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Processo n.º 286/00
2ª Secção Relator - Paulo Mota Pinto Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório Em 16 de Junho de 1997 A intentou contra B acção de despejo com processo comum sumário junto do tribunal cível do Porto. Para tal alegou ser proprietária de um imóvel arrendado à Ré, fundamentando a resolução do contrato no artigo 64º, n.º
1, alínea i) do Regime do Arrendamento Urbano invocando a falta de habitação permanente no locado. Esta pretensão foi contestada pela Ré que alegou, por um lado, a transitoriedade da sua ausência, motivada por razões de doença (síndrome de Parkinson), e, por outro, o facto de o seu filho, maior e divorciado, permanecer no local arrendado, invocando, deste modo, o disposto no artigo 64º, n.º 2, alíneas a) e b) daquele diploma. Por sentença de 28 de Março de 1999 foi a acção considerada procedente, tendo sido decretada a resolução do contrato de arrendamento em causa e a Ré condenada a entregar o mesmo, nos seguintes termos:
'Dispõe o n.º 2 do referido art. 64º do RAU que não tem aplicação o disposto na al. i) do número anterior em caso de força maior ou de doença. Tratando-se a doença da demandada B de doença crónica, para si inevitável e insuperável, essa cronicidade ou insusceptibilidade de cura torna-a inoperante para os efeitos do preceito citado, que só atende ao estado de doença de carácter inevitável e também reversível. Também a situação configurada na al. c) daquele n.º 2 não se aplica ao nosso caso. De facto, com esse normativo, com a expressão ‘familiares’ quis o legislador abarcar aqueles que estejam ligados ao arrendatário por um nexo de subordinação afectiva, económica e moral, o que não se verifica no caso vertente, pois apesar de se ter demonstrado que ficou no locado um filho da Ré, não se evidenciou que este ali vivesse com sua mãe em comunhão de mesa e habitação, e muito menos que aquele vivesse na dependência económica desta.' A Ré interpôs recurso de apelação desta decisão para o Tribunal da Relação do Porto concluindo nos seguintes termos:
'1. A alínea a) do n.º 2 do art. 64º do RAU caracteriza como excepção ao disposto na al. i) do número anterior, a ocorrência de doença do arrendatário.
2. Esta ‘doença’ é um conceito que o legislador não definiu que tivesse de ser
(ou presumivelmente seja) temporária.
3. Restringir a interpretação do conceito de doença de forma a expulsar do seu conteúdo a doença definitiva, contraria os princípios filosóficos orientadores da nossa civilização ocidental e os principais consignados na C.R.P.
4. O Estado garante aos seus cidadãos, deficientes, de terceira idade, o gozo pleno dos direitos, entre os quais se consigna o direito à habitação, no sentido de centro histórico dos seus interesses familiares, das suas recordações, das suas mobílias, com o direito de o rever, de o visitar, de o adequar às novas condições de saúde que lhe surgiram e lhe impuseram limitações.
5. O Estado garante aos seus velhos e doentes, o gozo da qualidade de vida possível até ao seu falecimento, preservando-se uma ideia de não ingratidão, de um tratamento de grau mais elevado, também adequado à nova situação de doente ou velho- com sacrifício maior do Estado e dos restantes concidadãos.
6. Interpretar o disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 64º como o fez, aliás, o douto recorrido, viola os mais elementares princípios de solidariedade social consignados, entre outros, nos arts. 65º, 71º e 72º da C.R.P.
7. E tão desumana é esta interpretação restritiva do conceito de doença, que o ilustre magistrado a quo, como que se penaliza por considerar de aplicar esta teoria.
8. No arrendado permaneceu um filho da arrendatária, sendo que, o disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 64º, não pode ser entendido como só funcionando a excepção se o descendente directo estiver na dependência económica do arrendatário.
9. Porquanto, ao abrigo do direito social, consignado no ar. 67º da C.R.P. o que interessa é valorar a dependência afectiva, a solidariedade social entre os seus membros, que é o que ocorre nos autos. Termos em que se violou o disposto nas alíneas a) e c) do n.º 2 do art. 64º do RAU, tendo em atenção o disposto nos arts. 65º, 67º, 71º e 72º da C.R.P.' Por Acórdão de 31 de Janeiro de 2000 o Tribunal da Relação do Porto negou provimento ao recurso e confirmou a decisão impugnada nos seguintes termos:
'[...] de acordo com o disposto no artigo 1022º do Código Civil, a locação é o gozo temporário da coisa e é esse gozo conjugado com a finalidade do arrendamento que o senhorio deve assegurar ao locatário, nos termos da alínea b) do mencionado Diploma [Código Civil]. Daí que só o facto que transitoriamente o impeça justificará que continue a ser garantido. Tratando-se, pois, de doença que revista o carácter evolutivo e insusceptível de cura, a impossibilidade de residência permanente que nela se baseia não é transitória, razão por que prejudicada deverá ficar a obrigação legal de o assegurar. No caso concreto dos autos, a apelante alegou, na contestação, como causa justificativa da ausência, a doença de Parkinson, vindo, a final, a provar-se que, desde Janeiro de 1996, se encontra doente e padece de quadro demencial senil, o que vale por dizer que sofre de doença progressiva e crónica susceptível de tornar o tratamento em definitivo. (...)
É que não basta que se trate de doença séria e real, operante da falta de residência no prédio arrendado; necessário se torna que concomitantemente o seja de modo inevitável e se revista de natureza reversível, sendo destituídos de relevância quaisquer factos porventura indiciadores da vontade de não se desligar da casa, na medida em que, de per si, não suprem a falta desses requisitos, nem, consequentemente, é objecto de protecção legal. De sorte que nenhuma censura merece a decisão recorrida ao dar como não verificada a excepção peremptória prevista na alínea a) do n.º 2 do falado artigo 64º. Examinemos, agora, a segunda questão. Objecta a apelante que no arrendado permaneceu um filho e apesar da independência económica deste deverá ser suficiente para fazer funcionar, com
êxito, a excepção prevista na alínea c) do n.º 2 do artigo 64º do RAU. Na verdade, doutrinária e jurisprudencialmente, tem-se entendido ‘nemine discrepante’ que para se verificar a excepção é exigível que não tenha havido desintegração ou desmembramento da família e, além disso, que entre o arrendatário e o familiar que permaneça no prédio se mantenha um elo ou vínculo de dependência económica que faça supor a existência de um único agregado familiar estável. Por isso, a permanência de familiares do inquilino no local arrendado, impeditiva de resolução do contrato de arrendamento por falta de residência permanente só ocorre ‘no caso do titular do arrendamento se afastar temporariamente do arrendado, em termos de poder dizer que o seu agregado familiar é apenas o que continua no arrendado’. Esta excepção pressupõe, assim, a manutenção de uma permanente ligação do arrendatário ao prédio, sendo o elo dessa ligação constituído por familiares que ficam a viver no arrendado em conexão económica consigo. Assim, a mera permanência no arrendado de um filho do locatário, designadamente,
‘sem se ter provado qualquer dependência económica desse familiar em relação ao inquilino ou que ambos continuam a viver em economia comum ‘não fará funcionar a excepção em apreço’. Da factualidade provada não figura sequer que, no arrendado, permanecesse um filho da ré que era divorciado e vivia com ela em economia comum, consoante alegação feita nos artigos 12º, 13º e 14º da contestação que não obtiveram guarida na base instrutória. Em todo o caso, ainda que a ré lograsse demonstrar tal facticidade, o certo é que jamais conseguiria a prova da existência de qualquer laço de dependência económica desse seu filho em relação a si própria (...). Deste jeito, teria de improceder, como, de resto, improcedeu, a excepção peremptória em foco. Resta, por último, abordar a questão de saber se a interpretação feita na 1ª instância e aqui aceite das normas invocadas pela ré-apelante briga com os artigos 65º, 67º, 71º e 72º da Constituição da República Portuguesa. Entende a recorrente que a interpretação restritiva do artigo 64º n.º 2, alínea a) do RAU no sentido de abranger apenas a doença temporária ofende as normas constitucionais de protecção à saúde, aos deficientes e às pessoas da terceira idade, enquanto que a exigência da dependência económica para fazer actuar a excepção da alínea c) do n.º 2 daquele preceito legal viola a norma constitucional de protecção à família. Quid iuris? Pese embora a apelante não explicitar em termos mais desenvolvidos o seu pensamento sobre eventuais inconstitucionalidades, desde já se adianta que não lhe assiste qualquer razão. Como tem sido dito, por mais de uma vez, pelo Tribunal Constitucional é legítimo ao legislador impor restrições aos direitos do proprietário privado, designadamente a renovação obrigatória do contrato de arrendamento e a sujeição a numerus clausus das causas de resolução, o que significa que o proprietário é, desse modo, chamado a ser solidário com o seu semelhante (princípio da solidariedade social). Por outro lado, o direito de habitação, sendo embora um direito cuja realização compete ao Estado – uma realização gradual, por ser um direito ‘colocado sob reserva do possível’ – vincula, no entanto e nessa medida, também a propriedade privada. Trata-se de restrições impostas em nome da função social da propriedade, que arrancam da necessidade que o Estado tem de garantir aos cidadãos um grau mínimo de realização do direito a uma habitação condigna e, bem assim, do facto de ele, sozinho, sem essa colaboração dos particulares ser incapaz de garantir esse direito, mesmo num grau mínimo de realização (acórdão n.º 486/97 do Tribunal Constitucional, de 2 de Julho de 1997, in DR n.º 241, II série, de 17-10-1997). Todavia, as restrições, ainda que necessárias, não se traduzem em constrições excessivas dos direitos dos proprietários. As normas constitucionais que a recorrente defende terem sido violadas têm o seu regime jurídico na parte relativa aos direitos sociais que, como se sabe, ao invés dos direitos, liberdades e garantias, consistem em prestações estaduais, carecendo de uma concretização política a realizar pelo legislador mediante opções políticas dentro de um quadro limitado de meios financeiros e materiais
(cfr. José Casalta Nabais, Os Direitos Fundamentais na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, págs. 9 e segs.). Ora, restrições daquele tipo só se justificam quando se trate de garantir o direito de habitação do arrendatário ou dos familiares que com ele convivem em situação de dependência económica, não sendo legítimo, porém quando o arrendatário pretende manter o local arrendado desabitado por tempo indeterminado, quando estiver em causa a habitação de familiares que de si não dependam, ou quando o arrendatário nem sequer tiver residência permanente, como
é o caso dos autos. Em tais hipóteses, as restrições ou carecem de fundamento material ou seriam desproporcionadas (neste sentido o citado acórdão do Tribunal Constitucional). Deflui, assim, que a interpretação dada às alíneas a) e c) do n.º 2 do art. 64º do RAU não é inconstitucional.' Não se conformando com esta decisão a apelante interpôs o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, invocando a desconformidade com a Constituição da interpretação dada ao artigo 64º, n.º 2, alínea a) do Regime do Arrendamento Urbano, por violação dos artigos 65º, 71º e 72 da mesma, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
'1- A alínea c) do n.º 2 do artº 64 do RAU é inconstitucional, na medida em que não abrange os arrendatários que padecem de afectação, doença ou incapacidade definitiva que lhes não permite, por força de tal afectação, incapacidade ou doença, habitar permanentemente no arrendado.
2- Tal norma viola o n.º 1 doas artºs. 65º, 71º e 72º da C.R.P.
3- Pelo que, tal norma, para se adaptar, aos princípios constitucionais consignados nos referidos preceitos, deverá abranger não só os doentes, incapazes ou afectados transitoriamente, mas os de qualquer duração, incluindo os definitivos.
4- Os doentes definitivos, por causa da sua doença, não podem ter um estatuto jurídico diferente ou diminuído.
5- A alínea c) do n.º 2 do artº 64º do RAU é inconstitucional, na medida em que exclui da sua previsão os parentes em linha recta do arrendatário que com ele convivessem há mais de um ano, mas que não são economicamente dependentes do arrendatário.
6- Tal norma viola o artº 67º da C.R.P. na medida em que a família tem um direito à protecção da sociedade e do Estado, como elemento, que é, fundamental da sociedade.
7- A distinção entre parentes independentes economicamente, ou não, só pode permitir a desagregação ou desarticulação familiar, não querida.
8- O arrendamento, que subsiste em toda a sua extensão contratual, serve o arrendatário e não o parente, pelo que a não inclusão nesta norma dos parentes em linha recta que convivam com o arrendatário há mais de um ano, mas sejam economicamente independentes, viola o citado princípio constitucional.' Na sua resposta, a recorrida suscitou, implicitamente embora, uma questão prévia relativa à delimitação do objecto do recurso, notando que a 'matéria relativa à eventual permanência do filho da recorrente no locado nem sequer faz parte do rol dos factos considerados provados', e que:
'mesmo que assim não fosse, para que a excepção da causa de resolução prevista na alínea i) do n.º 1 do art. 64º do RAU se pudesse verificar, sempre seria necessário que se tivesse provado (o que não aconteceu) que tal situação (a residência do filho no arrendado) já se verificava antes da saída da recorrente do locado para ser tratada na casa da filha, visto que só a circunstância do cônjuge ou parentes em linha recta já residirem no locado antes do início da falta de residência permanente da arrendatária é relevante para fazer funcionar aquela excepção.' Por despacho de 17 de Setembro de 2001 o relator considerou que, de facto, a alínea c) do n.º 2 do artigo 4º do RAU não só não foi aplicada na decisão recorrida por se ter nesta entendido que a situação invocada ficava fora da sua hipótese normativa ('doutrinária e jurisprudencialmente, tem-se entendido nemine discrepante que para se verificar a excepção é exígivel que não tenha havido desintegração ou desmembramento da família e, além disso, que entre o arrendatário e o familiar que permaneça no prédio se mantenha um elo ou vínculo de dependência económica que faça supor a existência de um único agregado familiar estável') – o que ainda poderia justificar aferição de tal entendimento face às normas e princípios constitucionais –, mas também por se ter entendido que não estava provada a situação invocada ('Da factualidade provada não figura sequer que, no arrendado, permanecesse um filho da ré que era divorciado e vivia com ela em economia comum, consoante alegação feita nos artigos 12º, 13º e 14 da contestação que não obtiveram guarida na base instrutória'). Assim sendo – uma vez que, dada a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade (cfr., entre muitos, os Acórdãos n.º 41/96, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 33º, pp. 235-245, e n.º 272/94, in Diário da República, II Série, de 7 de Junho de 1994), este Tribunal só deve conhecer das questões de constitucionalidade cuja decisão possa influir de forma útil na decisão da questão de fundo, pelo que não podia conhecer-se da conformidade constitucionalidade da norma da alínea c) do n.º 2 do Regime do Arrendamento Urbano (qualquer que viesse a ser o entendimento que este Tribunal julgasse decorrer da Constituição, tal norma não seria aplicável ao caso dos autos por inverificação dos pressupostos de facto de que depende a sua aplicação) –, as partes foram notificadas para querendo, se pronunciarem sobre a delimitação do objecto do presente recurso à norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 64º do Regime do Arrendamento Urbano. Nem recorrente, nem recorrida responderam a tal notificação. Cumpre, agora, apreciar e decidir. II. Fundamentos
É a seguinte a redacção da norma impugnada, a única que ficou a constituir objecto do presente recurso:
'Artigo 64º
1 – (...)
2 – Não tem aplicação o disposto na alínea i) do número anterior: a) Em caso de força maior ou de doença;
(...)' Por sua vez, a alínea i) do n.º 1 do mesmo artigo dispõe:
'1 – O senhorio só pode resolver o contrato se o arrendatário:
(...) i) Conservar o prédio desabitado por mais de um ano ou, sendo o prédio destinado a habitação, não tiver nele residência permanente, habite ou não outra casa, própria ou alheia;
(...)' Considerando que a apelante defendia 'que o vocábulo doença utilizado na alínea a) do n.º 2 do artigo 64º do R.A.U. não permite distinguir se esta é de natureza temporária ou definitiva', o acórdão recorrido historiou a evolução de tal norma, socorrendo-se do que já fora feito no acórdão da Relação de Lisboa de 7 de Março de 1969, concluindo que correspondia inteiramente à norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 1093º do Código Civil, e que esta, por sua vez, reproduzia substancialmente o n.º 1 da alínea a) do artigo 69º da pré-vigente Lei n.º 2030, de 22 de Junho de 1948. E, indagando da origem desse texto, escreveu o seguinte
(antes de sublinhar o paralelismo com o regime previsto na Lei n.º 1162, de 4 de Setembro de 1924):
'Ora sucede que esse restrição ['em caso de força maior ou por motivo de doença], não inscrita no correspondente artigo 29º, alínea a), do texto sugerido pela Câmara Cooperativa em conformidade com o seu incial parecer, nem na alínea a) da Base XLIII da Proposta Governamental, ou no seu n.º 1 que a mesma Câmara subsequentemente lhe editou, só adveio durante a discussão da Assembleia Nacional (Diário das Sessões de 1-5-1948) da proposta apresentada pela Comissão Eventual em substituição daquele art. 29º, segundo a qual o preceito da respectiva alínea a) não se aplicaria:
‘1º - No caso de doença ou antes de força maior’.
(...) Quer dizer, tanto ali como aqui os dois casos se acham equiparados, e consequentemente sujeitos à mesma disciplina, já que um deles – consoante ficara acordado pela aprovação da Assembleia como causa legal de exclusão – não era mais do que uma das espécies compreendidas no género que o outro representava.' A questão que ora se suscita é a de saber se tal interpretação, historicamente amparada, é constitucionalmente conforme. Segundo a recorrente, a norma, assim interpretada, viola o n.º 1 dos artigos
65º, 71º e 72º da Constituição, 'na medida em que não abrange os arrendatários que padecem de afectação, doença ou incapacidade definitiva que lhes não permite, por força de tal afectação, incapacidade ou doença, habitar permanentemente no arrendado.' E acrescenta que 'os doentes definitivos, por causa da sua doença, não podem ter um estatuto jurídico diferente ou diminuído.' O artigo 65º da Constituição consagra, como direito fundamental social, o direito à habitação. Ora, pode, desde logo, duvidar-se de que no 'âmbito de protecção' deste direito possa incluir-se a posição de um arrendatário que, conforme é o caso da recorrente, não tem residência permanente – isto é, não habita – no prédio por motivo que não é apenas transitório. Sobre tal direito constitucional à habitação, consagrado no artigo 65º da Lei Fundamental, escreveu-se no Acórdão n.º 633/95, publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Abril de 1996:
'Como se ponderou já neste Tribunal, não pode aceitar-se como constitucionalmente exigível que a realização do direito à habitação esteja dependente de limitação intoleráveis e desproporcionadas dos direitos de terceiros, porventura também constitucionalmente consagrados, como é o direito de propriedade privada (cfr. Acórdão nº 101/92, publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Agosto de 1992); de outro ângulo, o cidadão só pode exigir o cumprimento do direito à habitação nas condições e termos definidos por lei, ou seja, depois de uma interpositio do legislador, destinada a concretizar o seu conteúdo (cfr. Acórdão nº 130/92, publicado no jornal oficial citado, II Série, de 24 de Julho de 1992).' Antes escrevera-se que o direito à habitação 'não implica nem que os proprietários das casas sejam compelidos a entregá-las a quem as não tem, nem que os arrendatários possam utilizá-las sem quaisquer limitações, como se fossem suas.' Como também se escreveu no Acórdão nº 24/00 (publicado no Diário da República, II série, de 24 de Março de 2000), citando o Acórdão nº 130/92 (publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Julho de 1992):
'o direito à habitação é um direito a prestações, o que implica acções ou prestações do Estado.
‘Está-se perante um direito [diz-nos outro acórdão, o nº 130/92, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Julho de 1992] cujo conteúdo não pode ser determinado ao nível das opções constitucionais, antes pressupõe uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, cuja efectividade está dependente da ‘reserva do possível’ (Vorbehalt des Möglichen), em termos políticos, económicos e sociais (...)’' E no Acórdão nº 575/95 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol.
32º, págs. 395-401) alude-se à 'multiplicidade de providências de protecção do arrendatário e de conservação no tempo do arrendamento' por que passa tal modelação legal do direito à habitação, referindo-se a alínea i) do nº 1 do artigo 64º nos seguintes termos (aliás repetidos no Acórdão nº 86/99, publicado no Diário da República, II Série, de 1 de Julho de 1999):
'Consagra o regime emergente da questionada alínea i) a solução, já tradicional entre nós, de fazer cessar a protecção vinculística do arrendamento quando não esteja – neste caso deixe de estar – em causa a ‘residência permanente’ do arrendatário, a realidade relativamente à qual essa protecção vinculística colhe justificação (...)' No referido Acórdão nº 86/99, a propósito do lugar paralelo da distinção entre comissões de serviço por tempo determinado e por tempo indeterminado, escreveu-se:
'Quanto às comissões de serviço, só nas que o são por tempo determinado, não pode afirmar-se que o locatário tem residência permanente no local arrendado, e nem situar o momento em que ele regressará ao locado para ali (re) instalar o seu centro de vida pessoal, familiar e social, a sua economia doméstica, a sua residência permanente.' Em consequência, reconheceu-se a constitucionalidade da solução consistente em circunscrever às comissões de serviço público (civil ou militar) por tempo determinado o efeito paralizador da resolução do contrato de arrendamento por falta de residência permanente previsto na parte final da alíena b) do nº 2 do artigo 64º do Regime do Arrendamento Urbano, excluindo tal efeito de comissões de serviço público (civil ou militar) por tempo indeterminado. Transpondo as mesmas considerações para o presente caso, dúvidas não há de que
(como também se escreveu no Acórdão nº 32/97, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 36, pp. 203-208)
'o que a recorrente pretende é o reconhecimento, por efeito da sua qualidade de arrendatária, do direito de não habitar, por tempo indeterminado, o prédio arrendado. Ora, está de ver que tal pretensão não se integra no núcleo de protecção constitucional do direito à habitação, já que neste se visa assegurar o direito a habitar, não o de não habitar.' O que há agora a ponderar é se, trascendendo a análise do caso à luz do entendimento constitucional do sentido e limites do direito à habitação, por convocação dos normativos constitucionais referentes aos 'Deficientes' (artigo
71º) e à 'Terceira Idade' (artigo 72º), a solução deverá ser outra. Ora, o princípio da equiparação de regime consagrado no nº 1 do artigo 71º para os deficientes, como um 'específico direito de igualdade' (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República anotada, Coimbra, 1993, p. 358, anotação I ao artigo 71º), não permite fundamentar uma solução diferenciada daqueloutra, como o não permite, também, o direito dos deficientes 'a exigir do Estado a realização das condições de facto que permitam o efectivo exercício dos direitos e o cumprimento dos deveres' (ibidem), desde logo, porque o problema em causa – o da tutela do direito a não residir num prédio arrendado – não é específico dos deficientes. O mesmo se diga do disposto no artigo 72º da Constituição. No n.º 1 deste artigo
(pois o n.º 2 enuncia incumbências políticas dependentes da mediação do legislador ordinário e das quais não decorre solução diversa para o presente caso) pode ler-se que as pessoas idosas 'têm direito à segurança económica e a condições de habitação e convívio familiar e comunitário que respeitem a sua autonomia pessoal e evitem e superem o isolamento ou a marginalização social'. Tal direito está, pois, colimado à realização da autonomia pessoa, e à prevenção e superação do isolamento ou marginalização social, exigindo opções político-legislativas em cuja definição não cabe aos tribunais substituir-se ao legislador. E, sobretudo, não decorre de tal norma uma imposição constitucional de protecção do direito da pessoa idosa a conservar um local arrendado no qual não habita (não tem residência permanente), por motivo, embora possivelmente ligado à sua idade, que não é transitório. A solução de conformidade constitucional obtida à luz do artigo 65º da Constituição não sofre, pois, alterações com a consideração destes outros artigos da Lei Fundamental. Pode, aliás, dizer-se que, se, no quadro da cessação do contrato de arrendamento por falta de residência permanente, a situação dos deficientes ou dos idosos tivesse sido considerada relevante pelo legislador, este tê-la-ia salvaguardado legalmente, como o fez, designadamente, nos artigos 87º, 103º, n. 2 e 107º, n.
1, alínea a) do Regime do Arrendamento Urbano. Os direitos constitucionais invocados não podem servir para alterar tal entendimento – que é o do legislador, pelo menos no entendimento da norma sub judice – de que o que está fundamentalmente em causa não é nem a situação de doença, nem a idade avançada da arrendatária (índices que só seriam relevantes se o legislador lhes tivesse conferido relevância, como noutras situações conferiu). O que está em causa nos presentes autos é, antes, o ponto de equilíbrio entre os interesses do proprietário interessado em reaver o prédio arrendado e os interesses do inquilino em conservá-lo. E o que, para o legislador, faz pender a balança entre uns ou outros interesses no que diz respeito a este ponto do regime de resolução do contrato é a residência permanente do inquilino no prédio locado: enquanto esta se mantiver ou, tendo-se interrompido, for estável num prazo de tempo variável em função das circunstâncias (cfr. a alínea i) do n. 1 do artigo 64º do RAU e a alínea b) do seu n. 2), prevalecem os interesses do arrendatário. De outro modo prevalecem os do senhorio. Sendo um delicado compromisso na ponderação de interesses contraditórios, só o legislador o pode estabelecer – dentro dos limites constitucionais, que não são afectados pela consideração exclusiva do critério da permanência ou transitoriedade do motivo (doença ou força maior) que justifica a falta de residência. III. Decisão Nestes termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional o artigo 64º, n.º 2, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano b) Por conseguinte, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida no que respeita à questão de constitucionalidade; c) Condenar a recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 12 de Dezembro de 2001 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa