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Proc. nº 30/01
1ª Secção Rel.: Consº Luís Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A. intentou, no Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras, acção declaratória de condenação com processo sumário contra B, pedindo que fosse declarado resolvido o contrato de arrendamento que celebrara com o Réu, por este, na qualidade de arrendatário, ter cedido o local arrendado a C, da qual é sócio-gerente, e que, consequentemente, fosse decretado o despejo imediato do mesmo local.
O Réu contestou, invocando que a C exerce efectivamente a sua actividade no locado, desde o início do arrendamento, «com conhecimento, consentimento e autorização dos então senhorios».
Tendo-se provado que o Réu cedeu o gozo do locado, sem que tivesse logrado fazer prova de «que essa cedência era permitida por qualquer disposição legal ou tivesse sido autorizada pelos senhorios», o que constitui fundamento para a resolução do contrato (artigo 64º, nº 1, alínea f), do RAU), foi a acção julgada procedente e decretado o despejo.
2. Inconformado, apelou o Réu para o Tribunal da Relação de Lisboa, onde apresentou alegações com as seguintes conclusões:
1º - Estando demonstrado que num locado, uma firma, estranha à relação locatícia, exerce aí a sua actividade, sem que se tenha provado quaisquer factos concretos donde se subsuma a medida e extensão do gozo que ela faz do espaço, tal facto, só por isso não pode traduzir e significar que o inquilino tenha proporcionado o gozo ou cedido ou transmitido o locado para outrem, já que pode também traduzir que o exercício da actividade contemple tão só serviços devidamente integrados na destinação locatícia orientada pelo inquilino, fazendo parte tal actividade do complexo jurídico que é a universalidade de facto de um estabelecimento, que pode incluir e integrar, perfeitamente, os serviços prestados por uma empresa.
2º - Ficando apurado que uma firma exerce actividade num locado de que não é inquilina, sem que se prove um mínimo de dados configuradores dessa actividade, tal facto é meramente conclusivo e em consequência irrelevante e inócuo para se poder subsumir qualquer ilicitude locatícia.
3º - Impende sobre a senhoria alegar e provar factos que demonstrem, que traduzam e que consubstanciem o gozo que outrem, que não é inquilino, está a ter do locado, podendo-se considerar que apesar de se demonstrar, sem mais, que uma empresa, que não é inquilina, exerce a sua actividade no locado que essa actividade seja perfeitamente lícita e aceitável sob o ponto de vista locatício, não podendo o senhorio fundamentar o pedido da resolução locatícia só com base nesta situação, uma vez que é possível e admissível que tal actividade seja praticada no locado sem que tal implique que o inquilino tenha proporcionado o seu gozo, o tenha cedido ou tenha transmitido.
4º - Os normativos constantes da alinea f) do artº 1038 e al. f) do nº 1 do artº
64 do RAU devem ser interpretados no sentido de que a presença no locado – exercendo aí a sua actividade – de uma pessoa ou entidade diferente da do inquilino, só constitui ilícito locatício desde que se provem factos que demonstrem que o inquilino desafectou parte ou a totalidade do locado em favor e no interesse de outrem, que proporcionou que outrem goze, use ou utilize o locado, com um mínimo de autonomia, independência e discricionaridade.
5º - Entendendo a Mma Juiz que o que ficou demonstrado nas alíneas C) e D) – uma firma que não é inquilina exerce a sua actividade no locado – é suficiente para caracterizar uma cedência ilícita do locado, viola claramente o espírito e alcance dos preceitos legais locatícios, nomeadamente a alínea f) do artº 1038 do C. Civil e al. f) nº 1 do artº 64º do RAU porquanto estes exigem que se demonstre concretamente que outrem esteja no gozo do locado, na sequência do alheamento do inquilino quanto aos interesses prosseguidos por este terceiro do contrato de arrendamento.
6º - A interpretação da alin. f) do artº 1038º do C. Civil e al. f), nº 1 do artº 64 do RAU não podem ser entendidos no sentido, na esteira da decisão da Mma. Juiza 'a quo', de que o facto de se demonstrar, sem mais, que uma empresa que exerce actividade num locado de que não é inquilina, (sem se saber em que consiste minimamente tal exercício), configura o ilícito locatício previsto por essas normas, ofende o direito da propriedade privada garantido pelo nº 1 do artº 62º da Constituição, com o conteúdo previsto no artº 1305º do C. Civil.
7º - O direito de propriedade privada concede ao titular de um estabelecimento comercial instalado num locado a faculdade de se socorrer de outras pessoas ou entidades estranhas ao arrendamento para aí exercerem a sua actividade desde que esta esteja integrada na universalidade de facto prosseguida pelo inquilino.
A Relação, por acórdão de 23 de Novembro de 2000, negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida, por considerar que o arrendatário havia infringido «a obrigação consignada na alínea f) do art. 1038º do Código Civil», e que «com este incumprimento contratual, o locador tem o direito de resolver o contrato de arrendamento, nos termos da al. f) do nº 1 do art. 64º do RAU» . Afirmou-se nesse aresto:
Para obter a resolução do contrato de arrendamento, por violação da obrigação referida, basta ao locador, na acção, alegar e provar a cedência ilícita da coisa a terceiro.
Podendo, no entanto, ser invocada a autorização do locador para a cedência, facto que impediria a resolução do contrato, por exclusão da respectiva ilicitude, ao arrendatário compete a sua alegação e demonstração, em conformidade com o disposto no nº 2 do art. 342º do Código Civil.
[...]
Por outro lado, nada nos autos permite afirmar que a actividade comercial da sociedade corresponda a uma prestação de serviço em favor do réu e que, por interesse deste, tenha de ser realizada no local arrendado. Tal factualidade ainda que, eventualmente, fosse susceptível de obstar à resolução do arrendamento, como circunstância impeditiva, competia ao réu alegá-la e prová-la. Ora, nada disso sucedeu, sendo certo que, na contestação, o réu, para além de confessar expressamente o exercício da actividade comercial, no local arrendado, por parte da sociedade, limitou-se a alegar a autorização, para o efeito, do locador.
3. É desse acórdão que foi interposto o presente recurso de constitucionalidade, com expressa invocação do preceituado nas alíneas b) e f) do nº 1 do artigo 70º da LTC. No requerimento de interposição do recurso, vem assim identificada a questão colocada a este Tribunal:
- Normas e Princípios Constitucionais ao abrigo da qual recorrem – nº
1 do artº 62º da Constituição da República;
- A norma que pretendem seja apreciada pelo Tribunal Constitucional é a constante da alinea F) do artº 1038 do Código Civil cuja inconstitucionalidade foi suscitada nas alegações para o Tribunal da Relação de Lisboa e resumida nas conclusões 6ª e 7ª, atento o facto de não dever ser de aplicar tal normativo uma vez que o direito de propriedade privada concede ao titular de um estabelecimento comercial instalado num locado a faculdade de se socorrer de outras pessoas ou entidades estranhas ao arrendamento para aí exercerem a sua actividade desde que esta esteja integrada na universalidade de facto prosseguida pelo inquilino.
O recorrente concluiu assim as suas alegações no Tribunal Constitucional:
1º - Estando demonstrado que num locado, uma firma, estranha à relação locatícia, exerce aí a sua actividade, sem que se tenha provado mais quaisquer factos concretos donde se subsuma que tal actividade por esta, aí, prosseguida contende com a manutenção do contrato de arrendamento e a destinação locatícia orientada pelo inquilino, tal facto, só por si não pode configurar uma cedência de posição contratual.
2º - O facto de uma entidade terceira ao arrendamento exercer actividade no locado pode contemplar serviços devidamente integrados na destinação locatícia orientada pelo inquilino, fazendo parte tal actividade do complexo jurídico que
é a universalidade de facto de um estabelecimento, que pode incluir e integrar, perfeitamente, os serviços prestados por uma empresa.
3º - Ficando apurado que uma firma exerce actividade num locado de que não é inquilina, sem que se prove um mínimo de dados configuradores dessa actividade, tal facto é inconclusivo, e inócuo para se poder subsumir qualquer ilicitude locatícia.
4º - Impende sobre a senhoria alegar e provar factos que demonstrem, que traduzam e que consubstanciem o gozo que outrem, que não é inquilino, está a ter do locado, podendo-se considerar que apesar de se demonstrar, sem mais, que uma empresa, que não é inquilina, exerce a sua actividade no locado que essa actividade seja perfeitamente lícita e aceitável sob o ponto de vista locatício, não podendo o senhorio fundamentar o pedido da resolução locatícia só com base nesta situação, uma vez que é possível e admissível que tal actividade seja praticada no locado sem que tal implique que o inquilino tenha proporcionado o seu gozo, o tenha cedido ou tenha transmitido.
5º - Os normativos constantes da alínea f) do artº 1038 e al. f) do nº 1 do artº
64 do RAU devem ser interpretados no sentido de que a presença no locado – exercendo aí a sua actividade – de uma pessoa ou entidade diferente da do inquilino, só constitui ilícito locatício desde que se provem factos que demonstrem que o inquilino desafectou parte ou a totalidade do locado em favor e no interesse de outrem, que proporcionou que outrem goze, use ou utilize o locado, com um mínimo de autonomia, independência e discricionaridade.
6º - Entendendo-se que o que ficou demonstrado nas alíneas C) e D) – uma firma que não é inquilina exerce a sua actividade no locado – é insuficiente para caracterizar uma cedência ilícita do locado, viola claramente o espírito e alcance dos preceitos legais locatícios, nomeadamente a alínea f) do artº 1038 do C. Civil e al. f) nº 1 do artº 64 do RAU porquanto estes exigem que se demonstre concretamente que outrem esteja no gozo do locado, na sequência do alheamento do inquilino quanto aos interesses prosseguidos por este terceiro do contrato de arrendamento.
7º - A interpretação da alin. f) do artº 1038º do C. Civil e al. f), nº 1 do artº 64 do RAU não podem ser entendidos no sentido de que, o facto de se demonstrar, sem mais, que uma empresa que exerce actividade num locado de que não é inquilina, (sem se saber em que consiste minimamente tal exercício), configura o ilícito locatício previsto por essas normas, ofende o direito da propriedade privada garantido pelo nº 1 do artº 62 da Constituição, com o conteúdo previsto no artº 1305 do C. Civil.
8º - O direito de propriedade privada concede ao titular de um estabelecimento comercial instalado num locado, a faculdade de se socorrer de outras pessoas ou entidades estranhas ao arrendamento para aí exercerem a sua actividade, só se incorrendo em ilícito locatício caso o senhorio demonstre que tal actividade não se integra na destinação locatícia e que se faça de forma autónoma e alheada do inquilino.
A recorrida contra-alegou, pronunciando-se no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso.
4. Entendendo que havia razões para se não tomar conhecimento do recurso, o relator mandou notificar o recorrente, nos termos do preceituado no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, de exposição que lavrou e cujo teor, na parte que ora interessa, é o seguinte:
4. O presente recurso foi interposto com invocação do disposto nas alíneas b) e f) do nº 1 do artigo 70º da LTC.
Todavia, cabe, desde logo, assinalar que se não descortina qualquer fundamento para que o recurso possa ter como base a referida alínea f). Com efeito, tal recurso tem como pressuposto a aplicação pelo tribunal a quo de norma «cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo», por constar de acto legislativo e violar lei com valor reforçado, ou por constar de diploma regional e violar estatuto de região autónoma ou lei geral da República, ou então por emanar de órgão de soberania e violar o estatuto de uma região autónoma.
Ora, no caso dos autos, torna-se evidente que não ocorreu qualquer destas situações, pelo que não se encontram preenchidos os pressupostos deste tipo de recurso.
5. Vejamos, então, se estão preenchidos os pressupostos do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC.
Como se transcreveu, o recorrente delimitou o recurso, no respectivo requerimento de interposição, à questão de inconstitucionalidade da norma constante da alínea f) do artigo 1038º do Código Civil.
Nesta conformidade, e porque não é possível alargar o âmbito do recurso nas alegações, tem de se considerar, desde já, que a questão de inconstitucionalidade da alínea f) do nº 1 do artigo 64º do RAU não constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade, pelo que este Tribunal não deverá dela conhecer.
6. Resta, pois, a questão de inconstitucionalidade da norma constante da alínea f) do artigo 1038º do Código Civil.
A norma em causa estabelece que é obrigação do locatário «não proporcionar a outrem o gozo total ou parcial da coisa por meio de cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica, sublocação ou comodato, excepto se a lei o permitir ou o locador o autorizar».
A tese do recorrente é a de que tal norma, quando interpretada «no sentido de que, o facto de se demonstrar, sem mais, que uma empresa que exerce actividade num locado de que não é inquilina, (sem se saber em que consiste minimamente tal exercício), configura o ilícito locatício» nela previsto,
«ofende o direito de propriedade privada». Para o recorrente, tal ofensa só não existirá se for entendido que é exigível «que se demonstre concretamente que outrem esteja no gozo do locado, na sequência do alheamento do inquilino quanto aos interesses prosseguidos por este terceiro do contrato de arrendamento» - ou seja, «desde que se provem factos que demonstrem que o inquilino desafectou parte ou a totalidade do locado em favor e no interesse de outrem, que proporcionou que outrem goze, use ou utilize o locado, com um mínimo de autonomia, independência e discricionaridade».
A forma como o recorrente coloca a questão logo inculca que o problema de inconstitucionalidade que suscita se não coloca a propósito do mencionado preceito do artigo 1038º do Código Civil. Na verdade, o recorrente não questiona uma interpretação segundo a qual o locatário não se poderia
«socorrer de outras pessoas ou entidades estranhas ao arrendamento para aí exercerem a sua actividade», ainda que esta se integre «na destinação locatícia» e se faça de forma não «autónoma e alheada do inquilino». O que ele questiona é que caiba ao locatário fazer a prova dessa situação e não ao locador fazer a prova do contrário.
Ora, a questão de saber a quem cabe proceder à prova de tais factos decorre do preceituado no artigo 342º, nº 2, do Código Civil, segundo o qual «a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita». E foi nessa base que o acórdão recorrido decidiu contra o recorrente, ao afirmar expressamente:
[...] Tal factualidade ainda que, eventualmente, fosse susceptível de obstar à resolução do contrato de arrendamento, como circunstância impeditiva, competia ao réu alegá-la e prová-la. Ora, nada disso aconteceu [...]
Assim sendo, no que a esta questão se refere, a norma efectivamente aplicada pelo tribunal recorrido foi a constante do artigo 342º, nº 2, do Código Civil. Só que tal norma nem constitui objecto do recurso, porque não vem identificada no respectivo requerimento de interposição, nem a sua inconstitucionalidade foi alguma vez suscitada durante o processo.
Quanto ao artigo 1038º, alínea f), do Código Civil, tem de se considerar que ele é alheio à questão de inconstitucionalidade suscitada, a qual verdadeiramente se reporta a um outro preceito do mesmo diploma legal - o referido artigo 342º, nº 2.
5. Respondendo à exposição do relator, o recorrente veio dizer que o facto de não ter mencionado a alínea f) do nº 1 do artigo 64º do RAU no requerimento de interposição do recurso se ficara a dever a mero lapsus calami, como resulta, a seu ver, da circunstância de ali fazer referência à inconstitucionalidade já suscitada «nas alegações para o Tribunal da Relação de Lisboa e resumida nas conclusões 6ª e 7ª», peça onde se mencionava expressamente a norma em questão. Consequentemente, requereu que o lapso fosse «devidamente ressalvado, e considerada a norma da alín. f) do nº 1 do artigo 64º do RAU, também abrangida pelo presente recurso».
Por outro lado, o recorrente considera que «não questiona o problema do ónus da prova, o saber sobre quem recai a responsabilidade de demonstrar se o inquilino desafectou parte ou totalidade do locado a favor e no interesse de outrem», mas que apenas se insurge contra o facto de se configurar, só por si, como fundamento de resolução da relação locatícia a simples circunstância de se haver provado que uma entidade terceira ao arrendamento exerce actividade no locado.
6. O recurso, tal como foi delimitado no respectivo requerimento de interposição, respeita apenas à norma da alínea f) do nº 1 do artigo 1038º do Código Civil e não pode ser alargado à norma da alínea f) do nº 1 do artigo 64º do RAU.
Vem o recorrente invocar que a não menção desta última norma no dito requerimento se deveu a mero lapsus calami, cuja rectificação se deve agora admitir.
Sem razão, porém.
Com efeito, não é possível agora, depois da exposição do relator que assinalou que o recurso se devia confinar apenas à norma identificada no requerimento de interposição, vir invocar um pretenso erro de escrita, quando de todo o teor daquele requerimento ressalta, sem margem para qualquer dúvida, que o recorrente se refere tão-só a uma norma e não a duas normas, como resulta da exclusiva utilização do singular:
[...]A norma que pretendem seja apreciada [...]
[...] atento o facto de dever ser de aplicar tal normativo [...]
Nesta conformidade, não se pode deferir a pretensão do recorrente quanto à delimitação do recurso, no sentido de este abranger igualmente a referida norma do RAU.
7. Pelo essencial das razões constantes da exposição do relator, não se pode tomar conhecimento do objecto do recurso.
Com efeito, muito embora o recorrente, na sua resposta, venha dizer que o que contesta é que seja fundamento de resolução da relação locatícia a mera circunstância de se haver provado que uma entidade terceira ao arrendamento exerce actividade no locado, a verdade é que a decisão recorrida não excluiu que possam existir «factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado» - só que tais factos não foram alegados nem provados pelo ora recorrente.
Assim sendo, mantém-se integralmente o raciocínio explanado na exposição do relator, que em nada é posto em causa pela resposta do recorrente.
8. Nestes termos, decide-se não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 UC’s.
Lisboa, 5 de Dezembro de 2001 Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa