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Processo nº314/2001
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção
do Tribunal Constitucional:
1. Pelo requerimento de fls. 50, C... recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de fls. 41, pretendendo que fosse julgada inconstitucional “a disposição legal vertida no artigo 14º do Decreto-Lei nº 12 487 de 14 de Outubro de 1926” (considera-se a referência feita ao Decreto nº 12 487, de 14 de Outubro de 1926) por violação do disposto no nº 1 do artigo 62º da Constituição. Indica ainda que invocou a inconstitucionalidade na motivação do recurso que interpôs para o Tribunal da Relação de Lisboa. Pelo acórdão nº 342, de fls. 68, foi considerado como confirmado este requerimento, indevidamente subscrito por advogada estagiária; e as partes foram notificadas para apresentarem alegações.
2. Pelo acórdão da 9ª Vara Criminal de Lisboa, de 13 de Abril de 2000, de fls.
3, C... foi condenado na pena de 2 anos e 3 meses de prisão pela prática de um crime de burla informática e de um crime de passagem de moeda falsa, punidos, respectivamente, pelos artigos 221º, nºs 1 e 5, a) e 265º, a) e 267º, nº 1, c), do Código Penal. Para o que agora interessa, o mesmo acórdão determinou “que se restituam ao arguido os objectos e dinheiro apreendidos que não devam ser restituídos à requerente civil (...)”. Pelo requerimento de fls. 17, de 14 de Dezembro de 2000, tendo sido notificado de um despacho que declarou perdidos a favor da Fazenda Pública objectos e dinheiro que lhe haviam sido apreendidos, por não terem sido oportunamente reclamados, C... veio sustentar ter ocorrido uma irregularidade por não ter sido notificado do prazo de que dispunha para tal reclamação e requerer que essa irregularidade fosse sanada, procedendo-se à notificação do seu mandatário “para cumprimento do disposto no artigo 14º al. 1) do Dec.-Lei nº 12487 de 14.10.26, sendo concedido novo prazo”. Este requerimento foi indeferido pelo despacho de fls. 18, por não existir qualquer irregularidade, uma vez que “o arguido e o seu defensor foram notificados quando da prolação do acórdão condenatório do decidido quanto a tais objectos” que “não foram reclamados dentro do prazo legal”. Foi deste despacho que C... recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que veio a proferir o acórdão agora recorrido. Este acórdão, após ter considerado que o artigo 14º do Decreto nº 12 487 se encontra em vigor, não tendo sido revogado pelo artigo 2º, nº 2, do Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro (cujo artigo 1º aprovou o Código de Processo Penal de 1987), contrariamente ao sustentado pelo arguido, decidiu que em nada viola o nº 1 do artigo 62º da Constituição a interpretação daquele artigo 14º segundo a qual o arguido dispõe de três meses, após o trânsito em julgado da decisão que ordenou a restituição dos objectos, para os reclamar, sem ter de ser especificamente notificado para o efeito, sob pena de se considerarem perdidos a favor do Estado.
“É que, a prescrição dos objectos a favor do Estado, ocorreu na sequência de absoluta passividade do arguido no decurso de três meses seguintes ao trânsito em julgado do Acórdão do qual se encontrava notificado e que ordenara a restituição dos objectos e dinheiro. Tal inércia configura um abandono presumido que, no entanto, só opera se decorridos forem três meses após o trânsito em julgado da decisão que determinou a entrega. (...) Deste modo, fica acautelado o direito à propriedade privada (...)”.
3. No Tribunal Constitucional, as partes apresentaram as suas alegações.
C... concluiu do seguinte modo:
“1º. O artigo 14º do Dec.-Lei nº 12 487 de 14/10/1926, artigo 186º nº 1 e nº 2 do C.P.P. e artigo 2º nº 2 do Dec.-Lei nº 78/87, de 17.02, quando interpretados e aplicados como o foram no caso, em termos de permitirem a subsistência do primeiro, são materialmente inconstitucionais por violação do disposto no artigo
62º nº 1 da CRP, na parte em que esta tutela o direito à propriedade privada e impede o confisco de bens.
2º. Na verdade, ao fazer depender da iniciativa do proprietário a devolução de bens e quantias apreendidas, quando o reconhecimento judicial da desnecessidade de apreensão deveria implicar a sua automática restituição, tais normas agridem de modo desproporcionado o direito de propriedade individual, permitindo assim o confisco estatal de bens”.
O Ministério Público, por seu lado, concluiu assim:
“1º - Não constitui limitação ou restrição ao direito de propriedade a imposição aos titulares de valores apreendidos em processos de natureza criminal do ónus de – no prazo de 3 meses após o trânsito em julgado da decisão final – formularem pretensão visando a respectiva restituição, nos casos em que esta se mostra autorizada pela decisão jurisdicional proferida no termo da causa e objecto de notificação ao interessado e respectivo mandatário ou defensor.
2º - O referido prazo de três meses não se configura como excessivamente restrito ou inadequado à efectivação de tal pretensão.
3º - Não constitui solução injustificada ou desproporcionada a imposição ao interessado – devidamente notificado da oportunidade de efectivar tal pretensão
– de efeito cominatório ou preclusivo para a sua atitude omissiva, configurada como presunção de desinteresse ou abandono desses bens ou valores.
(...)”.
4. Cabe começar por delimitar o objecto do presente recurso. Com efeito, e em primeiro lugar, esse objecto é definido no requerimento de interposição de recurso, não podendo o recorrente ampliá-lo – isto é, estendê-lo a outras normas para além daquela que é indicada naquele requerimento – nas alegações (ver, a título de exemplo, o acórdão nº 366/96, Diário da República II, de 10 de Maio de 1996). Isto significa que apenas se pode considerar integrada no objecto do recurso a norma contida no artigo 14º do Decreto nº 12 487, na medida em que é impugnada pelo recorrente, ou seja, enquanto faz depender de reclamação do interessado a restituição dos bens em causa, sob pena de se considerarem perdidos para o Estado. Note-se que o recorrente não questiona o prazo em que deve ser apresentada a reclamação. Em segundo lugar, não pode o Tribunal Constitucional pronunciar-se, como se sabe, sobre a questão que mais detidamente é analisada nas alegações, e que se traduz em saber se deve ou não considerar-se em vigor o artigo 14º citado. Com efeito, não é colocada nenhuma questão de constitucionalidade relacionada com este ponto. Identificada a norma que constitui o objecto do recurso, cumpre apreciá-la.
5. É o seguinte o texto do artigo 14º do Decreto nº 12 487, na parte relevante:
“Art. 14º. As quantias em dinheiro apreendidas em processos criminais serão depositadas na Caixa Geral de Depósitos à ordem do respectivo juiz a fim de serem entregues a final e gratuitamente a quem a elas tiver direito.
§ 1º Todos os objectos e quantias não reclamados pelas partes, no prazo de três meses após o trânsito em julgado das decisões finais proferidas nos respectivos processos, prescreverão a favor da Fazenda Pública (...).
(...)”
Está pois somente em causa saber se é constitucionalmente censurável uma norma que imponha como condição da restituição dos bens apreendidos ao arguido em processo penal, restituição ordenada pela decisão que o condenou, que os mesmos sejam reclamados pelo interessado, sob pena de serem declarados perdidos a favos do Estado. O recorrente sustenta que esta norma é inconstitucional, por violação da protecção constitucional do direito de propriedade, já que permite um verdadeiro confisco. Esta acusação não tem porém, fundamento. Com efeito, há que ter em conta que o arguido é notificado da decisão que determina a restituição, decisão que é proferida no âmbito do processo em que os bens a restituir foram apreendidos e em que ele é arguido; não é, pois, surpreendido com uma decisão inesperada ou com a imposição de um ónus que não esteja previsto na lei aplicável ao caso (cfr., por exemplo, MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal anotado, 12ª ed., Coimbra, 2001, págs. 414 e 424). Na verdade, é da imposição de um ónus que se trata; e não se encontra razão, tendo justamente em conta a sua imposição no âmbito de um processo em que foi arguido o interessado, que sabe, quer que os bens foram apreendidos, quer que foi determinada a sua restituição, para se poder afirmar que seja desrazoável ou excessivo ter de a requerer. Sustenta o recorrente que a consequência da falta de reclamação – a perda dos bens a favor do Estado – equivale a um confisco, em violação da proibição constitucional, constante do nº 2 do artigo 62º da Constituição. Nenhuma semelhança existe, porém, entre este caso e a requisição ou a expropriação por utilidade pública, nem com as razões levam a Constituição a impor, nestes casos, a obrigatoriedade de uma justa indemnização. Com efeito, a causa da perda dos bens é uma inactividade do interessado, que, podendo reclamar os bens, não os reclama; a lei limita-se a ligar a esta atitude a consequência da sua perda, estabelecendo, no fundo, uma presunção – cuja natureza não cabe agora averiguar – de abandono. Não ocorre, consequentemente, nenhuma violação do direito de propriedade privada. Aliás, em parte alguma das suas alegações o recorrente explica porque alega tal violação, que apenas afirma. A concluir, cabe observar que também se não vê que seja violado qualquer outra regra ou princípio constitucional; em particular, que seja infringido o princípio da proporcionalidade, ou da proibição do excesso, pois que, como já se observou, as circunstâncias em que a lei impõe o ónus de reclamar os bens não permitem considerá-lo excessivamente oneroso.
Nestes termos, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no que respeita à questão de constitucionalidade. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs.
Lisboa, 18 de Janeiro de 2002- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida