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Processo n.º 882/12
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A. e outras, notificadas da conta de custas n.º 954000114892010 de fls. 2032, elaborada na sequência do arresto em que eram requeridas, deduziram reclamação da mesma (cfr. fls. 2058 a 2066 dos autos). Por despacho da 1.ª Vara Cível de Lisboa, de 2 de maio de 2011, tal reclamação não mereceu, porém, e no que interessa à decisão a proferir por este Tribunal, acolhimento (cfr. fls. 2139 a 2150 dos autos), nele se consignando, além do mais, que (cfr. fls 2143 dos autos):
« [P] or não se tratar de reclamação de conta, mas de reanálise das decisões quanto a custas, e quanto a esta não ser possível por extemporâneo e por carecer o juiz de competência para o efeito, vai indeferida a «reclamação» apresentada».
Inconformadas, as requeridas iniciais interpuseram recurso de agravo desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa (cfr. fls. 2176 e as alegações apresentadas a fls. 2189 a 2202 dos autos), que, por acórdão de 17 de maio de 2012, negou provimento a tal recurso (cfr. fls. 2297 a 2306 dos autos).
2. Uma vez mais inconformadas, interpuseram as então requeridas recurso para o Tribunal Constitucional em requerimento com o seguinte teor (cfr. fls. 2367 e 2368 dos autos):
«A. E OUTRAS, RR. nos autos à margem referenciados em que é A. B., S.A., notificadas do douto Acórdão de fls que julgou improcedente o recurso interposto da douta decisão que conheceu da reclamação da conta de custas apresentada pelas ora Recorrentes, aplicando (por entender que não é inconstitucional) a norma do artigo 13 do Código das Custas Judiciais (CCJ), cuja inconstitucionalidade foi suscitada nas alegações de recurso (cfr nºs 25 a 30 e 45 a 49 do corpo das alegações e conclusões 7 a 10) na sequência do que fora alegado nos nºs 13 e 14 da reclamação da conta de custas, sendo a inconstitucionalidade questão de conhecimento oficioso do Tribunal em virtude de a função jurisdicional abranger a fiscalização da Constituição nos termos dos artºs 204 e 281 da CRP, como tem sido maioritariamente decidido pela Jurisprudência, vêm, ao abrigo do artº 70 nº 1. al. b) e 75 nº 2 da Lei 28/82, dele interpor recurso para Tribunal Constitucional, por violação dos artºs 20º, 204 e 266 da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que requer a V. Exa se digne admitir o recurso, seguindo-se os ulteriores trâmites até final.[…]»
Todavia, por despacho do Senhor Desembargador relator, de 8 de outubro de 2012, o recurso não foi admitido. É o seguinte o teor do despacho em causa (cfr. fls. 2388 e 2389 dos autos):
«A. e outras pretendem interpor recurso para o tribunal Constitucional do acórdão de fls. 2297 e segs.
Invocam para o efeito o disposto nos arts. 70 nº1 al. b) e 75 nº2 da Lei n 28/82.
Dispõe-se em tais normas:
1 - Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais:
………………………………………………………
b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo;
E o nº 2: Os recursos previstos nas alíneas b) e f) do número anterior apenas cabem de decisões que não admitam recurso ordinário, por a lei o não prever ou por já haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam, salvo os destinados a uniformização de jurisprudência.
Ora,
A parte não suscitou a constitucionalidade de qualquer norma em sede de julgamento, como tal entendido.
E este (ou outro) tribunal não aplicou essa ou qualquer outra norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada, como se alcança da do acórdão em causa.
É certo que nas alegações, os recorrentes alegam precisamente no último número das conclusões que ... “Decidindo como decidiu, o douto despacho recorrido violou, designadamente, os art.ºs 13º e 27º do CCJ e os art.ºs 20º, 204º e 266 da Constituição.”
Por isso, se consignou em sede do próprio acórdão que...
“Depois, suscita-se, com algum ânimo e em sede de recurso, a inconstitucionalidade de norma do C.C. J. — art. 13.
Constata-se, porém, que os recorrentes A. e outros não invocaram nem suscitaram tal pedido na Instância, mesmo em sede de reclamação.
Pelo tão só agora nas alegações e conclusões de recurso.
De facto, aos tribunais de recurso, não cabe criar decisões que não tenham sido apreciadas no tribunal inferior.
Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais com o objetivo de recriar novo exame sobre matéria decidida, pelo que só podem apreciar questões que tenham sido já apreciadas e não criar “novas decisões”.
Ora, se assim é, trata-se de questão nova e como tal arredada deve considerar-se do recurso.
Mas, mesmo que assim não se entenda, pensamos que a citada norma não é inconstitucional, uma vez que não violam os princípios do acesso à Justiça (art. 20º da CRP), proporcionalidade (arts. 2º e 18nº 2 da CRP) e da Igualdade (art.13º da CRP), pelas razões que constam no mais recente acórdão deste tribunal, que aqui se subscrevem, disponível na base de dados do M.J. — dgsi. 2…” (cfr. fls. 2304).
Mas,
Nada se julgou.
Nada se decidiu.
Nada se sentenciou nesse pormenor que justifique impugnação por recurso.
E muito menos em sede de consideração (ou não) de constitucionalidade ou inconstitucionalidade, dessa ou qualquer outra norma
Termos em que, pelo exposto, não se admite o pretendido recurso para o tribunal Constitucional.»
3. Novamente inconformadas, vêm agora as requeridas iniciais apresentar reclamação deste despacho de indeferimento do recurso de constitucionalidade, nos termos do artigo 76.º, n.º 4, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (adiante designada abreviadamente por LTC”), nos seguintes termos (cfr. fls. 1 a 7 dos autos de reclamação):
« 1. O recurso interposto pelas ora Reclamantes para o Tribunal Constitucional não foi admitido com fundamento de que “A parte não suscitou a constitucionalidade de qualquer norma em sede de julgamento, como tal entendido”.
2. Ora, a este propósito, tem entendido a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, aquilo que, em síntese, Guilherme da Fonseca e Inês Domingos escrevem:
“Precisando melhor: o requisito de admissibilidade do recurso previsto no artº 70, nº 1, al. b), no que respeita ao significado da locução «durante o processo», deve ser tomado não em sentido puramente «formal», tal que a inconstitucionalidade possa ser suscitada até à extinção da instância, mas num sentido puramente «funcional», tal que essa invocação haverá de ser feita num momento em que o tribunal a quo ainda possa conhecer da questão. Por outras palavras: a inconstitucionalidade haverá de suscitar-se antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a mesma questão de inconstitucionalidade respeita (acs. 90/85, 94/88, 352/94, 584/96)”. - Breviário de Direito Processual Constitucional, Coimbra Editora, 1997, pág. 46.
3. É precisamente o que sucede no caso em apreço.
4. Com efeito, as ora Reclamantes suscitaram a questão da inconstitucionalidade no primeiro momento em que tiveram oportunidade de o fazer, ou seja, quando foram notificadas da conta de custas elaborada de acordo com a tabela anexa ao Código das Custas Judiciais, a que faz referência o art 13º desse código.
5. Efetivamente, a norma do art. 13º do Código das Custas Judiciais foi aplicada na elaboração da conta de custas sem que se tivesse em consideração a respetiva inconstitucionalidade.
6. Ora, tratando-se de uma norma referente à elaboração da conta de custas, a sua aplicação ocorreria necessariamente em momento processual posterior ao julgamento.
7. Consequentemente, a invocação da sua inconstitucionalidade só poderia ser suscitada em fase posterior ao julgamento.
8. Tem sido, aliás, esse o entendimento unânime da Jurisprudência do Tribunal Constitucional.
9. A este respeito, pode citar-se o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 306/90, in www.tribunalconstitucional.pt: […]
10. Também nesse sentido pode ler-se o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 352/89 in www.tribunalconstitucional.pt: […]
11. Isto é, o que é relevante é que a questão da inconstitucionalidade seja suscitada antes de estar esgotado o poder jurisdicional do Juiz sobre a matéria a que respeita.
12. Assim, ao contrário do que consta no douto despacho em crise, as Reclamantes suscitaram a questão da inconstitucionalidade oportunamente.
13. Na verdade, as Reclamantes suscitaram desde logo a questão da inconstitucionalidade nos nºs 13 e 14 da sua reclamação da conta de custas (como, de resto, referem no seu requerimento de interposição de recurso para o Venerando Tribunal Constitucional).
14. De facto no n.º 13 da reclamação por si apresentada invocam o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 47/2007, o qual, em parte, transcreveram:
“Assim se conclui que o sistema de fixação das taxas de justiça do C.C.J., na redação do D.L. nº 224-A/96 de 26 de novembro, acima exposto, permitirão a cobrança de taxas de justiça, cujo montante, exageradamente elevado, poderia atentar contra os referidos parâmetros constitucionais de proibição do excesso e do direito de acesso aos tribunais.
(...)
Essa desproporção flagrante e o exagero daquela quantia viola não só o princípio estruturante constitucional da proibição do excesso, como também o direito de acesso aos tribunais, previsto no artº 20.º, nº 1, do C.R.P., pelo que deve confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade efetuado pela decisão recorrida, julgando-se improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público”.
15. Para além disso, no n.º 14 dessa reclamação, concluíram que as custas judiciais nos termos que foram calculadas violavam os princípios constitucionais da proporcionalidade e do acesso aos tribunais (artº 266º nº 2 e 20 nº 1 da CRP).
16. E tendo a conta de custas sido elaborada de acordo com a tabela anexa ao Código das Custas judiciais a que alude o art. 13º desse Código, era precisamente a constitucionalidade dessa norma que estava em causa na reclamação apresentada.
17. Tanto mais que no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 47/2007, transcrito no n.º 13 da reclamação, era também a constitucionalidade dessa norma -e nada mais -que estava em causa.
18. Para além disso, as Reclamantes voltaram a suscitar a questão da inconstitucionalidade nas conclusões de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.
19. Nomeadamente, a este propósito, as Reclamantes apresentaram as seguintes conclusões:
“7ª - Para além disso, o art. 13 do CCJ - um dos preceitos utilizados na elaboração da conta de custas – é inconstitucional, por violação dos princípios da proporcionalidade, acesso à justiça e igualdade, sobretudo quando interpretado no sentido de que o controlo jurisdicional não deve ser exercido fixando, para efeitos de custas, um limite ao valor da causa não superior a 250.00000 €;
8ª - Deve, pois, reformular-se a conta de custas, interpretando-se restritivamente o citado art.º 13 do CCJ, de modo a eliminar a possibilidade do valor das custas aumentar ilimitadamente tendo apenas como referência o ilimitado valor do processo;
9ª - Logo, quer pela aplicação do disposto no art. 27 n.º 3, quer pela interpretação restritiva do art. 13º, ambos do CCJ, há que, para efeitos de custas da responsabilidade das Recorrentes, limitar o valor do processo a 250.000,00 €;
10ª - Decidindo como decidiu, o douto despacho recorrido violou, designadamente, os art.ºs 13º e 27º do CCJ e os art.ºs 20º, 204º e 266 da Constituição.”
20. Ora, tendo os presentes autos sido intentados em 15 de setembro de 2006, é-lhes aplicável o artº 744º do CPC na redação que lhe foi dada pelo D.L nº 329-A/95 de 12 de dezembro, no qual se prevê a possibilidade do juiz reparar o agravo.
21. Daí que, no caso em apreço, sempre se teria de considerar que a inconstitucionalidade, foi suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a mesma questão de inconstitucionalidade respeita (vide o supra citado Acórdão do Tribunal Constitucional nº 352/89).
22. Acresce que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa entendeu que o recurso para o Tribunal Constitucional não era igualmente admissível em virtude de não ter aplicado “essa ou qualquer outra norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada”.
23. Porém, o que sucedeu foi que quer o Tribunal de 1ª Instância quer o Tribunal de recurso não se pronunciaram sobre a questão da inconstitucionalidade suscitada pelas Reclamantes.
24. Mas parece óbvio que isso as não pode prejudicar.
25. De outro modo estaria encontrada a forma de nunca ser admissível recurso para o Tribunal Constitucional: bastaria que o Tribunal a quo não se pronunciasse sobre as questões de inconstitucionalidade suscitadas pelas partes.
26. Ainda assim sempre se dirá que o Tribunal da 1ª Instância, ao ordenar a reforma da conta de custas, aplicou o art. 13º do Código das Custas Judiciais e a tabela a que este faz referência.
27. E o Tribunal de recurso ao manter o que foi decidido na 1ª Instância, aplicou também tal norma e tabela.
28. Não havendo, assim, dúvidas que a esfera jurídica das Reclamantes foi afetada pela norma em causa.
29. Por tudo, pois, encontram-se preenchidos os pressupostos definidos no artº 70º, nº 1, al) b) da Lei 28/82, sendo admissível o recurso interposto pelas ora Reclamantes para o Tribunal Constitucional.
Termos em que, com os mais que resultarão do douto suprimento de Vossas Excelências, deve o despacho reclamado ser revogado e, em consequência, substituído por outro que admita o recurso interposto pelas ora Reclamantes, como é de Justiça.»
O Ministério Público apresentou, no que ora releva, a seguinte resposta (cfr. fls. 33 a 42 dos autos de reclamação):
«13. Ora, crê-se que as ora Reclamantes têm alguma razão na sua argumentação, designadamente quanto ao facto de terem suscitado atempadamente, perante o Tribunal da Relação de Lisboa, uma questão de constitucionalidade, que a este tribunal superior cabia dirimir, uma vez que ainda se não havia esgotado o seu poder jurisdicional.
Duvidoso já é, porém, o facto de tal questão de inconstitucionalidade ter constituído a ratio decidendi da decisão recorrida.
14. Com efeito, relativamente à decisão de primeira instância (cfr. supra nº 4 do presente parecer), o Meritíssimo Juiz entendeu que, “por não se tratar de reclamação de conta, mas de reanálise das decisões quanto a custas, e quanto a esta não ser possível por extemporâneo e por carecer o juiz de competência para o efeito, vai indeferida a «reclamação» apresentada”.
A principal razão para o indeferimento foi, pois, a extemporaneidade do pedido, uma vez que as ora reclamantes tinham deixado passar o momento processual adequado para pedir a reanálise dos fundamentos da decisão quanto a custas.
15. Também quanto à decisão de segunda instância, a decisão recorrida, do Tribunal da Relação de Lisboa, a razão fundamental para o indeferimento foi a mesma (cfr. supra nº 6 do presente parecer).
Refere-se com efeito, no referido Acórdão, como se viu:
“Aliás tem sido entendimento de que a reclamação da conta não pode ir além da correção de erros de contagem.
De facto, o incidente da reclamação da conta, não constitui o meio idóneo para corrigir a decisão sobre a responsabilidade pelo pagamento das custas (Salvador da Costa, ibidem, pág. 345).
Ora, o que se requer, a pretexto de reclamação é situação bem diferente.
De facto, pretende-se:
Que se determine e qualifique o recurso para o STJ como não tendo revestido especial complexidade e assim não se justificar os valores contados.
A redução do valor do processo que se deve considerar não superior a 250.000,00 €. Eventual inconstitucionalidade do art. 13º do CCJ por violação dos princípios da proporcionalidade, acesso à justiça e igualdade.
Ora, se assim é, então é evidente que a reclamação da conta não tem qualquer justificação e muito menos têm fundamento os recursos interpostos.
Não se trata de reclamar da conta, mas antes alterar ou provocar decisão diferente daquelas que foram objeto da providência e que se devem entender como transitadas.”
16. Assim, a referência à questão de constitucionalidade, suscitada pelas ora reclamantes, aparece, no Acórdão recorrido, como fundamento alternativo, ou até mesmo como obiter dictum em relação ao primeiro fundamento, por ele igualmente invocado, para não conceder provimento ao recurso.
Refere, com efeito, o mesmo Acórdão (cfr. supra nº 7 do presente parecer):
“Mas, mesmo que assim não se entenda, pensamos que a citada norma não é inconstitucional, uma vez que não violam os princípios do acesso à Justiça (art. 20º da CRP), proporcionalidade (arts. 2º e 18º nº 2 da CRP) e da Igualdade (art. 13º da CRP), pelas razões que constam no mais recente acórdão deste tribunal, que aqui se subscrevem, disponível na base de dados do M.J. – dgsi (Ac. do TRL de 23/02/2012 sob o nº 5284/05.5TVLSB.L2-6).”
17. Nessa medida, muito embora com fundamento diferente do invocado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, julga-se que a presente reclamação não deverá merecer acolhimento por parte deste Tribunal Constitucional.»
Notificadas para, querendo, se pronunciarem sobre o teor da resposta apresentada pelo Ministério Público, face à invocação de fundamento alternativo conducente à improcedência da presente reclamação, as ora reclamantes vieram dizer (cfr. fls. 45 a 49 dos autos de reclamação):
«1. O recurso interposto pelas Reclamantes foi rejeitado com base em dois pressupostos:
– a extemporaneidade; e
– o Tribunal recorrido não ter aplicado a norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada.
2. No Parecer a que agora se responde o Excelentíssimo Senhor Procurador- Geral Adjunto reconhece que as Reclamantes têm razão quanto à primeira questão.
3. Ou seja, entende que as Reclamantes suscitaram atempadamente a questão da inconstitucionalidade.
4. Nessa medida, seria expectável que a conclusão a retirar pelo Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto fosse a de que a presente reclamação deveria ser atendida e o recurso apreciado.
5. Porém, não foi essa a consequência retirada pelo Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto, pois conclui que a presente reclamação deve ser desatendida, em virtude da questão da inconstitucionalidade não ter constituído a ratio decidendi da decisão recorrida.
6. Salvo o devido respeito e melhor opinião, carece de razão.
7. Antes de mais, deve ter-se em conta que o que se pretende com o pressuposto previsto na al) b) do nº 1 do artº 70º da Lei do Tribunal Constitucional, é que este Venerando Tribunal só seja chamado a conhecer da questão da constitucionalidade quando a norma ou a interpretação normativa questionada exerça alguma influência no julgamento da causa.
[…]
9. O que, transposto para o caso em apreço e tendo em conta as suas particularidades, quererá dizer que, para que o Tribunal Constitucional possa apreciar o recurso interposto pelas Reclamantes, a norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada – artº 13º do CCJ e tabela anexa – teria de ter sido aplicada.
10. E foi precisamente isso que aconteceu no caso vertente, uma vez que a conta de custas foi elaborada com base naquela norma e tabela.
11. Aliás, se se analisar a decisão da 1ª Instância, verifica-se que aí se ordenou a reforma da conta de custas aplicando a tabela que as ora Reclamantes reputam de inconstitucional.
12. Daí que, no caso em apreço, esteja em causa uma norma cuja aplicação atinge a esfera jurídica do particular.
13. Por outro lado, há que ter em conta que a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa foi no mesmo sentido da que foi proferida pelo Tribunal da 1ª Instância.
14. Ou seja, o Tribunal da Relação entendeu não se pronunciar sobre a questão da inconstitucionalidade, por considerar que a mesma era extemporânea.
15. Nesse particular, refere-se no Acórdão do Tribunal da Relação o que a seguir se transcreve: “Não se trata de reclamar da conta, mas antes alterar ou provocar decisão diferente daquelas que foram objeto de providência e que se devem entender como transitadas” (com sublinhado nosso).
16. Por isso mesmo manteve o decidido na ia Instância e, nessa medida, continuou a aplicar a norma reputada de inconstitucional.
17. Donde se retira que se encontra também preenchido o segundo pressuposto de admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional.
[…]
19. Quer isto dizer que sendo de afastar o primeiro dos pressupostos de rejeição do recurso – a extemporaneidade – há que apreciar necessariamente o segundo.
20. Isto é, há que apreciar se a norma reputada de inconstitucional foi ou não usada na decisão recorrida e se afetou ou não a esfera jurídica das Reclamantes.
21. De outro modo, criar-se-ia um círculo vicioso do qual nenhum sujeito processual conseguiria sair.
22. Ora, o recurso só seria de rejeitar se a decisão recorrida estivesse fundamentada de tal forma que, mesmo decretada a inconstitucionalidade da norma em apreço, isso não tivesse qualquer influência na decisão, por ela se haver baseado, primacialmente, noutro fundamento.
23. O que não é, de todo em todo, o caso dos autos.
24. Na verdade, se a norma em apreço for julgada inconstitucional, ter-se-á de refazer a conta de custas.
25. Em suma, não pode rejeitar-se o recurso por não ter sido conhecida a questão da inconstitucionalidade, quando isso sucedeu em virtude da alegada extemporaneidade que, afinal, não se verifica.
26. Estão, pois, preenchidos os pressupostos constantes do artº 70º da Lei do Tribunal Constitucional.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
4. No presente recurso de constitucionalidade está em causa a conta de custas n.º 954000114892010 de fls. 2032, elaborada de acordo com o Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de novembro, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de dezembro.
Segundo o artigo 1.º, n.º 2, do referido Código, as custas compreendem a taxa de justiça e os encargos. Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 13.º (“Base de cálculo da taxa de justiça”) do mesmo diploma, “a taxa de justiça é, para cada parte, a constante da tabela do anexo I, sendo calculada sobre o valor das ações” e a “taxa de justiça do processo corresponde ao somatório das taxas de justiça inicial e subsequente de cada parte”. A tabela em causa fixa o valor destas duas taxas em unidades de conta ou “UC” em função do “valor da ação, incidente ou recurso” e estabelece uma série de escalões até ao valor de € 250 000,00; para além deste valor, “à taxa de justiça do processo acresce, por cada € 25 000,00 ou fração, 5 UC, a final”.
A elaboração da conta – que, nos termos do artigo 50.º do citado Código das Custas Judiciais, ocorre necessariamente após o trânsito em julgado da decisão final da causa – compreende, deste modo, a liquidação da taxa de justiça, ou seja o apuramento das UC a pagar por cada sujeito processual condenado em custas, de acordo com os critérios fixados na aludida tabela e, bem assim, o apuramento dos encargos previstos no artigo 32.º daquele Código a suportar pela parte responsável pelo pagamento das custas).
Importa, por conseguinte, distinguir duas realidades: a condenação no pagamento das custas – que ocorre na decisão final e que, entre outros aspetos, e conforme referido no despacho da primeira instância de fls. 2139, pode apreciar e decidir da verificação dos pressupostos da dispensa do pagamento de taxa sobre o remanescente dos € 250 000 000,00 a que alude o artigo 27.º, n.º 3, do Código das Custas Judiciais (mas que, em qualquer caso, não faz aplicação nem do artigo 13.º do Código das Custas Judiciais nem da tabela constante do anexo I do mesmo diploma!); e a elaboração da conta de custas, com a inerente liquidação da taxa de justiça.
A elaboração da conta de custas implica, por isso, a aplicação do artigo 13.º do Código das Custas Judiciais e da tabela que integra o seu anexo I. Assim, se tal conta é impugnada com fundamento na inconstitucionalidade dos critérios (normativos) constantes da tabela com base na qual a mesma conta é elaborada, a decisão que indefere tal reclamação, confirmando a liquidação reclamada, faz necessariamente aplicação de uma norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição e no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC.
Cumpre, assim, determinar qual o exato objeto da reclamação da conta de custas oportunamente deduzida pelas recorrentes e do posterior impulso recursório dirigido ao Tribunal da Relação de Lisboa.
5. As recorrentes alegam ter suscitado a mencionada inconstitucionalidade do artigo 13.º do Código das Custas Judiciais, e da tabela para a qual o mesmo artigo remete, por diversas vezes ao longo do procedimento de reclamação.
Desde logo, nos n.ºs 13 e 14 da reclamação da conta (v. fls. 2062-2063).
Aí, transcrevendo o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 471/2007 (n.º 13), as recorrentes afirmam, além do mais, que:
« ”[A] cobrança de taxas elevadas pela prestação dos serviços de justiça, não só pode determinar a sua desproporcionalidade, afrontando o princípio constitucional estruturante da proibição do excesso, como também pode pôr em risco o próprio direito fundamental dos cidadãos de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos (art. 20.º, n.º 1, da CRP)
Na verdade, quando as taxas de justiça atingem um montante de tal modo elevado que dificultem, de modo inexigível, a generalidade dos cidadãos de recorrer aos tribunais para defesa dos seus direitos, estamos perante inequívocas violações daquele direito constitucional.
(…)
Assim se conclui que o sistema de fixação das taxas de justiça do C.C.J., na redação do D.L. nº 224-A/96 de 26 de novembro, acima exposto, permitirão a cobrança de taxas de justiça, cujo montante, exageradamente elevado, poderia atentar contra os referidos parâmetros constitucionais de proibição do excesso e do direito de acesso aos tribunais.
(...)
Só a ausência de previsão de um limite máximo ou da possibilidade da intervenção moderadora do juiz na fixação do valor das taxas devidas pela tramitação ocorrida permitiu que estas atingissem aquele valor manifestamente desproporcionado e injustificadamente inibidor do utilizador dos serviços públicos da justiça.
Essa desproporção flagrante e o exagero daquela quantia viola não só o princípio estruturante constitucional da proibição do excesso, como também o direito de acesso aos tribunais, previsto no artº 20.º, nº 1, do C.R.P., pelo que deve confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade efetuado pela decisão recorrida, julgando-se improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público”».
E no n.º 14 da reclamação retiram a seguinte consequência:
«Portanto, forçoso é concluir que as custas judiciais calculadas nos presentes autos são manifestamente exorbitantes e desproporcionadas em relação ao custo do serviço de que as partes usufruíram, violando-se assim os princípios constitucionais da proporcionalidade e do acesso aos tribunais (artº 266º nº 2 e 20 nº 1 da CRP)».
Na decisão da reclamação (fls. 2139 e ss.) o Mmo. Juiz da primeira instância apenas relevou a “«vertente» da reclamação” conexionada com a questão da aplicabilidade do artigo 27.º, n.º 3, do Código das Custas Judiciais, nomeadamente a complexidade da causa e a conduta processual das partes como fatores atendíveis para determinação da dispensa do pagamento de taxa de justiça relativamente ao valor que excede o valor tributário de € 250 000,00. Porém, não se pode inferir do teor da reclamação que esta se limitasse exclusivamente a esse aspeto.
Nesse sentido, nas alegações do recurso de agravo interposto que as ora reclamantes interpuseram para o Tribunal da Relação de Lisboa, as mesmas apresentaram, entre outras, as seguintes conclusões (fls. 2189 e ss.):
« 7ª - Para além disso, o art. 13 do CCJ - um dos preceitos utilizados na elaboração da conta de custas – é inconstitucional, por violação dos princípios da proporcionalidade, acesso à justiça e igualdade, sobretudo quando interpretado no sentido de que o controlo jurisdicional não deve ser exercido fixando, para efeitos de custas, um limite ao valor da causa não superior a 250.00000 €;
8ª - Deve, pois, reformular-se a conta de custas, interpretando-se restritivamente o citado art.º 13 do CCJ, de modo a eliminar a possibilidade do valor das custas aumentar ilimitadamente tendo apenas como referência o ilimitado valor do processo;
9ª - Logo, quer pela aplicação do disposto no art. 27 n.º 3, quer pela interpretação restritiva do art. 13º, ambos do CCJ, há que, para efeitos de custas da responsabilidade das Recorrentes, limitar o valor do processo a 250.000,00 €;
10ª - Decidindo como decidiu, o douto despacho recorrido violou, designadamente, os art.ºs 13º e 27º do CCJ e os art.ºs 20º, 204º e 266 da Constituição.»
E aquele Venerando Tribunal, no seu acórdão de fls. 2297 e ss., reconheceu expressamente ter sido suscitada a questão da inconstitucionalidade do artigo 13.º do Código das Custas Judiciais.
Fê-lo quando resume o objeto do recurso (cfr. pág. 5, fls. 2301):
« - O recurso para o STJ não revestiu especial complexidade, nada justifica o montante de custas apresentado para pagamento às Agravantes;
- Para além disso, o art. 13º CCJ – um dos preceitos utilizados na elaboração da conta de custas – é inconstitucional, por violação dos princípios da proporcionalidade, acesso à justiça e igualdade, sobretudo quando interpretado no sentido de que o controlo jurisdicional não deve ser exercido fixando, para efeito de custas, um limite ao valor da causa não superior a 250.000,00€;
- Logo, quer pela aplicação do disposto no art. 27 n.º 3, quer pela interpretação restritiva do art. 13.º, ambos do CCJ, há que, para efeitos de custas da responsabilidade das Recorrentes, limitar o valor do processo a 250.000,00€.»
E voltou a fazê-lo quando delimita as questões decidendas (cfr. pág. 6, fls. 2302):
« De facto pretende-se:
[…]
A redução do valor do processo que se deve considerar não superior a 250.000,00€.
Eventual inconstitucionalidade do art. 13º CCUJ por violação dos princípios da proporcionalidade, acesso à justiça e igualdade.»
Todavia, em vez de assumir e exercer expressamente o seu poder-dever de controlo da constitucionalidade das normas aplicadas ou a aplicar “nos feitos submetidos a julgamento”, tal como previsto no artigo 204.º da Constituição, o Tribunal da Relação de Lisboa entendeu tratar-se de questão nova em relação à apreciada no processo e já transitada.
Com efeito, aquele Tribunal afirma logo a seguir à delimitação das questões decidendas (cfr. novamente pág. 6, fls. 2302):
« Ora, se assim é, então é evidente que a reclamação da conta não tem qualquer justificação e muito menos têm fundamento os recursos interpostos.
Não se trata de reclamar da conta, mas antes alterar ou provocar decisão diferente daquelas que foram objeto da providência e que se devem entender como transitadas.»
E, mais à frente, considerando diretamente a questão de inconstitucionalidade suscitada, o tribunal recorrido explicita de forma cristalina este seu entendimento (cfr. novamente págs. 7-8, fls. 2303-2304):
« XIV
Depois, suscita-se, com algum ânimo e em sede de recurso, a inconstitucionalidade de norma do C.C. J. — art. 13.
Constata-se, porém, que os recorrentes A. e outros não invocaram nem suscitaram tal pedido na Instância, mesmo em sede de reclamação.
Pelo tão só agora nas alegações e conclusões de recurso.
De facto, aos tribunais de recurso, não cabe criar decisões que não tenham sido apreciadas no tribunal inferior.
Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais com o objetivo de recriar novo exame sobre matéria decidida, pelo que só podem apreciar questões que tenham sido já apreciadas e não criar “novas decisões”.
Ora, se assim é, trata-se de questão nova e como tal arredada deve considerar-se do recurso.» (itálico aditado)
Sucede que este raciocínio, em virtude do aludido poder-dever estatuído no artigo 204.º da Constituição, não vale para as questões de inconstitucionalidade das normas a aplicar ou aplicadas num dado caso. Tais questões, uma vez suscitadas - ou mesmo independentemente da sua suscitação - integram sempre os poderes de cognição do tribunal, em termos de, no caso de ter havido suscitação pelas partes, a decisão do caso proferida pelo tribunal implicar um juízo positivo ou negativo de inconstitucionalidade, ainda que implícito. Aliás, por isso mesmo, é que a Constituição se basta com a suscitação da inconstitucionalidade de norma aplicada num dado caso concreto para abrir a via recursória para o Tribunal Constitucional (cfr. o artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição).
In casu, e como referido, não cabe dúvida de que a questão da inconstitucionalidade do artigo 13.º do Código das Custas Judiciais foi suscitada – para efeitos de custas, o valor do processo deve ser limitado ao máximo de € 250.000,00. De resto, quanto a este aspeto, o Ministério Público manifestou a sua concordância:
« 13. Ora, crê-se que as ora Reclamantes têm alguma razão na sua argumentação, designadamente quanto ao facto de terem suscitado atempadamente, perante o Tribunal da Relação de Lisboa, uma questão de constitucionalidade, que a este tribunal superior cabia dirimir, uma vez que ainda se não havia esgotado o seu poder jurisdicional.»
A suscitação da questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, nos termos expostos é, por si só, suficiente para infirmar o pressuposto em que assenta o despacho ora reclamado.
De todo o modo, sempre se dirá que as decisões judiciais que julgaram improcedentes os impulsos impugnatórios das ora reclamantes dirigidos à conta de custas, justamente porque a elaboração de tal conta pressupôs a liquidação da taxa de justiça nos termos do artigo 13.º do Código das Custas Judiciais, acabam necessariamente por fazer também aplicação dos critérios normativos subjacentes a tal liquidação. Ou seja, ao indeferir as impugnações oportunamente deduzidas pelas recorrentes, tanto o tribunal de primeira instância, como o tribunal de segunda instância, julgaram não inconstitucional aquele artigo 13.º, e decidiram aplicá-lo. Contrariamente ao entendimento pressuposto nas instâncias, a reclamação da conta de custas, se tem por objeto a eventual correção de erros de contagem, não deixa também de ser o momento próprio para questionar constitucionalidade dos critérios normativos que presidem à liquidação da taxa de justiça, nomeadamente, a base para a fixação dos valores (o valor da ação), os valores que definem cada um dos escalões, as taxas aplicáveis a cada escalão e, inclusivamente, o valor indeterminado que a taxa de justiça pode assumir, por força da aplicação de um certo adicional aos processos acima de um dado valor.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se deferir a presente reclamação e, em consequência, revogar o despacho de indeferimento e admitir o recurso de constitucionalidade.
Sem custas (artigo 84.º, n.º 4, da LTC)
Lisboa, 31 de janeiro de 2013. – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro