Imprimir acórdão
Proc. nº 655/01
1ª Secção Rel.: Consº Luís Nunes de Almeida
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:
1. A intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Castro Daire uma acção contra B e mulher e outros para que lhe fosse reconhecido o direito de preferência relativamente à venda de um imóvel, alegando ser proprietário de um prédio confinante com aquele, o qual teria como único acesso de pé e de carro um caminho de servidão que atravessaria o prédio objecto de preferência em toda a sua extensão.
Por sentença de 17 de Março de 2000, foi reconhecida a propriedade do Autor sobre o referido prédio confinante, mas julgados improcedentes os pedidos relacionados com o pretendido direito de preferência, por não se ter provado que existisse uma servidão legal de passagem, nem sequer um prédio encravado.
Inconformado, o Autor recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, alegando, por um lado, que ficara provada a existência de uma servidão legal de passagem, e, por outro lado, que sendo o seu prédio confinante com aquele sobre o qual pretendia exercer o direito de preferência, tal direito lhe deveria ser reconhecido «nos termos do artigo 1380º, nº 1, do Código Civil, já que as áreas são inferiores à unidade de cultura, prevista para a zona, de acordo com a Portaria 202/70».
A Relação negou provimento ao recurso, por entender que «dos factos dados como provados não resulta a existência de qualquer servidão legal de passagem e de que o prédio comprado pelos recorridos fosse encravado».
O ora recorrente pediu a aclaração do acórdão da Relação, para ser esclarecido da razão por que lhe não fora reconhecido o direito de preferência ao abrigo do preceituado no artigo 1380º do Código Civil. E nesse momento, «pela jurisprudência das cautelas», decidiu suscitar «a inconstitucionalidade na aplicação do citado artigo 1380º, 1, do Código Civil e Portaria 202/70, de 21 de Abril, por violação dos artigos 2º, 13º, 20º, 204º e 205º, da Constituição da República Portuguesa», considerando ser esse mesmo momento «o próprio, por anteriormente tal não se justificar».
O pedido de aclaração foi indeferido, não sem que a Relação assinalasse, quanto à pretendida invocação do artigo 1380º, nº 1, do CC, que a causa de pedir da acção fora outra e que não podia conhecer de uma questão nova, pelo que «nem se descortina a que título e qual o interesse do problema da inconstitucionalidade levantado».
O ora recorrente ainda requereu a reforma do acórdão, o que lhe foi indeferido.
2. Veio, então, o Autor recorrer para o Tribunal Constitucional, «ao abrigo do disposto na al. a) do nº 1 do artº 70º» da LTC, pretendendo ver apreciada «a inconstitucionalidade na aplicação das normas dos artºs 204º, 1, a) e 2; 1380º do Código Civil e Portaria 202/70, de 21 de Abril».
Segundo o recorrente, «tais normas, com a interpretação que lhe foram aplicadas nos doutos acórdãos recorridos, violam os artigos 2º, 13º, 20º,
204º e 205º da Constituição da República Portuguesa», tendo a questão de inconstitucionalidade sido «suscitada nos autos em tempo oportuno».
3. Já neste Tribunal, o relator proferiu decisão sumária, não tomando conhecimento do recurso.
Afirmou-se aí:
O recurso previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da LTC cabe das decisões dos tribunais «que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade».
Do relatado, resulta com meridiana clareza que o tribunal a quo não recusou a aplicação das normas mencionadas no requerimento de interposição do recurso com fundamento em inconstitucionalidade. A Relação não aplicou as normas em causa porque entendeu que as não podia aplicar, nem sequer apurar se seriam aplicáveis no caso, porque atinentes a causa de pedir diversa da invocada na petição inicial.
Ora, de um tal julgamento não cabe recurso de constitucionalidade, pelo que tanto bastaria para se não tomar conhecimento do recurso.
[...] Admitamos, porém, que a invocação da alínea a) do nº 1 do artigo 70º se deve a mero erro de escrita e que o recorrente pretendia recorrer ao abrigo da alínea b) da mesma disposição legal.
Tal recurso só cabe de decisões que «apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo».
Ora, dúvidas não restam que a decisão recorrida não aplicou as normas ora impugnadas, tendo entendido que a questão a elas respeitante se encontrava fora do objecto do processo. E aí se encontra uma razão inultrapassável para se não poder tomar conhecimento do recurso.
De todo o modo, só se pode considerar suscitada a questão durante o processo, quando a tempo de o tribunal a quo sobre ela se poder e dever pronunciar – ou seja, antes de esgotado o seu poder jurisdicional. Significa isto, desde logo, que o requerimento em que se solicite a aclaração de uma decisão judicial não é instrumento idóneo para se levantar, pela primeira vez, a questão de inconstitucionalidade, em termos de se abrir a via do recurso para o Tribunal Constitucional. Por isso, constitui jurisprudência pacífica e uniforme deste Tribunal o entendimento de que a suscitação da questão de inconstitucionalidade no requerimento de aclaração se não pode entender como feita «durante o processo», por ocorrer depois de esgotado o poder jurisdicional do tribunal quanto à apreciação dessa mesma questão. Logo, também por essa razão se não poderia tomar conhecimento do recurso.
4. Inconformado, vem o recorrente reclamar para a conferência, invocando, por um lado, que efectivamente «só por lapso se referiu a alínea a), nº 1, do artigo 70º, quando se pretendia referir a alínea b)» e, por outro lado, que a decisão sumária não atentou que «o poder jurisdicional não se encontra esgotado, na medida em que o Tribunal a quo, ao abrigo do disposto no artigo
669º, 2, a) e b) do Cód. de Processo Civil, ainda estava em tempo de proferir outra decisão diversa daquela, após o pedido da sua reforma».
Cumpre decidir.
5. Pretende o recorrente que a suscitação da questão de inconstitucionalidade no pedido de reforma da decisão judicial ainda deve ser considerada como efectuada durante o processo.
Acontece, porém, que como este Tribunal já afirmou no seu Acórdão nº
418/98 (Diário da República, II Série, de 20 de Julho de 1998), e salvo nalgum caso totalmente anómalo, o pedido de reforma de uma decisão judicial já não pode ser tido como momento adequado para suscitar de modo processualmente adequado a questão de inconstitucionalidade.
Com efeito, como se assinalou naquele aresto, «não se verificando os pressupostos de que depende a possibilidade de reforma da sentença, designadamente quanto à decisão de mérito» - como se decidiu no acórdão da Relação, em ponto que não cabe a este Tribunal sindicar - «vale a regra do nº 1 do art. 666º do Código de Processo Civil, segundo a qual, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa». E, por outro lado, como igualmente se sublinhou no citado acórdão, «a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não configura (ressalvada alguma hipótese anómala e excepcional, como seja a da inexistência jurídica da norma) uma situação de manifesto lapso do juiz na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos», susceptível de fundamentar a necessidade de reforma da decisão judicial.
6. Por acréscimo, no caso dos autos, acontece ainda que, no pedido de reforma do acórdão da Relação, o recorrente não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, antes tendo apenas assacado o vício de inconstitucionalidade à própria decisão judicial, ao afirmar textualmente:
Acresce que este último acórdão também violou o disposto no artº 204º
1, a) e 2 do Código Civil e bem assim o artº 205º, 1 da Constituição da República Portuguesa, o que ora se suscita e não antes, por ser imprevisível.
Nunca se poderia, assim, tomar conhecimento do recurso, porquanto, como este Tribunal vem afirmando de forma constante e pacífica, sobre a parte que pretenda vir a interpor um recurso de constitucionalidade recai o ónus de suscitar durante o processo a questão de inconstitucionalidade de uma norma jurídica, não bastando a mera invocação da inconstitucionalidade de uma decisão judicial. Ora, no caso vertente, o recorrente, ao solicitar a reforma do acórdão da Relação não identificou qualquer norma jurídica cuja constititucionalidade impugnasse.
6. Nestes termos, indefere-se a reclamação da decisão sumária que decidiu não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 UC’s. Lisboa, 19 de Dezembro de 2001 Luís Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa