Imprimir acórdão
Proc. nº 630/00
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional: I – Relatório.
1. Inconformada com a decisão que, em processo de contra-ordenação, lhe aplicou a coima de 62.5000$00 - por ter permitido que um veículo de que é proprietária circulasse sem ter sido submetido a inspecção periódica obrigatória, – a ora recorrida, A, impugnou judicialmente tal decisão perante o Tribunal Judicial da Comarca do Nordeste.
2. Por decisão daquele Tribunal, de 30 de Junho de 2000, foi o recurso julgado procedente. Para o efeito recusou aquele Tribunal aplicar as Portarias Regionais nºs 9/94, de 21 de Abril e 63/96, de 26 de Setembro, que considerou inconstitucionais 'por violação dos artigos 13º, 229º, n.º 1, alínea d), 2ª parte e 234º, da C.R.P, na redacção vigente à data da publicação dessas Portarias'.
3. É desta decisão que vem interposto pelo Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso, para apreciação da constitucionalidade das normas que se extraem das Portarias Regionais nºs 9/94, de 21 de Abril e 63/96, de 26 de Setembro, a que a decisão recorrida recusou aplicação, com fundamento na sua inconstitucionalidade, por alegada violação dos artigos 13º, 229º, n.º 1, alínea d), 2ª parte e 234º, da Constituição.
4. Já neste Tribunal foi o Ministério Público, recorrente, notificado para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
'1º - Os governos regionais apenas dispõem de competência regulamentar relativamente à legislação regional, não podendo a invocação do genérico poder executivo próprio a que alude a alínea g) do n.º 1 do artigo 229º da Constituição da República Portuguesa, na redacção anterior à emergente da última revisão constitucional, servir de suporte à edição de verdadeiros regulamentos de execução de legislação da República, adaptando a regulamentação e os regimes jurídicos vigentes em todo o País a pretensas especificidades regionais.
2º - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade orgânica constante da decisão recorrida.'
5. A recorrida, nas suas alegações, referiu apenas 'acompanhar as doutas alegações do Senhor Procurador-Geral Adjunto'. Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
6. O presente recurso, interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Constituição, tem como objecto a apreciação da constitucionalidade das Portarias n.ºs 9/94, de 21 de Abril e 63/96, de 26 de Setembro, aprovadas pelo governo regional dos Açores, através da Secretaria Regional da Habitação, Obras Públicas, Transportes e Comunicações, invocando o seu 'poder executivo próprio' ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 229º (actual artigo 227º) da Constituição da República. Pois bem: a questão de constitucionalidade que agora vem colocada à consideração deste Tribunal não é inteiramente nova na jurisprudência do Tribunal Constitucional, que decidiu recentemente, em acórdão tirado na sua 2ª Secção
(Acórdão nº 278/01, publicado no Diário da República, 2ª Série, de 27 de Setembro de 2001) 'julgar organicamente inconstitucionais as normas constantes das Portarias Regionais n.ºs 9/94, de 21 de Abril e 63/96, de 26 de Setembro, da Região Autónoma dos Açores, por violação do artigo 234º, n.º 1, conjugado com o artigo 229º, n.º 1, alínea d), da Constituição da República Portuguesa, na redacção anterior à Lei Constitucional n.º 1/97'. Na fundamentação daquele aresto, pode ler-se:
'4. Das portarias regionais em causa, emitidas ao abrigo do artigo 229º, n.º 1, alínea g) da Constituição, a Portaria n.º 9/94 invoca expressamente, como lei que visa regulamentar, o Decreto-Lei n.º 254/92, de 20 de Novembro (o qual foi, entretanto, revogado pelo artigo 42º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 550/99, de 15 de Dezembro, que estabeleceu o novo regime jurídico da actividade de inspecções técnicas de veículos a motor e seus reboques designadamente quanto à autorização para o exercício da actividade de inspecção, à aprovação, abertura, funcionamento, suspensão e encerramento de centros de inspecção e ainda ao licenciamento dos técnicos de inspecção; as inspecções técnicas periódicas foram reguladas pelo Decreto-Lei n.º 554/99, de 16 de Dezembro). Visava o governo regional estabelecer, para a Região Autónoma, normas distintas das adoptadas nas portarias do Ministério da Administração Interna emitidas ao abrigo daquele decreto-lei (v. os artigos 1º, n.º 2, 5º e 6º, n.º 1 deste diploma) – designadamente, das Portarias n.ºs 267/93, de 11 de Março e 117-A/96, de 15 de Abril (que aprovou o Regulamento de Inspecções Periódicas Obrigatórias). Trata-se, pois, de um diploma que visava regulamentar, não legislação regional, mas uma lei geral emanada de um órgão de soberania – o Decreto-Lei n.º 254/92, de 20 de Novembro. Este, conjuntamente com a respectiva 'legislação regulamentadora', era expressamente referido na Portaria n.º 9/94, dizendo-se que o respectivo regime jurídico 'não se encontra adequado à conjuntura existente na Região Autónoma dos Açores' (nestes termos, o preâmbulo da citada Portaria). Por sua vez, a Portaria n.º 63/96, 'considerando a experiência verificada, na Região Autónoma dos Açores, com um ano de realização de inspecções periódicas obrigatórias a veículos', e considerando 'conveniente harmonizar a periodicidade, relativa às inspecções subsequentes, com a necessidade de a orientar no sentido de garantir um acréscimo de segurança para todos os veículos em circulação', alterou o âmbito e periodicidade das inspecções obrigatórias previstas na citada Portaria Regional n.º 9/94, de 21 de Abril. Quanto às sanções, eram previstas contra-ordenações nas portarias (assim, o artigo 68º, n.º 1, da citada Portaria n.º 9/94), estabelecidas 'sem prejuízo do disposto no artigo 16º do Decreto-Lei n.º 254/92, de 20 de Novembro' (que igualmente previa sanções contraordenacionais), sendo certo, porém, que se regulava em termos especiais (assim, nos artigos 40º e segs. da Portaria n.º
9/94), no que ora interessa, o 'âmbito e periodicidade das inspecções obrigatórias'.
5. Nos termos do artigo 229º, n.º 1, alínea d), da Constituição, na redacção em vigor à data da aprovação dos diplomas regionais em questão – que era a anterior
à resultante da IV revisão constitucional –, um dos poderes das regiões autónomas é justamente, 'regulamentar a legislação regional e as leis gerais emanadas dos órgãos de soberania que não reservem para estes o respectivo poder regulamentar.' Ora, no presente caso, poder-se-ia, desde logo, discutir se a regulamentação do Decreto-Lei n.º 254/92, de 20 de Novembro foi reservada ao Governo, uma vez que, nos artigos 1º, n.º 2 (relativos aos veículos sujeitos a inspecção periódica obrigatória) e 6º, n.º 1 (prazos de inspecção obrigatória) deste diploma, em questão no presente caso, se remete para 'portaria do Ministério da Administração Interna'. Seja, porém, como for quanto a esta questão, resultava do artigo 234º, n.º 1
(actual artigo 232º, n.º 1), da Constituição, à data da aprovação das portarias
9/94 e 63/96, em questão, que o exercício das atribuições previstas na segunda parte do artigo 229º, n.º 1, alínea d), da Constituição – regulamentar as leis gerais emanadas dos órgãos de soberania que não reservem para estes o respectivo poder regulamentar – era da exclusiva competência da assembleia legislativa regional, e não do governo regional. Ou seja: mesmo admitindo que a regulamentação do Decreto-Lei n.º 254/94, de 20 de Novembro, se incluía nos poderes da Região Autónoma dos Açores, é certo que não poderia ser efectuada, nos termos dos artigos 229º, n.º 1, alínea d) e 234º, n.º 1, da Constituição, pelo governo regional, ao qual competia apenas competência para 'regulamentar a legislação regional'. A competência para o exercício dos poderes regulamentares da regiões autónomas, relativos apenas à legislação regional e à legislação geral emanada dos órgãos de soberania que não reservem para estes o respectivo poder regulamentar, encontra-se, na verdade, constitucionalmente dividida pela assembleia legislativa regional e pelo governo regional. Nos termos da Constituição, à assembleia legislativa regional compete exclusivamente regulamentar leis gerais emanadas de órgãos de soberania, enquanto o governo regional tem competência apenas para regulamentação da legislação regional. E tal divisão de competências resulta, também, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (aprovado pela Lei n.º 39/80, de 5 de Agosto e revisto pela Lei n.º 9/87, de 26 de Março) – artigos 32º, n.º 1, alínea i), e 56º, alínea c).
6. Os diplomas em análise no presente recurso foram, porém, emanados com invocação expressa, não da alínea d), mas sim da alínea g) do n.º 1 do artigo
229º da Constituição, segundo o qual as regiões autónomas dispõe de 'poder executivo próprio', sendo que o governo regional é o seu órgão executivo (de certa forma no mesmo sentido, o artigo 56º, alínea c) do citado Estatuto Político-Administrativo refere-se também à elaboração dos regulamentos necessários 'ao bom funcionamento da administração da Região'). O que seja materialmente este 'poder executivo próprio', é algo que não se encontra expressamente definido na Constituição. É claro, porém, que tal genérico poder executivo próprio das regiões autónomas (que seria exercido pelo governo regional enquanto seu órgão executivo) não pode ser invocado para se subverterem as regras constitucionais de reserva de competência, à assembleia legislativa regional, para regulamentar as leis gerais emanadas dos órgãos de soberania. A noção de 'poder executivo próprio' referida na alínea g) do n.º 1 do artigo
229 (actualmente 227º) da Constituição foi recentemente tratada por este Tribunal no Acórdão n.º 120/99 (publicado no Diário da República, II série, n.º
154, de 5 de Julho de 1999), no qual estava em causa uma resolução de um governo regional que formulava determinados requisitos ou condições para progressão na carreira na função pública. Como então se salientou:
«Poderia, no entanto, objectar-se que o 'desenvolvimento' do DL nº 248/85 – pressuposto de toda a expendida argumentação – não foi objectivo da 'Resolução', como decorreria da expressa invocação do artigo 229º nº 1 alínea g) da CRP, ao abrigo do qual aquela fora emitida pelo Governo Regional. Mas, sem razão. Atribui o artigo 229º nº 1 alínea g) da CRP às regiões autónomas o exercício de
'poder executivo próprio'. Indefinido na CRP o conteúdo material deste poder, ele aponta, porém, para o exercício da função administrativa pelo órgão superior da administração regional
– o governo regional. No caso da Região Autónoma dos Açores, o respectivo estatuto politico-administrativo atribui ao governo poderes que se integram, claramente, no âmbito da função administrativa; é p. ex. o caso do disposto nas alíneas b) a f) do artigo 56º do dito Estatuto. Sem necessidade de enunciar positivamente o complexo desses poderes, parece líquido que neles se não compreende o de 'legislar', matéria reservada à assembleia legislativa, com as limitações decorrentes do disposto nas alíneas a), b) e c) do nº 1 do artigo 229º da CRP, só podendo os governos regionais produzir normas regulamentares, emitindo regulamentos de diplomas legislativos regionais (cfr. neste sentido Gomes Canotilho e Vital Moreira in ob. cit., p .
856). Ora, por um lado, o conteúdo normativo da Resolução nº 179/91 não traduz qualquer regulamentação de decreto legislativo regional (suposto que, no caso, a assembleia legislativa regional pudesse legislar sobre a matéria, o que, vimos já, não seria constitucionalmente admissível). Por outro, visando produzir efeitos externos e introduzir no ordenamento jurídico, com inovação, uma alteração essencial às regras de acesso em carreira de função pública, a mesma Resolução acaba, substancialmente, por assumir as características de acto legislativo, cuja emissão a CRP proíbe aos governos regionais. O respaldo que procura no artigo 229º nº 1 al. g) da CRP não faz, assim, subtrair a Resolução nº 179/91 ao juízo de inconstitucionalidade orgânica, que antes se reforça pelo acrescido fundamento da violação daquele preceito constitucional. Alcançada esta conclusão, desnecessário se torna o Tribunal averiguar se a Resolução enferma também de inconstitucionalidade formal, como se julgou na sentença recorrida.» (itálico aditado).
7. As considerações transcritas – com a ressalva, irrelevante para se reconhecer competência regulamentar ao governo regional, de que não está no presente caso em questão matéria reservada à Assembleia da República, mas apenas a regulamentação de um decreto-lei – afiguram-se transponíveis para o caso vertente. Também aqui o respaldo expresso na alínea g) do n.º 1 do artigo 229º da Constituição, relativo genericamente ao poder executivo próprio das regiões autónomas não pode servir para fundamentar, em contravenção às regras constitucionais (então o artigo 234º, n.º 1) de reserva de competência regulamentar à assembleia legislativa regionais, uma competência do governo regional para emanar regulamentos executivos da legislação nacional. Como bem salienta o Ministério Público nas suas alegações, tal poder executivo próprio,
'quando se deva concretizar na edição de um regulamento de execução e desenvolvimento da legislação nacional, terá naturalmente de ser exercido pela respectiva assembleia legislativa regional, nos termos do disposto no artigo
234º, n.º 1, conjugado com a segunda parte da alínea d) do n.º1 do artigo 229º da Constituição da República Portuguesa, na versão então em vigor.'
7. É esta jurisprudência, para cuja fundamentação se remete, que, por manter inteira validade, agora há que reafirmar.
III. Decisão Nestes termos, decide-se:
a) Julgar organicamente inconstitucionais as normas constantes das Portarias Regionais n.ºs 9/94, de 21 de Abril e 63/96, de 26 de Setembro, da Região Autónoma dos Açores, por violação do artigo 234º, n.º 1, conjugado com o artigo
229º, n.º 1, alínea d), da Constituição da República Portuguesa, na redacção anterior à Lei Constitucional n.º 1/97; b) Em consequência, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que se refere ao juízo de constitucionalidade que nela se formula. Lisboa, 7 de Dezembro de 2001 José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida