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Proc. n.º 535/01 Acórdão nº 575/01
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 112 e seguintes, não se tomou conhecimento do recurso interposto para este Tribunal por V..., pelos seguintes fundamentos:
“5. Nos termos dos artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, constitui requisito de admissibilidade de qualquer recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo daquele primeiro preceito – como é o caso do presente recurso – o ter o recorrente suscitado, durante o processo, a questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional. E, em princípio, a questão de constitucionalidade só se considera suscitada durante o processo quando o recorrente suscita tal questão antes de proferida a decisão recorrida (para desse modo permitir ao tribunal recorrido dela conhecer). Apenas se não exige que o recorrente suscite a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida naqueles casos em que tal questão só surge na sequência de tal decisão: se assim for, não pode o recorrente, como é óbvio, suscitá-la em momento anterior. Ora, no presente caso, é manifesto que o recorrente não suscitou qualquer questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida (que é a da 1ª Secção do Contencioso Administrativo, de fls. 56 e seguintes) e que podia tê-lo feito. Assim, e compulsados os autos, verifica-se que: a) No requerimento de suspensão de eficácia invocam-se as normas dos artigos 76º e 77º, n.º 1, alínea b), da LPTA, mas não se coloca qualquer questão de constitucionalidade normativa relativamente a qualquer dessas normas (fls. 1 e seguintes); b) Só no recurso para o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo, obviamente interposto depois de proferida a decisão ora recorrida e ainda nem sequer admitido, o recorrente questiona a conformidade constitucional de uma determinada interpretação da norma do artigo 76º, n.º 1, alínea b), da LPTA. Alega o recorrente, no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal (cfr. n.º 14), que suscitou a questão da inconstitucionalidade, «na medida em que [...] invocou que só com a suspensão da eficácia do acto punitivo ficaria salvaguardada a tutela jurisdicional efectiva dos seus interesses». Com esta referência, pretende o recorrente certamente reportar-se ao que alegou no artigo 55º do requerimento de suspensão de eficácia, e que foi o seguinte:
«Assim sendo, como é, deve ser decretada a Suspensão de Eficácia deste acto, assegurando-se deste modo a protecção efectiva dos interesses do Requerente, bem como os do Ministério Público». Todavia, tal alegação não consubstancia, de modo nenhum, a colocação de um problema de constitucionalidade normativa: trata-se de um mero pedido feito pelo recorrente tendo em vista obter uma decisão com um certo conteúdo, conteúdo esse que, segundo a sua convicção, seria imposto pelo ordenamento. Em suma: nem o recorrente, ao formular tal pedido, questionou qualquer interpretação de uma norma legal (nomeadamente a da alínea b) do n.º 1 do artigo 76º da LPTA), nem relacionou tal interpretação com uma norma ou um princípio constitucional, já que se limitou a formular um juízo sobre a compatibilidade de uma determinada decisão judicial com o ordenamento em geral. E podia o recorrente, certamente, suscitar a questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada no próprio requerimento de suspensão de eficácia. A partir do momento em que invocou, como fundamento do seu pedido, o disposto no artigo 76º da LPTA, era-lhe exigível equacionar, perante o tribunal recorrido, a questão da conformidade constitucional das normas de tal preceito. E como não o fez, não admira que o tribunal recorrido não se tenha pronunciado sobre tal questão. Não está, assim, preenchido um dos pressupostos processuais do presente recurso: o ter o recorrente suscitado, durante o processo, a questão de constitucionalidade normativa que pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional. Como tal, não pode conhecer-se do respectivo objecto.”
2. Inconformado com a referida decisão sumária, V... dela veio reclamar para a conferência, nos termos do n.º 3 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, alegando, em síntese, o seguinte:
a) Contrariamente ao entendimento perfilhado no Parecer da relatora [o reclamante refere-se, certamente, à decisão sumária], a questão de constitucionalidade foi suscitada nos presentes autos, na medida em que o ora reclamante invocou, aquando da formulação do pedido de suspensão de eficácia, que só com o decretamento da suspensão ficaria salvaguardada a tutela jurisdicional efectiva dos seus interesses (n.º s 2 e 12 da reclamação); b) Embora o ora reclamante não tenha, desde logo, invocado a norma legal, invocou o princípio consagrado no artigo 20º, n.º 5, da Constituição (n.º s 3 e
4 da reclamação); c) A interpretação feita pelo tribunal recorrido da norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 76º da LPTA é claramente violadora do direito à tutela jurisdicional efectiva e da garantia de recurso contencioso, sendo que a ausência de tutela efectiva provocada pelo acórdão recorrido atinge outros direitos e garantias constitucionais (n.º s 5 a 8 e 11 da reclamação); d) A questão de constitucionalidade pode surgir na sequência da decisão recorrida, como sucede no caso dos autos, o que igualmente serve de fundamento para a admissão do recurso (n.º s 9, 10, 13 e 14 da reclamação).
Notificado nos termos e para os efeitos do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o recorrido (o Conselho Superior do Ministério Público) não respondeu.
Cumpre apreciar.
II
3. O primeiro argumento aduzido pelo reclamante (supra, 2., a)) reproduz o alegado no n.º 14 do requerimento de interposição do recurso para este Tribunal e apreciado no n.º 5 da decisão sumária reclamada. Não sendo esse argumento novo, cumpre repetir, em relação a ele, aquilo que já se havia dito na decisão sumária (supra, 1.):
“[...] Alega o recorrente, no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal (cfr. n.º 14), que suscitou a questão da inconstitucionalidade, «na medida em que [...] invocou que só com a suspensão da eficácia do acto punitivo ficaria salvaguardada a tutela jurisdicional efectiva dos seus interesses». Com esta referência, pretende o recorrente certamente reportar-se ao que alegou no artigo 55º do requerimento de suspensão de eficácia, e que foi o seguinte:
«Assim sendo, como é, deve ser decretada a Suspensão de Eficácia deste acto, assegurando-se deste modo a protecção efectiva dos interesses do Requerente, bem como os do Ministério Público». Todavia, tal alegação não consubstancia, de modo nenhum, a colocação de um problema de constitucionalidade normativa: trata-se de um mero pedido feito pelo recorrente tendo em vista obter uma decisão com um certo conteúdo, conteúdo esse que, segundo a sua convicção, seria imposto pelo ordenamento. Em suma: nem o recorrente, ao formular tal pedido, questionou qualquer interpretação de uma norma legal (nomeadamente a da alínea b) do n.º 1 do artigo 76º da LPTA), nem relacionou tal interpretação com uma norma ou um princípio constitucional, já que se limitou a formular um juízo sobre a compatibilidade de uma determinada decisão judicial com o ordenamento em geral.
[...].”
Improcede, pois, pelas razões expostas na decisão sumária e não contrariadas pelo teor da reclamação, o alegado pelo reclamante.
4. O segundo argumento aduzido pelo reclamante (supra, 2., b)) improcede manifestamente. Como é óbvio, não basta a invocação de um princípio constitucional numa peça processual para se ter como cumprido o ónus a que se referem os artigos 70º, n.º 1, alínea b) e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
Para que o Tribunal Constitucional possa apreciar um recurso como o presente, exige-se que o recorrente tenha suscitado a questão da inconstitucionalidade de uma norma durante o processo, isto é, que tenha identificado, perante o tribunal recorrido, a norma legal alegadamente ofensiva da Constituição, justamente para que o tribunal recorrido possa ele próprio apreciar a conformidade de tal norma com a Constituição. Ora, no caso dos autos, tal não sucedeu, como aliás o ora reclamante reconhece: apenas se invocou, em certa peça processual, um determinado princípio constitucional, sem se identificar a norma que porventura o violaria. Não se cumpriu, pois, o ónus a que aludem os preceitos acima indicados.
5. O terceiro argumento utilizado pelo reclamante (supra, 2., c)) também improcede totalmente. A circunstância de uma interpretação normativa adoptada por um tribunal claramente violar, do ponto de vista do recorrente, um preceito constitucional, ou a circunstância de uma decisão judicial supostamente atingir certos direitos fundamentais, não dispensam o preenchimento dos pressupostos processuais do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (aquele que foi interposto pelo ora reclamante).
Para se conhecer de qualquer recurso, é naturalmente necessário que os respectivos pressupostos processuais estejam preenchidos. E seria intolerável que essa regra excepcionalmente não funcionasse no caso dos autos, apenas porque o ora reclamante invoca a clara ou evidente contrariedade à Constituição da interpretação normativa perfilhada pelo tribunal recorrido, ou a necessária ofensa de certos direitos fundamentais que a alegada ausência de tutela efectiva acarretou.
6. Finalmente, e em relação ao quarto argumento utilizado pelo reclamante (supra, 2., d)), cumpre repetir o que se disse na decisão sumária reclamada, já que o reclamante não explica minimamente por que motivo a questão da constitucionalidade só surgiu na sequência do acórdão recorrido. Com efeito, o reclamante não explica por que motivo lhe não era exigível suscitar tal questão antes de proferido tal acórdão, sendo certo que o pedido de suspensão de eficácia que formulara perante o tribunal recorrido se alicerçava no artigo 76º da LPTA (sendo, pois, muito natural que o tribunal recorrido tomasse em consideração este preceito, para efeitos de decisão). Observou-se, a este propósito, na decisão sumária (supra, 1.):
“[...] E podia o recorrente, certamente, suscitar a questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada no próprio requerimento de suspensão de eficácia. A partir do momento em que invocou, como fundamento do seu pedido, o disposto no artigo 76º da LPTA, era-lhe exigível equacionar, perante o tribunal recorrido, a questão da conformidade constitucional das normas de tal preceito. E como não o fez, não admira que o tribunal recorrido não se tenha pronunciado sobre tal questão.
[...].”
Improcede, pois, pelas razões expostas na decisão sumária e não contrariadas na reclamação, o alegado pelo reclamante.
III
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação, mantendo-se a decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 13 de Dezembro de 2001 Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida