens penhorados e não têm culpa da falta de citações” (cfr., também o acórdão do mesmo Alto Tribunal, de 4 de Fevereiro do mesmo ano, in Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano I, tomo I – 1993, págs. 132 e segs.).
3. - Observa a recorrente que, transitada em julgado a decisão quem declarou extinta a instância executiva entre os iniciais titulares da relação processual, tornou-se ineficaz a garantia detida sobre o bem penhorado, ao ter perdido a sua qualidade de credor hipotecário; na interpretação adoptada viu-se impossibilitada de requerer a anulação da venda, sobre a qual não foi chamada processualmente para tomar conhecimento e se pronunciar.
Entende-se, no entanto, não haver lugar a vício de inconstitucionalidade, se bem que o credor, por caducidade da garantia real, se veja impedido de accionar o mecanismo que admita um retorno “em espécie” do bem primitivamente onerado.
Com efeito, e desde logo, crê-se que o enfoque jurídico-constitucional não é situável no plano da contraditoriedade, como seria possível acontecer se a ora recorrente ainda fosse parte no processo executivo, o que não é o caso. Na verdade, o princípio do contraditório subentende uma estruturação dialéctica do processo, de modo a que cada uma das partes possa ser chamada “a deduzir as suas razões (de facto e de direito), a oferecer as suas provas, a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o valor e resultados de umas e outras”, como ensinava Manuel de Andrade (cfr. Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra, 1993, pág. 379).
Por outro lado, a situação não é semelhante à contemplada no referido acórdão nº 516/93, pois não só a D..., como exequente, gozava, então, de específica disciplina jurídica, mas ainda porque aquele aresto debruça-se sobre outra norma do Código de Processo Civil – a da alínea c) do nº
1 do artigo 909º, em articulação com a do nº 1 do artigo 201º do mesmo diploma – que determina a nulidade da venda por omissão de formalidade essencial prevista na lei, como seja a de dar conhecimento do acto aos credores reconhecidos e graduados.
Diferente é, no entanto, o regime previsto no nº 3 do artigo 864º, independentemente de esse ser o bom ou o mau direito. É que, nesta norma, asseguram-se os interesses do credor, possibilitando-se a efectivação do direito de indemnização aí previsto, uma vez que se permite ao credor indevidamente preterido que obtenha, por via do exercício desse direito, contra o exequente, o valor patrimonial de que se viu privado.
Não se coloca, por conseguinte, o problema da intangibilidade do direito à justiça: a omissão de um acto processual destinado a chamar ao processo quem nele tenha interesse é, nas suas consequências, suprida pelo mecanismo previsto na própria norma impugnada e que não só permite ao credor hipotecário, privado de efectivar a garantia real de que era titular, obter a respectiva indemnização, como protege o terceiro que viu ser transmitidos a seu favor bens livres de garantia real, nos termos do nº 2 do artigo 824º do Código Civil.
Significa isto no caso vertente, que – tal como decorre das alegações do Ministério Público – a ora recorrente tem direito a “obter real, efectivo e total ressarcimento dos danos que lhe resultaram da falta de notificação para intervir na execução”, a satisfazer pelo Estado, como resulta da interpretação aqui adoptada do disposto no nº 2 do artigo 824º citado.
De igual modo, não se desenha ofensa ao disposto no artigo 13º do texto constitucional, sabido que o princípio da igualdade não proíbe que o legislador ordinário estabeleça distinções mas sim que a estas não assista fundamento material bastante, ou seja, justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes e que se tratam por igual situações essencialmente desiguais (cfr., por todos, o acórdão nº 188/90, publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Setembro de 1990): a diferenciação de regime obedece a parâmetros de ponderação de interesses entre o credor hipotecário, efectivamente privado da possibilidade de aceder à acção executiva para efectivar a garantia real, e o terceiro adquirente dos bens, que, naturalmente, dispõe de legítimas expectativas na subsistência da venda judicial, parâmetros esses que especificamente se colocam nesta fase processual.
Finalmente, decorre do exposto inexistir violação do disposto no artigo 202º, nº 2, da Constituição – dada a sua natural articulação com o antecedentemente entendido – e, por conseguinte, do artigo 204º do mesmo texto.
III
Em face do exposto, e tendo em conta a referida interpretação, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 15 unidades de conta.
Lisboa, 26 de Fevereiro de 2002- Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida