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Processo n.º 533/12
1ª Secção
Relator: Conselheiro Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que é recorrente A., CRL e recorrida B., foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 23 de janeiro de 2012.
2. Pela Decisão Sumária n.º 508/2012, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto. Tal decisão tem a seguinte fundamentação:
«Cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo (artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC). O conceito de norma jurídica surge aqui como “elemento definidor do objeto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objeto de tal recurso” (cf. Acórdão n.º 361/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
A recorrente requer a apreciação da norma «do art. 334º do C. Civil, quando interpretada e aplicada para justificar que a eficácia do caso julgado da sentença não cubra apenas a sua parte final, ou seja, a resposta injuntiva do Tribunal à pretensão dos autos, mas também pelo que consta do seu texto ou fundamentos».
Não obstante ter sido convidada a indicar, com precisão, a norma cuja apreciação pretende, este enunciado não tem natureza normativa, correspondendo antes ao que resulta da aplicação, ao caso, do artigo 334.º do Código Civil, cuja letra não comporta sequer a precisão feita pela recorrente. Aliás, a decisão recorrida é bem clara no sentido de que a força do caso julgado não se estende aos fundamentos da sentença, que no corpo desta se situam entre o relatório e a decisão final. Porém, como se entendeu que o direito da recorrente se opor à execução, com base nos limites da condenação contida na parte dispositiva da sentença, excedia manifestamente os limites impostos pela boa-fé e não tinha qualquer justificação social, tal levou, no caso, a não distinguir a fundamentação da parte dispositiva da sentença. Aquele enunciado é significativo, isso sim, de que se pretende afinal a apreciação do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, por decidir que havia abuso de direito por parte da recorrente.
Como o recurso interposto não tem como objeto uma norma, não pode tomar-se conhecimento do objeto do mesmo, justificando-se a prolação da presente decisão (artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC)».
3. Da decisão sumária vem agora o recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, com os seguintes fundamentos:
«A decisão reclamada consistiu em não tomar conhecimento do objeto do recurso por se ter entendido e considerado que a pretensão da recorrente era a apreciação do acórdão do Tribunal da Relação e, por isso, o recurso interposto não ter como objeto uma norma.
Com todo e o maior respeito, não nos parece correto e ajustado esse entendimento.
Desde logo, porque como nos parece evidente, qualquer recurso tem sempre como objetivo a reapreciação de uma decisão, designadamente, como no caso concreto sucede, de um acórdão de um Tribunal de 2ª Instância.
Com efeito, é a reapreciação de uma decisão desfavorável que constitui o fundamento e razão de ser de qualquer recurso, incluindo para este Venerando Tribunal.
Questão é que a pretendida reapreciação tenha como fundamento a desconformidade da decisão em causa com alguma norma ou princípio constitucional.
E é isso, precisamente, que a recorrente entende ter ocorrido na decisão posta em crise.
Não obstante considerar que, de acordo com norma expressa da lei (art. 659º nº1 do C.P.C.) o caso julgado de uma sentença se forma apenas com a sua parte dispositiva, ou seja, com a respetiva decisão propriamente dita e não também com os seus fundamentos, o Acórdão recorrido socorreu-se do instituto do abuso de direito consagrado no art. 334º do C. Civil para, no caso concreto, decidir em sentido contrário.
Portanto, embora se pretendendo a reapreciação do acórdão recorrido, essa reapreciação tem como fundamento a inconstitucionalidade da interpretação e aplicação ao caso da citadas normas.
Conforme também alegado pela recorrente no seu requerimento de interposição do presente recurso, a interpretação e aplicação adotadas no acórdão recorrido redundam em aplicação discriminatória da Lei, com ostensiva e flagrante violação de dois princípios estruturantes da nossa ordem constitucional: o da igualdade dos cidadãos perante a lei e o da segurança jurídica e confiança, diretamente decorrente do princípio do Estado de Direito, consagrados nos arts. 13 e 2º respetivamente, da nossa Lei Fundamental.
Por conseguinte, no presente recurso, estão em causa, não apenas normas concretas, como a violação de princípios constitucionais, também estes, só por si, objeto e fundamento bastante para o interposto recurso - v. nº 2 do art. 75-A da L.O.F.P.T.C.».
4. Notificada desta reclamação, a recorrida não respondeu.
II. Fundamentação
Nos presentes autos foi proferida decisão de não conhecimento do objeto do recurso, por se ter entendido que o recorrente pretendia a apreciação de uma decisão judicial e não de uma norma, o que colide com o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, onde o conceito de norma jurídica surge como elemento definidor do objeto do recurso de constitucionalidade. É, por isso, totalmente improcedente a argumentação do reclamante de que é admissível a reapreciação de uma decisão desfavorável desde que «tenha como fundamento a desconformidade da decisão em causa com alguma norma ou princípio constitucional».
Para contrariar o decidido, o reclamante sustenta ainda que o pedido de reapreciação do acórdão recorrido tem como fundamento a inconstitucionalidade da interpretação e aplicação ao caso dos artigos 659.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e 334.º do Código Civil, as quais «redundam em aplicação discriminatória da Lei, com ostensiva e flagrante violação de princípios estruturantes da nossa ordem constitucional». Com esta argumentação, o reclamante acaba por confirmar que não está em causa a apreciação de uma questão de inconstitucionalidade normativa, já que tem por inconstitucional o resultado da aplicação da norma ao caso.
Como já foi dito na decisão reclamada, ao requerer a apreciação da norma «do art. 334.º do C. Civil, quando interpretada e aplicada para justificar que a eficácia do caso julgado da sentença não cubra apenas a sua parte final, ou seja, a resposta injuntiva do Tribunal à pretensão dos autos, mas também pelo que consta do seu texto ou fundamentos», o recorrente pretendia afinal a apreciação do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, por nele se ter decidido que havia abuso de direito por parte da recorrente. Isto é que, segundo o reclamante, viola de forma ostensiva e flagrante princípios estruturantes da nossa ordem constitucional. De resto, como também já se disse, o preceito legal, segundo o qual «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito», não comporta sequer o enunciado ao qual o recorrente faz corresponder a “norma” cuja apreciação pretendia.
Há que confirmar, por conseguinte, a decisão sumária.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 15 de janeiro de 2013. – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria Lúcia Amaral.