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Processo n.º 121/2012
Plenário
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Banco A. (Portugal), S.A., deduziu junto do Tribunal Tributário de Lisboa, impugnação judicial do ato tributário de liquidação Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) com o n.º …, relativa ao ano de exercício de 2008, invocando que, mau grado a liquidação se mostrar omissa quanto à respetiva fundamentação, o impugnante julga que ela resultará «… da aplicação da taxa de 10% na tributação autónoma da totalidade dos encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e os relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, do que resultou o apuramento de um montante de € 3314,35 de tributações autónomas, superior em € 1176,42 ao apurado pelo Impugnante».
O impugnante teve por assente que «… a administração tributária considerou válido o artigo 5.º da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, nos termos do qual a alteração da taxa prevista na alínea b) do número 3 do artigo 81.º do Código do IRC, de 5% para 10% produz efeitos desde 1 de janeiro de 2008».
Perante isso, invocou que o artigo 5.º da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, é uma norma verdadeiramente retroativa e, consequentemente, inconstitucional por violar o princípio da não retroatividade da lei fiscal.
2. Por sentença de 27 de dezembro de 2011, o Tribunal Tributário de Lisboa, decidiu julgar a impugnação procedente, tendo recusado a aplicação do artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, «… por violação do princípio da irretroatividade dos impostos, uma vez que a aplicação da taxa agravada a factos ou situações anteriores à entrada em vigor da lei, com impacto relativamente a encargos já suportados no passado, traduz a aplicação retroativa da lei. …» e, continua «… de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 103.º da CRP ‘ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não tenham sido criados nos termos da Constituição que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se façam nos termos da lei’. …».
3. Perante tal decisão, o Ministério Público (cf. fls. 81) apresentou requerimento de interposição de recurso, do seguinte teor:
“…
A Magistrada do Ministério Púbico, junto deste Tribunal, vem, nos autos supra identificados, nos termos dos artigos 280º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, 70º nº 1 al. a) e 72º nº 1, al a) e nº 3 da Lei 28/82 de 15/11, alterada pelas Leis 85/89 de 7/9 E 13-A/98 de 26/2, interpor recurso para o Tribunal Constitucional da douta sentença de fls. 71 e seguintes proferida nos autos á margem referenciados, por a Meritíssimo Juíza ter recusado a aplicação do disposto no artº 5º da Lei 64/2008 de 5/12 que deu nova redação ao artigo 81º do CRC, passando a taxa de tributação autónoma a ser de 10%, com efeitos desde 1 de janeiro de 2008, com fundamento na sua inconstitucionalidade material, por violação do princípio da proibição da retroatividade fiscal consignado no artigo 103º, nº 3 do CRP.
…”.
4. Por sua vez, a representante da Fazenda Pública (cf. fls. 85), notificada da mesma decisão, dela interpôs recurso, nos seguintes termos:
“…
A Representante da Fazenda Pública tendo sido notificada da douta sentença proferida nos autos à margem identificados e com esta não se conformando, vem, pelo presente, da mesma interpor recurso per saltum para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, nos termos dos art°s. 280.º a 282.º do C.P.P.T., a processar como o de agravo em matéria cível, de subida imediata e nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo (artº 281º do CPPT e art°s 734º nº 1 alínea a) e 736º do CPC).
Porque tem legitimidade e está em tempo, requer a V. Exa. a respetiva admissão.
…”.
5. O recurso de constitucionalidade veio a ser decidido pelo Acórdão n.º 382/2012 que, seguindo de muito perto a fundamentação do Acórdão n.º 310/2012, concluiu da seguinte forma:
«…
a) Julgar inconstitucional, por violação do n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, a norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, na parte em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea a) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, consagrada no artigo 1.º-A do aludido diploma legal.
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
…».
6. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório deste Acórdão n.º 382/2012, ao abrigo do disposto no artigo no artigo 79.º-D da LTC, para o Plenário do Tribunal Constitucional, nos termos seguintes:
«…
1 - O representante do Ministério Público neste Tribunal Constitucional, notificado do douto Acórdão n.º 382/2012, proferido no processo em epígrafe, vem interpor recurso obrigatório para o Plenário deste Tribunal Constitucional, nos termos do art.º 79.º - D, n.º 1, da LTC, com vista a dirimir o conflito jurisprudencial sobre a questão da constitucionalidade da norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, na parte em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008, a alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, consagrada no artigo 1.º-A do aludido diploma legal.
2 – Na verdade, o juízo de inconstitucionalidade de tal norma, constante do Acórdão recorrido, é contraditório com o juízo de não inconstitucionalidade formulado no Acórdão n.º 18/2011, cabendo ao Plenário dirimir tal conflito jurisprudencial.
…».
7. Tendo-se ordenado a notificação para alegações, o Ministério Público veio apresentar as suas e nelas, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, formulou as seguintes conclusões:
«…
1.ª) Vem interposto, pelo Ministério Público, recurso obrigatório, nos termos e para os efeitos do artigo 79.º-D (Recurso para o plenário) da LOFPTC, o qual tem por objeto fazer dirimir, pelo plenário do Tribunal Constitucional, uma divergência de julgados, tirados pelas secções, quanto à mesma norma jurídica.
2.ª) A norma jurídica em causa consta do artigo 5.º (Produção de efeitos), n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, na parte em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do artigo 81.º (Taxas de tributação autónoma), n.º 3, alínea a), do CIRC, consagrada no artigo 1.º-A do aludido diploma legal, em matéria da taxa de tributação autónoma aplicada aos encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e os relacionados com viaturas ligeiras de passageiros.
3.ª) Os julgados em confronto foram tirados no douto acórdão n.º 18/2011, de 12 de janeiro de 2011, da 3.ª secção, recurso n.º 204/2010, e ulteriormente no douto acórdão n.º 382/2012, de 12 de julho, da 2.ª secção, constante de fls. 109 a 123 destes autos, e agora recorrido, ambos deste Tribunal Constitucional.
4.ª) A Constituição, na Quarta revisão constitucional, operada pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro, estabeleceu a seguinte proibição: “Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos (…) que tenham natureza retroativa (…)” (CRP, art. 103.º, n.º 3).
5.ª) Ora, a norma agora em apreciação, agravou a taxa de tributação autónoma da lei antiga, que duplicou de 5% para 10% e, embora tenha entrado em vigor em 6 de dezembro de 2008, veio a incidir sobre factos tributários (no caso, encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e a viaturas ligeiras de passageiros) ocorridos desde 1 de janeiro do mesmo ano de 2008, ou seja, antes da sua entrada em vigor.
6.ª) Do ponto de vista das concretas características dos factos tributários em causa, “autoexecutivos”, tributados ato a ato e a uma taxa autónoma, o agravamento da taxa de tributação autónoma vai incidir sobre efeitos já (material, ainda que não administrativamente) consumados.
7.ª) Tal norma, por conseguinte, é uma lei fiscal “desfavorável” e “retroativa” e, portanto, é materialmente inconstitucional, por infringir a proibição de impostos com natureza retroativa (CRP, arts. 103.º, n.º 3 e 277.º, n.º 1).
8.ª) Em conformidade, por fazer boa e fundamentada interpretação e aplicação das referidas disposições constitucionais, vai inteiramente sufragada, por este Ministério Público, a doutrina constante do douto acórdão n.º 310/2012, cit., que julgou inconstitucional a norma agora em apreciação, por violação do n.º 3 do artigo 103.º, da Constituição.
…».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação.
8. No caso sub judice, temos que ocorre o pressuposto que consente o recurso para o Plenário do Tribunal Constitucional, porquanto uma Secção julgou a mesma questão de constitucionalidade em sentido divergente do que havia sido decidido, anteriormente, por outra Secção.
Na realidade, o Acórdão n.º 382/2012, da 2.ª Secção deste Tribunal, proferido nestes autos em 12 de julho de 2012, julgou inconstitucional por violação do n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, a norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, na parte em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea a) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, consagrada no artigo 1.º-A do aludido diploma legal.
Por sua vez, o Acórdão n.º 18/2011, da 3.ª Secção, proferido em 12 de janeiro de 2011, havia já julgado não inconstitucional precisamente a mesma norma.
Temos assim que nada obsta ao conhecimento do mérito do recurso.
9. A divergência existente entre os acórdãos citados, no que concerne ao sentido neles adotados quanto à mesma questão de constitucionalidade, integra, portanto, o objeto do presente recurso para o Plenário.
Sucede que, como se extrai do já exposto, tal questão foi já dirimida por este Plenário, mais propriamente no Acórdão n.º 617/2012, proferido em 19 de dezembro de 2012, em que o Acórdão n.º 310/2012 (2.ª Secção) era o acórdão recorrido e o Acórdão n.º 18/2011 o acórdão fundamento, ocorrendo, agora, tão só a diferença quanto ao acórdão recorrido que é o Acórdão n.º 382/2012, em que se perfilha idêntica jurisprudência à que se mostra vertida no acórdão, então, recorrido.
O Tribunal, no supra identificado Acórdão n.º 617/2012, resolveu a divergência das decisões em conflito julgando ‘… inconstitucional, por violação do n.º 3, do artigo 103.º, da Constituição, a norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, na parte em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea a), do Código do Imposto sobre o Rendimento das pessoas Coletivas, consagrada no artigo 1.º-A do aludido diploma legal’, para o que convocou os seguintes fundamentos:
(…)
“O artigo 81.º, do CIRC, sob a epígrafe «Taxas de tributação autónoma», na redação dada pela Lei n.º 55-B/2004, de 30 de dezembro, alterada pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro, determinava, na parte que ora releva, o seguinte:
«1 – As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50%, sem prejuízo da sua não consideração como custo nos termos do artigo 23.º
2 – A taxa referida no número anterior é elevada para 70% nos casos em que tais despesas sejam efetuadas por sujeitos passivos total ou parcialmente isentos, ou que não exerçam, a título principal, atividades de natureza comercial, industrial ou agrícola.
3 – São tributados autonomamente, à taxa de 5%, os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e os relacionados com viaturas ligeiras ou mistas, motos ou motociclos, efetuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos subjetivamente e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola.
4 – São tributados autonomamente, à taxa de 15 %, os encargos dedutíveis respeitantes a viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujo custo de aquisição seja superior a € 40 000, quando suportados pelos sujeitos passivos mencionados no número anterior que apresentem prejuízos fiscais nos dois exercícios anteriores àquele a que os referidos encargos digam respeito.
[…]»
Após a redação introduzida pelo artigo 1.º-A, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, os n.ºs 3 e 4 do referido preceito legal passaram a dispor o seguinte:
«[…]
3 - São tributados autonomamente, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia elétrica:
a) À taxa de 10%, os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e os relacionados com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou motociclos, efetuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos subjetivamente e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola;
b) À taxa de 5%, os encargos dedutíveis, suportados pelos sujeitos passivos mencionados no número anterior, respeitantes a viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujos níveis homologados de emissão de CO2 sejam inferiores a 120 g/km, no caso de serem movidos a gasolina, e inferiores a 90 g/km, no caso de serem movidos a gasóleo, desde que, em ambos os casos, tenha sido emitido certificado de conformidade.
4 – São tributados autonomamente, à taxa de 20%, os encargos dedutíveis, suportados pelos sujeitos passivos mencionados no número anterior, respeitantes a viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujo custo de aquisição seja superior a € 40 000, quando os sujeitos passivos apresentem prejuízos fiscais nos dois exercícios anteriores àquele a que os referidos encargos digam respeito.
[…]».
De acordo com o seu artigo 6.º, a Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, mas o artigo 5.º, n.º 1, do mesmo diploma, determina que as alterações introduzidas «aos artigos 73.º, 78.º e 85.º do Código do IRS, 81.º e 96.º do Código do IRC e ao artigo 112.º do Código do IMI produzem efeitos desde 1 de janeiro de 2008.»
Assim, com a nova redação dada ao n.º 3, do artigo 81.º, do CIRC, pela referida Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, teve lugar um agravamento da taxa de tributação aplicável aos encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e relacionados com viaturas ligeiras ou mistas, motos ou motociclos (os quais se encontravam referidos no anterior n.º 3 dessa disposição), sendo que tal agravamento, por força da retroação de efeitos prevista no artigo 5.º, n.º 1, da referida Lei, é aplicável aos encargos e despesas já realizados pelos contribuintes no período de 1 de janeiro de 2008 até à data de início de vigência da Lei.
2. Conforme se disse, o tribunal recorrido recusou a aplicação da norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, por violação do princípio da proibição da retroatividade fiscal consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
Esta norma constitucional dispõe que «Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei».
Sendo o poder de lançar impostos inerente à noção de Estado, como manifestação da sua soberania, perante um longo passado de abusos e arbitrariedades, a introdução do princípio da legalidade nesta matéria veio conferir-lhe um estatuto de cidadania no mundo do Direito.
Assim, para que o Estado possa cobrar um imposto ele terá que ser previamente aprovado pelos representantes do povo e terá que estar perfeitamente determinado em lei geral e abstrata, só assim se evitando que esse poder possa ser exercido de forma abusiva e arbitrária, indigna de um verdadeiro Estado de direito.
Por outro lado, o mesmo princípio da legalidade não poderá deixar de impedir que a lei tributária disponha para o passado, com efeitos retroativos, prevendo a tributação de atos praticados quando ela ainda não existia, sob pena de se permitir que o Estado imponha determinadas consequências a uma realidade posteriormente a ela se ter verificado, sem que os seus atores tivessem podido adequar a sua atuação de acordo com as novas regras.
Esta exigência revela as preocupações do princípio da proteção da confiança dos cidadãos, também ele princípio estruturante do Estado de direito democrático, refletidas na vertente do princípio da legalidade, segundo o qual, a lei, numa atitude de lealdade com os seus destinatários, só deve reger para o futuro, só assim se garantindo uma relação íntegra e leal entre o cidadão e o Estado.
É neste sentido que deve ser entendida a opção do legislador constituinte de, na revisão constitucional de 1997, consagrar no artigo 103.º, n.º 3, a regra da proibição da retroatividade da lei fiscal desfavorável. Com esta alteração constitucional não se visou explicitar uma simples refração do princípio geral da proteção da confiança dos cidadãos, inerente a toda a atividade do Estado de direito democrático, mas sim expressar uma regra absoluta de definição do âmbito de validade temporal das leis criadoras ou agravadoras de impostos, prevenindo, assim, a existência de um perigo abstrato de grave violação daquela confiança.
O Tribunal Constitucional tem vindo a seguir o entendimento que esta proibição da retroatividade, no domínio da lei fiscal, apenas se dirige à retroatividade autêntica, abrangendo apenas os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, excluindo do seu âmbito aplicativo as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, ou seja, aquelas situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente, como sucede quando as normas fiscais que produziram um agravamento da posição fiscal dos contribuintes em relação a factos tributários que não ocorreram totalmente no domínio da lei antiga e continuam a formar-se, ainda no decurso do mesmo ano fiscal, na vigência da nova lei (v.g. acórdãos n.º 128/2009, 85/2010 e 399/2010, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Tecidas estas considerações, vejamos se a norma aqui sindicada viola o princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal desfavorável, consagrado na Constituição.
Para isso, importa que se proceda, previamente, a uma breve análise do tipo tributação a que respeitam as normas em causa nos autos, ou seja, a tributação autónoma em IRC.
3. Há que recuar ao ano de 1990 para encontrarmos a primeira intervenção do legislador no sentido de sujeitar determinadas despesas a tributação autónoma, ocorrida com a publicação do Decreto-Lei n.º 192/90, de 9 de junho, cujo artigo 4.º previa que «as despesas confidenciais ou não documentadas efetuadas no âmbito do exercício de atividades comerciais, industriais ou agrícolas por sujeitos passivos de IRS que possuam ou devam possuir contabilidade organizada ou por sujeitos passivos de IRC não enquadrados nos artigos 8.º e 9.º do respetivo Código são tributadas autonomamente em IRS ou IRC, conforme os casos, a uma taxa de 10%, sem prejuízo do disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 41.º do CIRC.»
Esta norma foi objeto de diversas alterações posteriores que, sucessivamente, procederam ao aumento da taxa de tributação nela prevista. Assim, a referida taxa começou por ser de 10% na versão originária do Decreto-Lei n.º 192/90, de 9 de junho, tendo passado para 25% com a Lei que aprovou o Orçamento do Estado para 1995 (cfr. artigo 29.º da Lei n.º 3-B/94, de 27 de dezembro), foi elevada para 30% (ou, no caso de as despesas serem efetuadas por sujeitos passivos de IRC, total ou parcialmente isentos ou que não exerçam, a título principal, atividades de natureza comercial, industrial ou agrícola, para 40%) com a Lei que aprovou o Orçamento do Estado para 1997 (cfr. artigo 31.º, da Lei n.º 52-C/96, de 27 de dezembro), taxas estas que foram ainda aumentadas, respetivamente, para 32% e 60%, com a Lei que aprovou o Orçamento do Estado para 1999 (cfr. artigo 31.º, da Lei n.º 87-B/98, de 31 de dezembro).
Posteriormente, com a “Reforma da tributação do rendimento”, aprovada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, foi revogado o Decreto-Lei n.º 192/90, de 9 de junho, e aditou-se ao Código de IRC o artigo 69.º-A (atual artigo 81.º) e ao Código do IRS o artigo 75.º-A (atual artigo 73.º), através dos quais, para além de se prever, a exemplo do que já acontecia com o referido Decreto-Lei 192/90, de 9 de junho, a tributação autónoma das despesas não documentadas, estendeu-se tal tributação em IRS e IRC às despesas de representação e às despesas com viaturas.
Assim, no que respeita ao IRC, e conforme já referido, o artigo 81.º, n.º 3, do CIRC, na redação dada pela Lei n.º 55-B/2004, de 30 de dezembro, alterada pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro, determinava, na parte que ora releva, que eram tributados autonomamente, à taxa de 5%, os encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e os relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, ou mistas, motos ou motociclos efetuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos e que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola (sendo esta a taxa que, como se referiu, veio a ser agravada pela Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, passando para 10%, com retroação de efeitos a 1 de janeiro de 2008, por força do artigo 5.º, n.º 1, da referida Lei).
Com este tipo de tributação teve-se em vista, por um lado, incentivar os contribuintes a ela sujeitos a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal e, por outro lado, evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição camuflada de lucros, sobretudo de dividendos que, assim, apenas ficariam sujeitos ao IRC enquanto lucros da empresa, bem como combater a fraude e evasão fiscais que tais despesas ocasionem não apenas em relação ao IRS ou IRC, mas também em relação às correspondentes contribuições, tanto das entidades patronais como dos trabalhadores, para a segurança social.
Saldanha Sanches (cfr. Manual de Direito Fiscal, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2007, pág. 407), a propósito da tributação autónoma prevista no artigo 81.º, n.º 3, do CIRC, escreveu o seguinte:
«Neste tipo de tributação, o legislador procura responder à questão reconhecidamente difícil do regime fiscal de despesas que se encontram na zona de interseção da esfera pessoal e da esfera empresarial, de modo a evitar remunerações em espécie mais atraentes por razões exclusivamente fiscais ou a distribuição oculta de lucros. Apresenta a norma uma característica semelhante à que vamos encontrar na sanção legal contra custos não documentados, com uma subida da taxa quando a situação do sujeito passivo não corresponde a uma situação de normalidade fiscal. Se na declaração do sujeito passivo não há lucro, o custo pode ser objeto de uma valoração negativa: por exemplo, temos uma taxa de 15% aplicada quando o sujeito passivo teve prejuízos nos dois últimos exercícios e foi comprada uma viatura ligeira de passageiros por mais de € 40 000 (artigo 81.º, n.º 4).
Com esta previsão, o sistema mostra a sua natureza dual, com uma taxa agravada de tributação autónoma para certas situações especiais que se procura desencorajar, como a aquisição de viaturas para fins empresariais ou viaturas em princípio demasiado dispendiosas quando existem prejuízos. Cria-se, aqui, uma espécie de presunção de que estes custos não têm uma causa empresarial e, por isso, são sujeitos a uma tributação autónoma. Em resumo, o custo é dedutível, mas a tributação autónoma reduz a sua vantagem fiscal, uma vez que, aqui, a base de incidência não é um rendimento líquido, mas, sim, um custo transformado – excecionalmente – em objeto de tributação.»
Contrariamente ao que acontece na tributação dos rendimentos em sede de IRS e IRC, em que se tributa o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado ano (o que implica que só no final do mesmo se possa apurar a taxa de imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere), no caso tributa-se cada despesa efetuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação.
Assim, e no caso do IRC, estamos perante um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido de per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos obtidos num determinado ano, considerando a lei que o facto gerador do imposto se tem por verificado no último dia do período de tributação (cfr. artigo 8.º, n.º 9, do CIRC).
Já no que respeita à tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo.
Esta característica da tributação autónoma remete-nos, assim, para a distinção entre impostos periódicos (cujo facto gerador se produz de modo sucessivo, pelo decurso de um determinado período de tempo, em regra anual, e tende a repetir-se no tempo, gerando para o contribuinte a obrigação de pagar imposto com caráter regular) e impostos de obrigação única (cujo facto gerador se produz de modo instantâneo, surge isolado no tempo, gerando sobre o contribuinte uma obrigação de pagamento com caráter avulso).
Na tributação autónoma, o facto tributário que dá origem ao imposto, é instantâneo: esgota-se no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação (embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas de tributação aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha a efetuar no fim de um determinado período tributário). Mas o facto de a liquidação do imposto ser efetuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de caráter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação autónoma, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência do volume das despesas efetuadas na determinação da taxa.
E esta distinção tem relevância, designadamente, para efeitos de aplicação da lei no tempo e para a análise da questão da proibição da retroatividade da lei fiscal desfavorável prevista no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
Com efeito, conforme refere Cardoso da Costa “(…) a linha demarcadora do âmbito da retroatividade fiscal constitucionalmente admissível passará, desde logo, pela distinção entre situações tributárias «permanentes» e «periódicas» e «factos» cuja eficácia fiscal se esgota ou se firma «instantaneamente», para cada um deles «de per si» (maxime, pela distinção entre «impostos periódicos» e «impostos de obrigação única»), e passará provavelmente, depois, no que concerne àquele primeiro tipo de situações, pela distância temporal que já tiver mediado entre o período de produção dos rendimentos e a criação (ou modificação) do correspondente imposto. Isto, de todo o modo, sem prejuízo do relevo de outras circunstâncias, cujo possível peso não poderá ignorar-se.” (Cfr. Cardoso da Costa, 'O Enquadramento Constitucional do Direito dos Impostos em Portugal', in Perspetivas Constitucionais nos 20 anos da Constituição, Vol. II, Coimbra, 1997, p. 418).
Neste caso estamos perante um tributo de obrigação única, incidindo sobre operações que se produzem e esgotam de modo instantâneo, em que o facto gerador do tributo surge isolado no tempo, originando, para o contribuinte, uma obrigação de pagamento com caráter avulso. Ou seja, as taxas de tributação autónoma aqui em análise não se referem a um período de tempo, mas a um momento: o da operação isolada sujeita à taxa, sem prejuízo de o apuramento do montante devido pelos agentes económicos sujeitos à referida “taxa” ser efetuado periodicamente, num determinado momento, conjuntamente com outras operações similares, sem que a liquidação conjunta influa no seu resultado.
Por esta razão, Sérgio Vasques (cfr. Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2011, pág. 293, nota 470) chama a atenção para a circunstância de os impostos sobre o rendimento contemplarem elementos de obrigação única, como as taxas liberatórias do IRS ou as taxas de tributação autónoma do IRC.
4. Regressando ao caso concreto, é manifesto que se está perante uma hipótese de aplicação retroativa do disposto no artigo 81.º, n.º 3, do CIRC, na redação introduzida pela Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, ou seja, aplicação de lei nova a factos tributários de natureza instantânea, já completamente formados, anteriores à data da sua entrada em vigor.
Com efeito, o facto gerador da obrigação fiscal – a realização de despesas de representação ou com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou motociclos, no período de 1 janeiro de 2008 até à entrada em vigor da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro (6 de dezembro de 2008) – ocorre indubitavelmente antes da publicação da lei nova, não sendo possível entender que se está perante um facto jurídico-fiscal complexo de formação sucessiva.
A aplicação da nova lei a este facto ocorrido anteriormente à sua aprovação envolve, pois, uma retroatividade autêntica.
O que releva, face aos princípios constitucionais enunciados, não é o momento de liquidação de um imposto, mas sim o momento em que ocorre o ato que determina o pagamento desse imposto. É esse ato que vai dar origem à constituição de uma obrigação tributária, pelo que é nessa altura, em obediência ao princípio da legalidade, na vertente fundamentada pelo princípio da proteção da confiança, que se exige, como medida preventiva, que já se encontre em vigor a lei que prevê a criação ou o agravamento desse imposto, de modo a que o cidadão possa equacionar as consequências fiscais do seu comportamento.
Uma vez que a alteração efetuada ao artigo 83.º, n.º 3, do CIRC, através da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, veio aumentar a taxa de tributação autónoma aplicável a despesas de representação e com viaturas, agravando a situação dos contribuintes abrangidos, estava-lhe vedada uma eficácia retroativa.
Contudo, como vimos, embora a referida Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, tenha entrado em vigor em 6 de dezembro de 2008, o seu artigo 5.º, n.º 1, determinou que tal alteração produzia efeitos a partir de 1 de janeiro de 2008.
Ora, tendo já ocorrido o facto que deu origem à obrigação tributária posteriormente agravada por lei nova, as razões que presidiram à consagração da regra de proibição da retroatividade neste domínio estão integralmente presentes, uma vez que importa prevenir o risco abstrato de que a lei publicada com retroação de efeitos provoque agravos financeiros desrazoáveis, pela impossibilidade em que se encontravam os contribuintes afetados, vinculados a tais factos já ocorridos, de prever e prover quanto às suas consequências tributárias, determinadas por lei futura.
Assim, não pode a lei, sob pena de violação da proibição imposta no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, agravar o valor da taxa de tributação autónoma, relativamente a despesas já efetuadas aquando da sua entrada em vigor, pelo que, tendo a norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, determinado a retroação de efeitos a 1 de janeiro de 2008 da alteração do artigo 81.º, n.º 3, do CIRC, violou a referida proibição constitucional.”
Na verdade, embora a tributação de determinados encargos esteja formalmente inserida no Código do IRC e o respetivo montante seja liquidado no âmbito daquele imposto, tal tributação é uma imposição fiscal materialmente distinta da tributação em IRC. Enquanto aquela incide, excecionalmente, sobre a realização de determinadas despesas, a última incide sobre determinados rendimentos, funcionando apenas como elo entre elas a circunstância dessas despesas serem dedutíveis no apuramento destes rendimentos, visando-se com a criação daquele imposto reduzir a vantagem fiscal resultante da dedução desses custos. Mas a existência do imposto aqui em análise em nada influi no montante do IRC, atuando de forma perfeitamente autónoma relativamente a este, pelo que o seu funcionamento deve ser encarado somente segundo os elementos que o caracterizam.
Assim, esgotando-se o facto tributário que dá origem a esta tributação autónoma, no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação, embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha apenas a efetuar no fim de um determinado período tributário, a aplicação de um agravamento da respetiva taxa, relativamente a encargos ocorridos previamente à entrada em vigor da nova lei que prevê esse agravamento, corresponde a uma aplicação de lei nova a um facto tributário anterior, verificando-se uma situação de retroatividade autêntica proibida pelo artigo 103.º, n.º 3, da Constituição….»
(…).
Ora, tendo o acórdão recorrido sufragado a argumentação que acaba de ser exposta e não se vislumbrando novos fundamentos que imponham decisão de sentido diverso, deve a norma em causa ser julgada inconstitucional, mantendo-se, consequentemente, a decisão recorrida.
III. Decisão
10. Nos termos supra expostos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, a norma do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro, na parte em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alteração do artigo 81.º, n.º 3, alínea a) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, consagrada no artigo 1.º-A do aludido diploma legal.
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 5 de fevereiro de 2013. - José Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – Maria José Rangel de Mesquita – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Vítor Gomes – Pedro Machete – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria Lúcia Amaral (vencida, nos termos de declaração aposta ao Acórdão n.º 617/12) – Carlos Fernandes Cadilha (vencido pelas razões da declaração de voto anexa ao Acórdão n.º 617/12) – Ana Guerra Martins (vencida, no essencial pelas razões constantes do acórdão n.º 18/2011 e concordando com os argumentos aditados pelo Exmo. Senhor Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha no acórdão n.º 617/2012) – Joaquim de Sousa Ribeiro.