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Processo n.º 730/12
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. O Ministério Público interpôs, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (adiante referida como “LTC”), recurso de constitucionalidade do acórdão proferido no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que, julgando procedente a ação administrativa especial conexa com ato administrativo intentada por A. contra o Ministério da Justiça, recusou aplicação, por inconstitucionalidade, às normas constantes dos artigos 19.º, 68.º e 162.º, todos da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, e do artigo 108.º-A do Estatuto do Ministério Público aditado pelo artigo 21.º da citada Lei.
2. O acórdão recorrido decidiu uma ação administrativa especial de pretensão conexa com ato administrativo em que foi peticionada a declaração de nulidade do ato administrativo subjacente à operação material de processamento da remuneração da autora, ora recorrida, relativa a janeiro de 2011 e de todos os atos mensais de processamento de remuneração subsequentes àquele anterior ato, bem como a condenação da entidade demandada na aplicação do índice remuneratório aplicável à autora, constante do mapa anexo ao Estatuto do Ministério Público, invocando-se que as disposições legais constantes dos artigos 19.º, 68.º e 162.º da Lei 55-A/2011, de 31 de dezembro, e do artigo 108.º - A do Estatuto do Ministério Público, aditado pelo artigo 21.º da citada lei orçamental, enfermam de inconstitucionalidades de índole formal e material. Naquela decisão foram apreciadas diversas questões de inconstitucionalidade e, a final, considerou-se, que os mencionados preceitos legais são materialmente inconstitucionais por violarem os princípios da proporcionalidade e da igualdade.
3. Nas alegações de recurso apresentadas neste Tribunal, o recorrente, louvando-se no entendimento acolhido na Decisão Sumária deste Tribunal (3.ª Secção) n.º 555/2012 (disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/decsumarias/20120555.html) veio delimitar o objeto do recurso nos seguintes termos:
« 1.2. O Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, por Acórdão de 4 de Junho de 2012, considerando inconstitucionais as normas dos artigos 19.º, 68.º e 162.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, e do artigo 108.º-A, do Estatuto do Ministério Público, aditado pelo artigo 21.º da citada Lei, recusou a sua aplicação e, consequentemente, deferiu o pedido da Autora, nos exatos termos em que havia sido formulado.
1.3. Dessa decisão, enquanto recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, das quatro normas referidas, o Ministério Público interpôs recurso obrigatório para este Tribunal Constitucional (artigos 70.º, n.º 1, alínea a) e 72.º, n.ºs 1, alínea a) e 3, da LTC).
1.4. Embora o Tribunal tivesse recusado a aplicação das normas dos artigos 68.º e 162.º da Lei n.º 55-A/2010, estas normas não são convocáveis para a decisão em causa.
Efetivamente, aquelas normas incidem sobre matéria de pensões.
A Autora é uma magistrada que se encontra ao serviço e vendo o acórdão, desde logo pelo pedido (vd.1.1.), bem como a parte decisória do acórdão que o deferiu integralmente, parece-nos evidente que em relação àquelas duas normas não pode ocorrer uma recusa da aplicação, porque elas não eram aplicáveis. […]
1.6. Pelo exposto, apenas deverá constituir objeto do recurso, a questão de inconstitucionalidade das normas dos artigos 19.º, n.ºs 1 e 9, alínea f), da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro e 108.º-A do Estatuto do Ministério Público, aditado pelo artigo 21.º daquela Lei.»
E, quanto ao mérito, o recorrente alega:
« Em sede de fiscalização abstrata sucessiva, o Tribunal Constitucional já apreciou a constitucionalidade das normas que constituem objeto do recurso.
Efetivamente, pelo Acórdão n.º 396/2011, não foram aquelas normas declaradas inconstitucionais.
Na decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto não constam fundamentos novos, para além daqueles que foram tidos em conta, quer no Acórdão n.º 396/2011, quer nas declarações de voto então apresentadas.
Remete-se, pois, para a fundamentação daquele Acórdão, nada mais tendo a acrescentar.
3. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
As normas dos artigos 19.º, n.ºs 1 e 9, alínea f), da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro e 108.º-A do Estatuto do Ministério Público, aditado pelo artigo 21.º daquela Lei, não violam o princípio da proporcionalidade, nem o da igualdade, não sendo, por isso, inconstitucionais.
Termos em que deve conceder-se provimento ao recurso.»
4. A recorrida, devidamente notificada para alegar, veio dizer o seguinte:
« A recorrida conforma-se com a delimitação do objeto do recurso tal como vem doutamente defendido pelo recorrente.
Quanto ao mérito do recurso louva-se na fundamentação e conclusões do parecer do Prof. Doutor Paulo Otero junto à petição inicial sem a ousadia de nada lhe acrescentar.
Em conclusão,
a) as normas dos artºs 19º, nºs 1 e 9, alínea f), da Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro e 108º-A do Estatuto do Ministério Público, aditado pelo artº 21º daquela Lei, violam o princípio da proporcionalidade e o princípio da igualdade, pelo que são inconstitucionais;
b) deve em consequência o recurso ser julgado improcedente.»
5. Notificado, ao abrigo do princípio do contraditório, o Ministério da Justiça veio, pelo seu lado, sustentar que:
« A ação cuja sentença se encontra em recurso visou impugnar as reduções salariais resultantes da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, designadamente, no que à ora Recorrida concerne, as constantes dos arts. 19.º e 21.º, considerando que tais normas padecem de diversos vícios de inconstitucionalidade.
As questões objeto da presente ação foram já apreciadas pelo Tribunal Constitucional, no Ac. n.º 396/2011, de 21 de setembro, que decidiu 'não declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos artigos 19.º, 20.º e 21.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2011) ', a cuja doutrina aderiu o mesmo tribunal, por decisão sumária do Juiz Relator Carlos Fernandes Cadilha, no Proc.º 209/2012, de 16 de abril de 2012.
Esta decisão veio a ser reforçada mais recentemente, em decisão sumária do Tribunal Constitucional, n.º 555/2012, de 27 de Novembro, que reafirmou o juízo de não constitucionalidade do art. 19.º da L0E2011 e do art. 108.º-A do Estatuto do Ministério Público (aditado pelo art. 21.º da Lei n.º 55-A/2010).»
E, no mais, seguiu de perto as mencionadas decisões e respetivas fundamentações.
Cumpre apreciar e decidir o presente recurso de constitucionalidade, tendo em conta o objeto delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação (cfr. o artigo 684.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente por força do artigo 69.º da LTC, sem prejuízo de se acolher, também, o entendimento de princípio plasmado na mencionada Decisão Sumária n.º 555/2012 quanto à necessidade de as normas que integram o objeto do recurso de constitucionalidade corresponderem exatamente àquelas que, sendo aplicáveis à situação sub iudicio, não o foram por razões de inconstitucionalidade, não se justificando, por desnecessário e inútil, qualquer pronúncia que exorbite o núcleo normativo cuja aplicação foi efetivamente recusada pela decisão recorrida).
II. Fundamentação
6. Para a boa compreensão do presente processo, cumpre ter presente que a ação administrativa especial julgada pelo acórdão recorrido foi apresentada em maio de 2011, portanto, ainda antes da prolação do Acórdão do Plenário deste Tribunal n.º 396/2011, em 21 de setembro do mesmo ano (o Acórdão em causa encontra-se publicado no Diário da República, 2.ª série, de 17 de Outubro de 2011, e disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) que apreciou a constitucionalidade das mesmas normas objeto do presente recurso. Já o acórdão recorrido, datado de 4 de junho de 2012, é posterior àquela decisão do Tribunal Constitucional. Sendo as questões de inconstitucionalidade, por natureza, questões de direito, justifica-se, por conseguinte, considerar a doutrina consignada no Acórdão n.º 396/2011, relativamente às concretas questões de inconstitucionalidade objeto do presente recurso.
É de subscrever a posição assumida pelo Ministério Público nas suas alegações de recurso, pois, como aí se refere, da decisão recorrida não constam fundamentos novos, para além daqueles que foram tidos em conta, quer no Acórdão deste Tribunal n.º 396/2011, quer nas declarações de voto então apresentadas. Aderindo aos primeiros, remete-se, pois, para a fundamentação daquele Acórdão, não sendo necessário acrescentar outras razões.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional as normas contidas nos artigos 19.º, n.ºs 1 e 9, alínea f), da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, e 108.º-A do Estatuto do Ministério Público, aditado pelo artigo 21.º daquela Lei;
E, em consequência,
b) Conceder provimento ao recurso e ordenar a reformulação da decisão recorrida, de harmonia com o juízo de não inconstitucionalidade.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 10 de abril de 2013.- Pedro Machete – João Cura Mariano (por aplicação do decidido no Acórdão nº 396/2011) – Ana Guerra Martins – Fernando Vaz Ventura (vencido, nos termos da declaração de voto junta) – Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido.
Considero que as exigências do princípio da segurança jurídica, na vertente material da proteção da confiança, enquanto princípio estruturante do Estado de Direito, com consagração no artigo 2.º da Constituição, colocam-se com intensidade plena, mesmo em contextos de profundas dificuldades financeiras, como aquele em que inscreveu a Lei do Orçamento de Estado de 2011.
Sem postergar a margem ampla de conformação do legislador democrático no domínio das políticas públicas e na escolha das orientações estratégicas que melhor permitam atingir o objetivo de consolidação orçamental, com reflexos na densidade do controlo da legitimidade constitucional da intervenção restritiva em causa, importa considerar que a estabilidade e continuidade da retribuição integra o núcleo essencial da manutenção das condições de subsistência e da construção de um projeto de vida pessoal e familiar, economicamente sustentável.
A normação sub judicio frustra essa expectativa e introduz, de um modo com que os destinatário não podiam razoavelmente contar, a ablação parcial da retribuição, elegendo para tanto um conjunto de servidores públicos, entre os quais os magistrados do Ministério Público, como a recorrente.
Fê-lo, porém, a meu ver, sem justificação material idónea a demonstrar a impraticabilidade de outras medidas alternativas menos restritivas, seja no plano da redução da despesa, seja no plano do acréscimo da receita, mormente da arrecadação fiscal, em termos de atingir o resultado pretendido de consolidação orçamental, sem necessidade de fazer incidir primacialmente o esforço de satisfação dos encargos públicos apenas em alguns, impondo-lhes sacrifício – ablação - patrimonial prevalente, em função do estatuto profissional e da suscetibilidade da retenção direta e imediata da prestação pecuniária.
Como se lê no voto de vencido do Sr. Conselheiro Cunha Barbosa, aposto no Acórdão n.º 396/2011: “[O] efeito ablativo nas remunerações dos destinatários das normas, sem previsão de qualquer tido de contrapartida, coloca em crise a confiança e a proporcionalidade, enquanto fatores de valoração a atender na aplicação do princípio da igualdade, tanto mais que, tratando-se de medida adotada unilateralmente e com repercussão tão só na esfera pessoal dos destinatários, não consente que estes possam compensar tal ablação por outra forma e de modo a obterem a quota-parte de que se viram despojados, tendo em vista a necessidade de satisfação de possíveis e naturais obrigações por si confiadamente assumidas em função do quantitativo remuneratório anterior, situação esta que se tornará, ainda, mais significativa perante a exclusividade de funções exigida pelo estatuto profissional de alguns destinatários, impeditiva do exercício de qualquer outro tipo de atividade (complementar) remunerada, através de um esforço pessoal e com apelo à redução das suas horas de descanso e de lazer”.
A recorrente, magistrada do Ministério Público, pertence exatamente a um dos grupos profissionais cujo estatuto envolve exclusividade de funções, em termos particularmente exigentes. Como também não encontra polo comparativo com qualquer outra função privada, em termos de configurar maior capacidade contributiva da recorrente perante os encargos públicos, suscetível de legitimar a descriminação operada pela normação em apreço.
Entendo que o argumento da transitoriedade não permite ultrapassar a crítica do excesso e da injustificada descriminação, pois a invocação legitimante dos compromissos constantes do Plano de Estabilidade e Crescimento para o período 2010–2013, logo deixava antever o alcance plurianual das medidas restritivas em apreço e o efeito cumulativo que comportavam. Nesses termos, não creio que possam ser caracterizadas como “medidas de politica financeira basicamente conjuntural, de combate a uma situação de emergência”.
Por todo o exposto, concluiria pela inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 19.º, n.ºs 1 e 9, alínea f) e 21.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, por violação do princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição, em conjugação com o princípio da igualdade (artigo 13º da Constituição).
Fernando Vaz Ventura