Imprimir acórdão
Processo n.º 867/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Por acórdão proferido em 7 de julho de 2011, no 3.º Juízo Criminal de Matosinhos, no processo n.º 1226/09.TAMTS, no que releva, foi o arguido A. condenado na pena de 6 anos de prisão pela prática, em autoria material, de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 172.º, n.ºs 1 e 2 (atual artigo 171.º, n.ºs 1 e 2), e 177º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal.
O arguido recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão proferido em 8 de fevereiro de 2012, julgou improcedente o recurso.
Não se conformando com este acórdão, veio o arguido arguir a sua nulidade, o que foi indeferido por novo acórdão proferido em 2 de maio de 2012.
Notificado deste último acórdão veio o arguido interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Por despacho do Desembargador Relator o recurso não foi admitido, nos termos do artigo 400.º n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, com fundamento no facto do acórdão do Tribunal da Relação não ter conhecido do objeto do processo.
O arguido reclamou desta decisão, nos termos do artigo 405.º do Código de Processo Penal, para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, tendo o Vice-Presidente indeferido a reclamação por decisão proferida em 21 de outubro de 2012.
O arguido recorreu então para o Tribunal Constitucional nos seguintes termos:
“Não se conformando com os Acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação do Porto em 08.02.2012 (fls. 744 a 752) e 02.05.2012 (fls. 777 a 785), com o Despacho de não admissão de Recurso proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 11.07.2012 (fls. 826) e com a Decisão Singular da Reclamação proferida em 29.10.2012 pelo Supremo Tribunal de Justiça,
Deles vem interpor Recurso para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL ao abrigo do disposto no art.º 280.º, n.º 1, al. b) e n.º 4 da Constituição da República Portuguesa e nos arts.º 70.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, e 75.º, n.º 2, da LTC.
Esclarece o recorrente que, no que se refere ao Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 08.02.2012, suscitou a questão da inconstitucionalidade das normas legais infra identificadas após a prolação do acórdão ora recorrido;
Mas tal ficou a dever-se ao facto de o recorrente ter sido «surpreendido com uma interpretação normativa insólita e inesperada, com a qual, razoavelmente, não poderia contar» (cfr. Breviário de Direito Processual Constitucional», de Guilherme da Fonseca e Inês Domingos, pág. 56, nota 54), constante do acórdão ora recorrido.
Da simples leitura do Acórdão ora recorrido e do Requerimento de Arguição de Nulidade, de 23.02.2012 – fls. 758 a 772 – aqui dado por reproduzido na integra para todos os efeitos legais - resulta claramente o caráter de «decisão surpresa» daquele acórdão.
Na verdade, o Recurso interposto pretendia a modificação da decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto, a qual foi impugnada, porquanto a mesma foi incorretamente julgada.
Para tal, e no estrito cumprimento do legalmente exigido, o Recorrente indicou os PONTOS DE FACTO QUE CONSIDERA INCORRETAMENTE JULGADOS (art. 412º, n.º 3, al. a) do CPP), procedendo à sua transcrição.
Cumprindo também todas as exigências legais indicou, expressa e concretamente, as PROVAS QUE IMPÕE DECISÃO DIVERSA DA RECORRIDA (art. 412º, n.º 3, al. b) do CPP).
Transcreveu, na íntegra, e com indicação rigorosa, os depoimentos que, concretamente consubstanciam tais provas, indicando também de forma correta os autos de inquirição, declarações e documentos que entendeu relevantes, procedendo também à sua transcrição.
Ao fazê-lo, e como é óbvio, pretendia o Recorrente que o Tribunal da Relação analisasse criticamente as provas indicadas, explicando as razões que objetivamente determinariam o Tribunal a ter ou não por averiguado determinado facto, com referência concreta a tais pontos de facto e a tais provas, de modo a formar a sua própria convicção, por se impor uma decisão diversa da recorrida.
Ao invés, e surpreendentemente, nada disso foi feito.
Na verdade, em 4 brevíssimas páginas, o Recurso foi apreciado de um modo absolutamente genérico, não se pronunciando o Tribunal sobre as provas concretamente indicadas relativamente aos concretos pontos de facto que o Recorrente indicou como tendo sido incorretamente julgados.
O Recorrente indica qual a prova que impõe a decisão diversa da recorrida, indicando os factos dados como provados que o não deveriam ter sido. Esta obrigação legal do recorrente tem de corresponder a igual obrigação legal do Tribunal da Relação de responder com referência em concreto a tais factos e tais provas, explicando como formou a sua convicção.
Face ao exposto, não era minimamente expectável que o Tribunal da Relação não se pronunciasse sobre os pontos de facto e meios de prova indicados pelo recorrente, ou que não efetuasse uma análise critica sobre os pontos de facto e meios probatórios invocados pelo recorrente, e sobre todos eles, e não apenas alguns.
Mostram-se, assim, ainda satisfeitos os pressupostos do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), acima citado (cfr. acs. 61/92, 188/93, 569/95, 596/96, 499/97, 642/99, 674/99, 124/00, 155/00, 192/00, 79/02 e 120/02, do Tribunal Constitucional).
Por outro lado, o ora recorrente suscitou atempadamente a questão da INCONSTITUCIONALIDADE das normas legais infra identificadas, ou seja, fê-lo antes da prolação do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 02.05.2012, do Despacho de não admissão de Recurso proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 11.07.2012 e da Decisão Singular da Reclamação proferida em 29.10.2012 pelo Supremo Tribunal de Justiça.
NORMAS E PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS que se consideram violados:
A) – ARTIGOS 379.º, n.º 1, alínea c), «ex vi» do artigo 425.º, n.º 4, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL quando interpretadas no sentido de que perante um recurso interposto em que se pretende a modificação da decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto, a qual foi impugnada, porquanto a mesma foi incorretamente julgada, bastará remeter os intervenientes processuais para o acórdão da 1ª instância, concordando genericamente com o teor de tal Acórdão, não se pronunciando sobre todos os concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados pelo recorrente e sobre todas as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, devidamente indicados também pelo recorrente.
Esta interpretação que o Tribunal da Relação do Porto fez das ditas normas legais viola frontalmente o disposto no artigo 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), bem como viola o disposto nos artigos 2.º e 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), que consagram o princípio fundamental do Estado de Direito (a que estão inerentes as ideias de jurisdicidade, constitucionalidade e direitos fundamentais), o subprincípio da prevalência da lei, o subprincípio da segurança jurídica e da confiança dos cidadãos, o subprincípio das garantias processuais e procedimentais ou do justo procedimento o princípio do processo equitativo.
B) – ARTIGO 400.º, n.º 1, al. c) do CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, quando interpretado no sentido de que não há recurso de um Acórdão do Tribunal da Relação que aprecia, em 1ª instância, a nulidade por omissão de pronúncia do Acórdão que tal Tribunal proferiu, invocada pelo requerente.
Esta interpretação que o Tribunal da Relação do Porto fez das ditas normas legais viola o disposto no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, bem como viola o disposto nos artigos, 2.º, 3.º, n.º 3 e 20.º, n.º 4 da C.R.P., que consagram o princípio fundamental do Estado de Direito (a que estão inerentes as ideias de jurisdicidade, constitucionalidade e direitos fundamentais), o subprincípio da prevalência da lei, o subprincípio da segurança jurídica e da confiança dos cidadãos, o subprincípio das garantias processuais e procedimentais ou do justo procedimento e o princípio do processo equitativo.
O Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça proferiu despacho em 14 de novembro de 2012 com o seguinte conteúdo:
“Admito o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, mas apenas na parte em que vem interposto da Reclamação de fls. 145, com fundamento na inconstitucionalidade do artigo 400.º, n.º 1, c), do Código de Processo Penal”.
Na parte em que o requerente interpôs recurso do acórdão da Relação, caberia à Relação pronunciar-se sobre a admissibilidade no momento processualmente adequado.”
O arguido reclamou desta decisão, alegando o seguinte:
“No requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional apresentado pelo arguido é expressamente referido que este incide sobre:
1º - O Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 08.02.2012 (fls. 744 a
752);
2º - O Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 02.05.2012 (fls. 777 a
785);
3º - O Despacho de não admissão de Recurso proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 11.07.2012 (fls. 826);
4º - A Decisão Singular da Reclamação proferida em 29.10.2012 pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Em face de tal Requerimento de Interposição de Recurso foi proferido, pelo Supremo Tribunal de Justiça, o DESPACHO de 14.11.2012 que refere: “Na parte em que o requerente interpôs recurso do acórdão da Relação, caberia à Relação pronunciar-se sobre a admissibilidade no momento processualmente adequado.
Perante o teor de tal despacho, o arguido Requereu, nos termos do disposto no artigo 380º do Código de Processo Penal, a sua Correção.
Em resposta foi proferido o DESPACHO de 29.11.2012 (proferido a fls. 167 nos autos de Reclamação n.º 1226/07.1TAMTS.P1 – A.S1) que apenas confirma o Despacho anteriormente proferido.
BREVE ENQUADRAMENTO PROCESSUAL:
Por decisão do Tribunal Judicial de Matosinhos, (3º Juízo Criminal, Processo n.º 1226/07.1TAMTS) foi o arguido condenado pela prática, em autoria material, de um crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 172, nº 1 e 2 (atual art. 171, nº 1 e 2) e 177, nº 1, al. a), ambos do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão.
Não se conformando com o Acórdão proferido pelo Tribunal de 1ª Instância, o arguido interpôs Recurso para o Tribunal da Relação do Porto, o qual visava, além do mais, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, tendo por objeto a reapreciação da prova gravada.
Contudo, e surpreendentemente, em 4 brevíssimas páginas, o Recurso foi apreciado de um modo absolutamente genérico, não se pronunciando o Tribunal da Relação do Porto, minimamente, sobre as provas concretamente indicadas relativamente aos concretos pontos de facto que o Recorrente indicou como tendo sido incorretamente julgados.
Perante tal evidência, antes de transitar em julgado, o arguido veio arguir a nulidade, e associada inconstitucionalidade, do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 08.02.2012 (fls. 744 a 752), por omissão de pronúncia sobre a impugnação da matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1 alínea c), «ex vi» do artigo 425.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.
Na sequência de tal arguição, o Tribunal da Relação do Porto proferiu o Acórdão de 02.05.2012 (fls. 777 a 785), negando provimento à pretendida declaração de nulidade do Acórdão proferido em 08.02.2012, e associada inconstitucionalidade, mantendo-o nos seus precisos termos.
Antes do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 02.05.2012 transitar em julgado, o arguido interpôs Recurso do mesmo para o Supremo Tribunal de Justiça.
Na sequência foi proferido o Despacho de não admissão de Recurso pelo Tribunal da Relação do Porto em 11.07.201 2 (fls. 826).
Por discordar de tal Despacho, e antes de o mesmo transitar em julgado, o arguido apresentou Reclamação dirigida ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
Na sequência foi proferida a Decisão Singular da Reclamação pelo Supremo Tribunal de Justiça em 29.10.2012, indeferindo a Reclamação apresentada.
E é nesta fase processual, que entendemos e estamos seguros ser a correta, que o arguido interpôs Recurso para o Tribunal Constitucional, para apreciação das inconstitucionalidades devidamente e atempadamente invocadas.
Na verdade, e além do mais, entende o requerente que haverá aqui a aplicação do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional que determinam o seguinte:
2 – “Os recursos previstos nas alíneas b) e f) do número anterior apenas cabem de decisões que não admitam recurso ordinário, por a lei o não prever ou por já haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam, salvo os destinados a uniformização de jurisprudência.
3 - São equiparadas a recursos ordinários as reclamações para os presidentes dos tribunais superiores, nos casos de não admissão ou de retenção do recurso, bem como as reclamações dos despachos dos juízes relatores para a conferência”.
Ora, atendendo a que o Acórdão da Relação do Porto foi objeto de Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e posterior Reclamação de não admissão desse mesmo recurso, entende o arguido, e aqui reitera tal entendimento, que apenas agora pode e deve o mesmo ser objeto de recurso para o Tribunal Constitucional, por ser este o momento processualmente adequado.
E fê-lo perante o Tribunal onde todo o processo se encontra, ou seja, o Supremo Tribunal de Justiça.
De facto, poderia ou deveria o arguido Recorrer para o Tribunal Constitucional quando arguiu a nulidade, e associada inconstitucionalidade, do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 08.02.2012?
Poderia ou deveria o arguido Recorrer para o Tribunal Constitucional quando interpôs Recurso do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 02.05.2012 para o Supremo Tribunal de Justiça?
Poderia ou deveria o arguido Recorrer para o Tribunal Constitucional quando, na sequência do Despacho de não admissão de Recurso pelo Tribunal da Relação do Porto em 11.07.2012 apresentou Reclamação dirigida ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça?
A todas estas questões respondemos NÃO.
Apenas apás esgotados os meios jurisdicionais ao seu alcance, aqui se incluindo a Reclamação apresentada por não admissão do Recurso perante o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, é que pode e deve o arguido Recorrer para o Tribunal Constitucional.
O que fez atempadamente.
TERMOS EM QUE, E NOS QUE VOSSA EXCELÊNCIA SABERÁ MELHOR SUPRIR, DEVE CONCEDER-SE PROVIMENTO À PRESENTE RECLAMAÇÃO E, EM CONSEQUÉNCIA, REVOGAR-SE O DESPACHO RECLAMADO, ORDENANDO-SE SEJA PROFERIDO NOVO DESPACHO EM QUE SE ADMITA, NA SUA TOTALIDADE, O RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO, COM
TODAS AS CONSEQUÊNCIAS DA LEI.”
O Ministério Público pronunciou-se no sentido do processo ser remetido para o Tribunal da Relação a fim de aí ser avaliada a admissibilidade do recurso interposto, na parte em que este se dirige a decisões proferidas por esse Tribunal.
Fundamentação
Verifica-se que o Recorrente pretende a fiscalização por este Tribunal de normas que teriam sido aplicadas neste processo quer pelo Tribunal da Relação do Porto, quer pelo Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
O Recorrente apresentou o respetivo recurso no Supremo Tribunal de Justiça.
Dispõe o artigo 76.º, n.º 1, da LTC, que compete ao tribunal que tiver proferido a decisão recorrida apreciar a admissão do respetivo recurso.
Assim, relativamente à parte em que se impugnam normas aplicadas pelo Tribunal da Relação do Porto, não podia o Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça recebe-lo, pelo que a reclamação deve ser indeferida.
Contudo, de modo a que seja proferido o despacho a que alude o artigo 76.º, n.º 1, da LTC, relativamente à parte em que estão em causa decisões proferidas pelo Tribunal da Relação do Porto, devem os autos serem remetidos a este Tribunal.
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada e determina-se a remessa do presente processo ao Tribunal da Relação do Porto, a título devolutivo, a fim de aí ser proferido despacho nos termos do artigo 76.º, n.º 1, da LTC, relativamente à parte do recurso que se reporta a normas aplicadas por aquele Tribunal.
Sem custas.
Lisboa, 23 de janeiro de 2013. – João Cura Mariano – Ana Guerra Martins – Joaquim de Sousa Ribeiro.