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Proc. nº 20/00
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório. A e B (ora recorrentes) deduziram, junto do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto, oposição à execução fiscal contra si revertida e instaurada pela Fazenda Pública (ora recorrida), originariamente, contra a sociedade C, de que aqueles eram sócios gerentes, para cobrança de dívidas de IVA relativo aos meses de Março de 1992 e Março de 1993, no montante global de 6.633.931$00.
2. O Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto, por decisão de 23 de Abril de
1998, julgou a oposição improcedente.
3. Inconformados com esta decisão os oponentes recorreram para o Tribunal Central Administrativo tendo, a concluir as suas alegações, dito, designadamente, o seguinte:
'(...)
8ª - Ao julgar improcedente a oposição com fundamento de que o art. 13º, nº 1 do CPT consagra uma presunção de exercício de gerência de facto por parte dos gerentes de direito, daí fazendo derivar a imposição a estes do ónus de ilidir tal presunção, a douta sentença fez uma errada aplicação a estes do ónus de ilidir tal presunção, a douta sentença fez uma errada aplicação daquele preceito legal.
9ª - Mas, a entender-se que o citado art. 13º, nº 1, do CPT, consagra, efectivamente, aquela presunção e o concomitante ónus sobre os oponentes, então impõe-se concluir pela inconstitucionalidade daquela norma, por violação dos princípios da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade, do acesso à justiça, plasmados nos artºs 2º, 3º, 18º, nº 2 e 20º, nºs 1 e 4, 266º, nº 2 e
268º, nº 4 da Constituição.
(...)'.
4. O Tribunal Central Administrativo, por acórdão de 19 de Outubro de 1999, decidiu negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida. Sobre a alegada inconstitucionalidade do art. 13º, nº 1, do CPT, ponderou aquele Tribunal:
'(...) Levantam, ainda, os oponentes a questão da inconstitucionalidade do art. 13º, nº
1, do Código de Processo Tributário. Quanto a esta questão nova, que este tribunal aceita discutir, diremos que, como observa o MP, não têm qualquer razão quando invocam a inconstitucionalidade do art. 13º, nº 1, do Código de Processo Tributário, sendo que em sentido uniforme, e oposto ao que defendem, tem decidido a jurisprudência do STA ao considerar que tal preceito não é materialmente inconstitucional, designadamente por violação dos princípios constitucionais da necessidade, da proporcionalidade, da proibição de excesso, da capacidade contributiva, proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e do acesso à justiça, nem por conter uma presunção de culpa insuficientemente justificada, nem por ter criado um novo sujeito passivo (por todos, o Ac. de 26/05/1999, in rec. nº 23769)'.
5. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art.
70º da LTC, o presente recurso de constitucionalidade. Pretendem os recorrentes ver apreciada, nos termos do respectivo requerimento de interposição, a constitucionalidade da norma do nº 1 do art. 13º do Código de Processo Tributário, na interpretação do acórdão recorrido, 'segundo a qual a sua aplicação pressupõe ou implica uma presunção judicial de gerência de facto por parte dos gerentes de direito das empresas e sociedades de responsabilidade limitada, daí fazendo derivar a imposição a estes do ónus de ilidir tal presunção', por alegada violação dos princípios da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e do acesso à justiça, plasmados nos artºs 2º, 3º,
18º, nº 2 e 20º, nºs 1 e 4, 266º, nº 2 e 268º, nº 4 da Constituição.
6. Já neste Tribunal foram os recorrentes notificados para alegar, o que fizeram, tendo concluído da seguinte forma:
'1ª - Ao interpretar e aplicar o art. 13º, nº 1, do CPT (na redacção ao tempo em vigor) no sentido de que esta norma consagra uma presunção de exercício da gerência de facto, o douto acórdão recorrido consagrou uma interpretação contrária aos princípios da proporcionalidade, da imparcialidade e da justiça,
ínsitos nos art.s 18º, nº 2 e 266º, nº 2 da CRP.
2ª - A imposição aos administradores ou gerentes extraída do art. 13º, nº 1, do CPT, do ónus de provarem o não exercício de facto da gerência, na interpretação sufragada pelo douto acórdão recorrido, fere os princípios da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade plasmados nos artºs 2º, 3º, 18º, nº 2 e 266º, nº
2 da CRP, quer só por si, quer na medida em que o citado art. 13º, nº 1, do CPT, faz recair sobre eles um outro ónus – o de provarem que não foi por culpa sua que o património social se tornou insuficiente para a satisfação dos créditos fiscais.
3ª - Da interpretação dada pelo douto acórdão recorrido ao art. 13º, nº1, do CPT, resulta que o ónus imposto aos gerentes ou administradores de provarem que não exercem a gerência de facto inviabiliza (ou colide, tornando-a impossível, como no caso dos autos se verifica e demonstra) a sua defesa decorrente do ónus da prova de que não foi por culpa sua que o património social se tornou insuficiente para a satisfação dos créditos fiscais, violando, assim, os princípios de acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva previstos nos art.s 20º, nºs 1 e 4, e 268º, nº 4, da CRP.
4ª - A natureza dos créditos do Estado não justifica uma protecção tão radical e tão discriminatória relativamente aos créditos dos particulares nem pode legitimar um tão desproporcionado e excessivo sacrifício dos valores fundamentais do Estado de direito, pelo que o art. 13º, nº 1, do CPT, interpretado e aplicado nos termos em que o fez o douto acórdão recorrido contraria o disposto nos art.s 2º, 3º, 18º, nº 2 e 266º, nº 2 da CRP'.
7. Por parte da recorrida não foi apresentada, dentro do prazo legal, qualquer alegação.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II. Fundamentos
8. Questão prévia: delimitação e possibilidade de conhecer do objecto do objecto do recurso. Importa, antes de mais, começar por delimitar o âmbito do presente recurso de constitucionalidade, para, seguidamente, verificar se pode conhecer-se do seu objecto.
8.1. Conforme este Tribunal tem repetidamente afirmado (cfr., por todos, o acórdão nº 366/96, publicado na Colectânea de Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33º Vol., pp. 525 e ss.), o requerimento de interposição do recurso constitui o acto idóneo à fixação do respectivo objecto, não sendo possível ao recorrente, em sede de alegações, ampliar a outras normas - ou dimensões normativas - o objecto assim delimitado. Não pode, pois, o Tribunal conhecer de questões de constitucionalidade que, sendo suscitadas nas alegações, não são sequer referidas no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional. Ora, no requerimento de interposição do recurso, os recorrentes apenas questionam a constitucionalidade do artigo 13º, nº 1, do Código de Processo Tributário (CPT), quando interpretado em termos de 'pressupor ou implicar uma presunção judicial de gerência de facto por parte dos gerentes de direito das empresas e sociedades de responsabilidade limitada, daí fazendo derivar a imposição a estes do ónus de ilidir tal presunção', mas já não a constitucionalidade daquele preceito, na parte em que se estabelece uma presunção de que foi por culpa sua que o património social se tornou insuficiente para a satisfação dos créditos fiscais, pelo que só aquela primeira interpretação normativa constitui objecto possível do recurso.
8.2. Delimitado, nestes termos, o âmbito do recurso, vejamos se pode conhecer-se do seu objecto. Confrontado pelos recorrentes sobre a questão de saber a quem incumbe o ónus da prova da gerência efectiva, ou de facto (considerada pressuposto necessário do funcionamento do regime previsto no art. 13º, nº 1 do CPT) a decisão recorrida aderiu expressamente à solução que vem fazendo vencimento na jurisprudência administrativa, no sentido de que da prova da gerência nominal (ou de direito) se pode presumir a gerência efectiva (ou de facto), cabendo ao interessado ilidir essa presunção. Nesse sentido, pode ler-se na decisão recorrida:
'Por isso a jurisprudência, mediante presunção judicial, permitida pelos artigos
349º a 351º do Código Civil, vem retirando, da provada qualidade de gerente nominal, o efectivo exercício da função inerente ao cargo; ou seja, partindo da gerência de direito, conclui pela gerência de facto. Deste modo, há-de ser o interessado em convencer que não exerceu a gerência a fazer a prova que evite que se estabeleça a presunção judicial. Dito de outro modo, o gerente nominal, pretendendo que, de facto, não exerceu a gerência, deve prová-lo. Essa prova não tem de ser documental, antes podendo ser feita por qualquer meio, dos admitidos, bastante para convencer o juiz, que goza de liberdade na apreciação da prova testemunhal – cfr. o art. 396º do Código Civil'.
Aplicou, pois, a decisão recorrida, o artigo 13º, nº 1, do CPT, na exacta dimensão normativa cuja constitucionalidade vem questionada pelos recorrentes. A verdade, porém, é que a demonstração de que é assim não é ainda suficiente para que possa conhecer-se do objecto do recurso. Efectivamente, como o Tribunal Constitucional tem reiterada e uniformemente afirmado, por força da natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, só deve conhecer de uma questão de constitucionalidade normativa se a resolução de tal questão se repercutir de alguma forma no julgamento da questão substantiva apreciada na decisão recorrida. Dessa forma, para decidir se tem interesse conhecer do objecto do recurso, decisivo é saber se, pronunciando-se o Tribunal pela inconstitucionalidade daquela interpretação normativa do artigo 13º, nº 1 do CPT, tal implicaria uma alteração do decidido quanto à questão substantiva que foi objecto da decisão recorrida. Cremos, efectivamente, que não, na medida em que na própria decisão recorrida se refere expressamente ser entendimento do Tribunal (que não cabe aqui contestar) que haveria nos autos prova suficiente do exercício por parte dos oponentes da gerência efectiva. Em suma: considerou a decisão recorrida que a Fazenda Pública beneficiava da presunção de que os gerentes nominais eram também gerentes de facto, pelo que nada teria que provar, mas considerou igualmente que, mesmo que o ónus da prova estivesse a seu cargo, haveria no processo prova suficiente de que os oponentes exerciam uma gerência efectiva. Nesse sentido, refere-se naquele aresto:
'Assim sendo, resulta clara a responsabilidade dos oponentes pois não lograram provar os factos alegados tendentes a demonstrar que a sua gerência era tão só nominal; aliás, resulta dos documentos juntos aos autos e do depoimento das testemunhas, como atrás se referiu, exactamente o contrário: a gerência da sociedade ficou cometida a todos os sócios, qualidade que os oponentes detinham e que estes trabalhavam na empresa, tendo a seu cargo as áreas comercial e de produção da mesma, que apunham a sua assinatura quando necessária à formalização de actos que obrigassem a sociedade, designadamente assinando cheques para pagamentos. Tudo isto são actos consubstanciadores de uma gerência efectiva, ainda que partilhada com outro sócio no tocante à repartição de sectores ou tarefas inerentes à vida social pois integram os poderes de direcção, disposição e administração inerentes ao cargo. Nesse sentido têm decidido as nossas mais altas instâncias (...): «Na verdade, entende-se correntemente que é gerente efectivo, ou de facto, o que é órgão actuante da sociedade, tomando as deliberações consentidas pelo pacto ou exteriorizando a vontade social perante empregados ou estranhos, quer obrigando a empresa quer realizando negócios, enfim exercendo uma gerência que se consubstancia no uso efectivo dos poderes de administração ou representação da sociedade'.
Nestes termos, porque o julgamento da questão de constitucionalidade que vem colocada ao Tribunal não seria susceptível de influir no julgamento da questão substantiva apreciada na decisão recorrida, não pode, de acordo com a jurisprudência antes expressa, conhecer-se do objecto do recurso.
III. Decisão Por tudo o exposto, decide-se não conhecer do objecto do recurso Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 8 (oito) unidades de conta. Lisboa, 31 de Janeiro de 2002 José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida