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Proc. nº 638/01
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional: I – Relatório
1. No 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Lagos foram pronunciados os arguidos A e B (ora recorrentes), pela prática de um crime de especulação, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 14º, do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro e 35º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro.
2. Na sequência de requerimento apresentado pelos arguidos, solicitando o arquivamento dos autos por efeito da prescrição do procedimento criminal, foi proferido o despacho de fls. 357 a 359, a declarar extinto o procedimento criminal por prescrição.
3. Inconformado com esta decisão dela recorreu o Ministério Público para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão de 24 de Abril de 2001, decidiu conceder provimento ao recurso, revogar o despacho recorrido e ordenar a sua substituição por um outro que designasse a data do julgamento. Escudou-se, para tanto, na seguinte fundamentação:
'O objecto do presente recurso limita-se a saber se, estando apenas localizada temporalmente, na pronúncia, a data da celebração do contrato promessa, através do qual a assistente e sua sócia ficaram obrigadas a pagar aos arguidos a quantia de 8.000 contos, pode o Tribunal conhecer desde já da prescrição ou deve relegar essa questão para decisão final. Os arguidos encontram-se pronunciados pela prática de um crime de especulação, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 14º, do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro e 35º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, punível com pena de prisão de 6 meses a 3 anos e multa não inferior a 100 dias. Este crime consuma-se com o recebimento, por parte do senhorio (os ora arguidos) da quantia monetária que não lhe é devida. Da pronúncia (e também da acusação) apenas consta que os arguidos prometeram dar de arrendamento à assistente e sua sócia um imóvel, por contrato celebrado em
29.10.1992, e que estas ficariam obrigadas a pagar aos arguidos 8.000.000$00, o que efectivamente aconteceu. Porém, não consta da pronúncia (nem tão pouco da acusação) a data em que as mesmas entregaram aos arguidos a mencionada quantia, sendo certo que há indícios nos autos (recolhidos através de prova documental e testemunhal) que os arguidos receberam em momento posterior ao da celebração do contrato e, fraccionadamente. De acordo com o regime jurídico-penal constante do Código Penal de 1982, que é o aplicável ao caso, por se mostra mais favorável aos arguidos, o prazo de prescrição é de 5 anos, contados da data da consumação do crime (art. 117º, nº
1, al. c) e 118º, nº 1, do Código Penal), interrompendo-se e suspendendo-se tal prazo com a notificação do despacho de pronúncia, nos termos do disposto nos artigos 119º, nº 1, al. b) e 120º, nº 1, al. c), não podendo tal prazo de suspensão ultrapassar os dois anos. A notificação aos arguidos do despacho de pronúncia teve lugar em 25 de Novembro de 1999, interrompendo-se e suspendendo-se nessa data o prazo prescricional. Ignorando-se a data da consumação do crime, e podendo a mesma ter tido lugar em data não anterior a 25.11.94, verifica-se que o mesmo pode ainda não ter ocorrido. Nesta perspectiva, existindo dúvidas perante a data da consumação do crime não deveria o Mmoº. juiz a quo ter declarado extinto o procedimento criminal por efeito da prescrição, uma vez que só em sede de julgamento se poderá apurar com precisão a data da consumação do crime'.
4. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art.
70º da LTC, o presente recurso, para apreciação da constitucionalidade dos artigos 117º, nº 1, alínea c), 118º, nº 1, 119º, nº 1 al. b) e 120º, nº 1, al. c), todos do Código Penal de 1982, 'quando interpretados no sentido de em caso de dúvida acerca da data da consumação do crime se dever submeter os arguidos a julgamento, mesmo quando, os factos constantes da acusação e/ou pronúncia se reportem apenas a datas que os torna factos prescritos', por alegada violação do artigo 32º, nºs 1 e 5 da Constituição.
5. Já neste Tribunal foram os recorrentes notificados para alegar, o que fizeram, tendo concluído da seguinte forma:
'1º - Interpretaram-se no douto acórdão recorrido as normas constantes dos artigos 117º, nº 1, alínea c), 118º, nº 1, 119º, nº 1 al. b) e 120º, nº 1, al. c), todos do Código Penal de 1982, no sentido de, em caso de dúvida acerca da data de consumação do crime, se dever submeter os arguidos a julgamento, pese embora os factos constantes da acusação e/ou pronúncia se reportem apenas a datas que os tornam prescritos.
2º - As normas em causa, assim interpretadas, obstam à prescrição de qualquer crime imputado por uma acusação a arguidos, com base na hipotética ocorrência de factos não constantes da acusação e capazes de protelar a alegada actividade criminosa para além dos limites temporalmente definidos pela acusação e/ou pronúncia.
3º - Derivando da objectiva análise da acusação ou pronúncia que os factos estão prescritos, não poderá aceitar-se com base no sistema constitucional vigente que, a pretexto de se obstar à prescrição do procedimento criminal, se relegue para julgamento a decisão sobre a questão da prescrição, com base em eventuais factos, de data incerta e que não constem da acusação ou pronúncia, relativamente aos quais nenhuma garantia de defesa terão tido os arguidos para evitar a submissão ajuízo.
4º - Ou seja, não é constitucionalmente admissível que, findas duas fases, o inquérito e a instrução, se sujeitem os arguidos a julgamento, com base em facto ou factos hipotéticos, não constantes da acusação e a provar em audiência de julgamento.
5º - Os princípios constitucionais exigem que seja á luz dos factos constantes da acusação e/ou da pronúncia que se deva averiguar da eventual prescrição do procedimento criminal e não pelos hipotéticos factos a provar em audiência de julgamento.
6º - As normas ínsitas nos artigos 117º, nº 1, alínea c), 118º, nº 1, 119º, nº 1 al. b) e 120º, nº 1, al. c), todos do Código Penal de 1982, assim interpretadas, restringem desnecessária e desproporcionadamente o poder-dever de o Juiz de julgamento realizar um «controlo judicial da acusação de modo a evitar acusações gratuitas, manifestamente inconsistentes» ou baseadas em factos (à luz da acusação) prescritos, insusceptíveis, por conseguinte, de justificar o incómodo, a despesa e o vexame da sujeição do arguido a julgamento, sendo inconstitucionais por derrogação do disposto nos artigos 18º, nºs 1, 2 e 3 e
32º, nº 1 e 5, 1ª parte, da CRP.
7º - As mesma normas, assim interpretadas, diminuem a extensão e o alcance do conteúdo essencial do poder-dever de o juiz de julgamento realizar um «controlo judicial da acusação de modo a evitar acusações gratuitas, manifestamente inconsistentes» e do correspondente direito do arguido a ser beneficiário de tal actividade controladora, derrogando o disposto nos artigos 18º, nº 3 e 32º nº 1 e 5, 1ª parte, da CRP. Por outro lado;
8º - As normas constantes dos artigos 117º, nº 1, alínea c), 118º, nº 1, 119º, nº 1 al. b) e 120º, nº 1, al. c), todos do Código Penal de 1982, interpretados no sentido de, em caso de dúvida acerca da data de consumação do crime, se dever submeter os arguidos a julgamento, mesmo quando os factos constantes da acusação e/ou da pronúncia se reportam apenas a datas que os tornam factos prescritos, são inconstitucionais por derrogação do disposto nos artigos 18º, nºs 1, 2 e 3 e
32º, nº 1 e 5, 2ª parte, da CRP, por restrição desnecessária e desproporcional dos direitos de defesa constitucionalmente conferidos ao arguido (artigos 32º, nº 1 e 5, 2ª parte, da CRP), uma vez que se retira ao mesmo a possibilidade de conhecer e contrariar (em sede de inquérito e instrução) a prova dos factos pelos quais é julgado, por forma a evitar a sujeição a julgamento, nomeadamente, em casos de acusações manifestamente infundadas ou relativas a factos já prescritos. Acresce ainda que;
9º - As normas em causa, interpretadas no sentido de imporem a sujeição do arguido a julgamento em casos em que – à luz dos factos da acusação ou da pronúncia – se encontrem prescritos, e dos quais não resulta, por conseguinte, uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em julgamento, uma pena ou medida de segurança, restringem desnecessária e desproporcionadamente o direito à presunção de inocência do arguido, são inconstitucionais por derrogação do disposto nos artigos 18º, nºs 1, 2 e 3 e 32º, nº 2, 1ª parte, da CRP.
10º - As mesmas normas, assim interpretadas, são igualmente inconstitucionais por diminuírem a extensão e o alcance do conteúdo essencial do direito à presunção da inocência do arguido (artigos 18º, nº 3 e 32º, nº 2, 1ª parte, da CRP) na medida em que impõem a sujeição do mesmo a julgamento em casos que (à luz da acusação) versam sobre factos prescritos, na expectativa de produção de prova incriminadora, capaz de obstar à prescrição do procedimento criminal'.
6. Notificado para responder, querendo, às alegações dos recorrentes, disse o Ministério Público a concluir:
'1º - Não pode inferir-se do princípio constitucional das garantias de defesa a necessidade de as instâncias decretarem, na fase de pronúncia, uma invocada prescrição do procedimento criminal com base numa verdadeira «ficção» quanto à data em que terá ocorrido a consumação do facto delituoso, por o momento da respectiva prática – a partir da qual ocorre o prazo prescricional – estar omisso, quer na acusação quer na pronúncia.
2º - Circunscrevendo-se a base normativa do recurso de constitucionalidade às normas atinentes ao início, suspensão e interrupção do prazo prescricional, não pode obviamente discutir-se no recurso a constitucionalidade do entendimento ou interpretação, subjacente ao acórdão recorrido, segundo o qual tal omissão pode ainda ser legitimamente suprida através da prova a produzir em julgamento – e só nesse momento sendo possível decisão fundamentada sobre a prescrição.
3º - Termos em que deverá improceder manifestamente o recurso interposto, com o objecto normativo que o recorrente lhe atribuiu'.
7. Também a recorrida particular respondeu às alegações dos recorrentes, concluindo igualmente pela improcedência do recurso. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II – Fundamentação
8. Não constando da acusação nem da pronúncia a data da consumação do crime de especulação imputado aos arguidos (que, conforme refere o Tribunal a quo, é a data em que estes teriam recebido a quantia a que não teriam direito), e podendo, em face da prova testemunhal e documental existente no processo, essa mesma consumação ter tido lugar em data que tornaria os factos ainda não prescritos no momento em que foi proferida a decisão recorrida, entendeu o Tribunal da Relação de Évora que, perante a dúvida sobre o momento da consumação do crime, não deveria desde logo ser proferida decisão sobre a prescrição do procedimento criminal, devendo antes o processo ser remetido para julgamento, de forma a que aí se esclarecesse, na sequência da prova produzida em audiência, em que data é que o crime se consumou, proferindo-se só então decisão sobre a prescrição do procedimento criminal. No entender dos recorrentes tal solução assenta numa determinada interpretação normativa dos artigos 117º, nº 1, alínea c), 118º, nº 1, 119º, nº 1 al. b) e
120º, nº 1, al. c), todos do Código Penal de 1982, na sua redacção originária - consistente em 'na dúvida acerca da data da consumação do crime se dever submeter os arguidos a julgamento, mesmo quando, os factos constantes da acusação e/ou pronúncia se reportem apenas a datas que os tornam factos prescritos' - que é inconstitucional por violação do disposto nos artigos 32º, nºs 1 e 5 da Constituição. Importa, porém, delimitar com mais rigor o possível objecto do presente recurso de constitucionalidade. E, desde logo, importa começar por esclarecer que o objecto do presente recurso não é - não pode ser - a questão da constitucionalidade do entendimento normativo, efectivamente subjacente à decisão recorrida, segundo o qual da acusação e da pronúncia não tem de constar, sob pena de nulidade, a data da consumação do crime que vem imputado aos arguidos. É que, a pretenderem questionar este entendimento normativo, deveriam os recorrentes ter indicado como objecto do recurso os preceitos que se referem ao conteúdo obrigatório daquelas peças processuais, designadamente os artigos 283º, nº 2 e 308º, nº 2 do Código de Processo Penal, e não os artigos 117º, nº 1, alínea c), 118º, nº 1,
119º, nº 1 al. b) e 120º, nº 1, al. c), do Código Penal de 1982, que apenas se referem à prescrição do procedimento criminal. Em segundo lugar deve também esclarecer-se - como, bem, faz o Ministério Público
- que de entre os preceitos referidos como objecto do recurso, os únicos efectivamente relevantes são os artigos 117º, nº 1, alínea c), e 118º, nº 1, do Código Penal de 1982, já que os artigos 119º e 120 se referem, respectivamente,
à suspensão e interrupção da prescrição, matérias sobre as quais nenhuma questão controvertida se levanta nos presentes autos.
É, então, o seguinte o teor dos preceitos de que se extrai a norma que vem questionada pelos recorrentes.
'Artigo 117º
(Prazos de prescrição)
1. O procedimento criminal extingue-se, por efeito da prescrição, logo que sobre a prática do crime sejam decorridos os seguintes prazos: a) (...). b) (...). c) 5 anos, quando se trate de crimes a que corresponda pena de prisão com um limite máximo igual ou superior a um ano, mas que não exceda 5 anos; d) (...).
Artigo 118º
(Início do prazo)
1. O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se consumou.
2. (...).
3. (...).
4 (...).'
Ora, limitado o objecto do recurso a estes preceitos, a interpretação normativa que deles se pode considerar extraída pela decisão recorrida é a que permite que não constando da acusação nem da pronúncia a data da consumação do crime - mas podendo, em face de alguma prova indiciária existente no processo, essa consumação ter ocorrido em data que torne os factos ainda não prescritos no momento em que é proferida a decisão instrutória -, seja relegada para o momento do julgamento uma decisão sobre a prescrição do procedimento criminal, a proferir na sequência da prova produzida em audiência acerca da questão de saber em que data é que o crime se consumou (para efeitos de determinação do termo inicial do prazo referido naqueles artigos 117º e 118º).
9. Colocada assim a questão, como deve sê-lo, é evidente que não se verifica a inconstitucionalidade alegada pelos recorrentes, não violando aquela interpretação normativa qualquer das normas ou princípios por eles referidos. Na realidade, não constando da acusação nem da pronúncia a data da consumação do crime, decisiva para a determinação do termo inicial do prazo prescricional do procedimento criminal - e não tendo sido questionada a constitucionalidade das normas que consideram não constituir tal uma nulidade processual -, mas sendo possível (em função de indícios existente no processo resultantes da prova testemunhal e documental) que essa consumação tenha ocorrido em data que torne os factos ainda não prescritos no momento em que é proferida a decisão instrutória, não se vê em que é que o simples relegar para o momento do julgamento uma decisão sobre a prescrição do procedimento criminal, a proferir na sequência da prova produzida em audiência acerca da questão de saber em que data é que o crime se consumou, possa afectar inadmissivelmente as garantias de defesa. Desde logo não procede a alegação de que tal solução normativa viola o princípio do contraditório, na medida em que, como é óbvio, toda a prova produzida em audiência - e, evidentemente, também aquela que respeitar à concretização do momento da consumação do crime - está sujeita à vigência daquele princípio. Acresce – como, bem, nota o Ministério Público – que essa concretização, em fase de audiência, poderá (ou, mesmo, deverá) ser considerada uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação e na pronúncia, expressamente submetida ao princípio do contraditório nos termos do artigo 358º, nº 1, do Código de Processo Penal. Com relevância para esta questão, relembra-se aqui o que o Tribunal Constitucional tem dito sobre a possibilidade de serem tomados em conta na decisão factos não considerados nem na acusação nem na pronúncia, mas que não consubstanciem uma alteração substancial dos que constam dessas peças processuais (cfr., designadamente, o acórdão nº 442/99, ainda por publicar): 'é uma exigência do princípio da plenitude das garantias de defesa do arguido que os poderes de cognição do tribunal se limitem aos factos constantes da acusação; porém, se, durante a audiência, surgirem factos relevantes para a decisão e que não alterem o crime tipificado na acusação nem levem à agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, respeitados que sejam os direitos de defesa do arguido, pode o tribunal investigar esses factos indiciados ex novo e, se se vierem a provar, integrá-los no processo, sem violação do preceituado no artigo
32º, nºs 1 e 5 da Constituição'. O recorrente coloca ainda o assento tónico na violação do princípio da presunção da inocência, consagrado no nº 2 do artigo 32º da Constituição. Porém, mais uma vez, sem razão. Sendo certo que o exacto sentido constitucional do princípio da presunção de inocência não é fácil de determinar (nesse sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, p. 203), pode contudo afirmar-se que ele não tem, como pretende o recorrente, o alcance de – para utilizarmos as palavras do Ministério Público - impor a
'necessidade de as instâncias decretarem, na fase da pronúncia, uma invocada prescrição com base numa verdadeira ficção quanto à data em que terá ocorrido a consumação do facto delituoso'. A solução normativa por que optou a decisão recorrida, que apenas relegou para o momento do julgamento uma decisão sobre a prescrição do procedimento criminal, a proferir na sequência da prova produzida em audiência acerca da questão de saber em que data é que o crime se consumou, não só não viola o princípio da presunção da inocência como é, pelo contrário, exigida pelo princípio da verdade material.
III. Decisão Por tudo o exposto, decide-se negar provimento ao recurso. Custas pelos recorrentes, que se fixam em 15 Ucs para cada um deles Lisboa, 6 de Fevereiro de 2002 José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida