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Processo n.º 748/12
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 566/2012:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Conselho Superior de Magistratura, foi interposto recurso, ao abrigo das alíneas b) e f) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão proferido, em conferência, pela Secção do Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça, em 19 de setembro de 2012 (fls. 306 a 357), para que sejam apreciadas as seguintes inconstitucionalidades:
i) “O art. 59º, n.º 4 do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo DL 24/84, de 16/01 (mormente no segmento acrescentando sempre a referência aos preceitos legais respetivos e às penas aplicáveis), por omissão de audiência e defesa do arguido em processo disciplinar, devido ao novo enquadramento jurídico dos factos feito pela autoridade decidente e, consequentemente, devido à aplicação de uma pena mais grave do que as previstas na acusação (relembre-se, a acusação apontava apenas para as penas de multa e de transferência)” e “designadamente a interpretação no sentido de que o direito de audiência é garantido com a notificação do relatório de inspeção”;
ii) “O artigo 131.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, interpretado conjugadamente com o art. 48º, nº 3 do novo Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, aprovado pela Lei n.º 58/2008, de 9 de setembro, (…) quando estes são interpretados no sentido de que, face ao que consta do art. 117.º, n.º 1 do EMJ, o legislador terá querido excluir dessa aplicação subsidiária o concreto conteúdo da acusação em processo disciplinar, por inexistência de omissão legislativa que tenha de ser integrada — cfr. designadamente os arts. 22.º e ss. das alegações de recurso interposto da decisão punitiva do CSM para o Supremo Tribunal de Justiça”;
iii) “O art. 117.º, n.º 1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais quando este, nomeadamente no seu segmento “indicando os preceitos legais no caso plicáveis”, é interpretado e integrado, concretamente, com um sentido (restritivo), segundo o qual a norma não implica ou escusa que, na acusação, se faça referência ou se dê a conhecer ao arguido as penas que lhe são aplicáveis, sobretudo quando estão em causa penas de natureza expulsiva”;
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo”, proferido a 18 de outubro de 2012 (cfr. fls. 374), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que sempre seria forçoso apreciar o preenchimento de todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, n.º 2, da LTC.
Sempre que o Relator constate que não foram preenchidos os pressupostos de interposição de recurso, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. Desde logo, julga-se legalmente inadmissível o recurso interposto ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, na medida em que a decisão recorrida não aplica “norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo”. Bem entendido, a ilegalidade a que aquele preceito legal se reporta consiste numa “ilegalidade em sentido próprio”, que decorre de uma relação de contradição entre uma norma constante de uma lei ordinária e uma lei de valor reforçado (artigo 112º, n.º 3, da CRP). Ora, nenhuma das normas jurídicas que constituem objeto do presente recurso colide com outras normas constantes de uma lei de valor reforçado, pelo que se impõe a rejeição liminar do recurso, ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da LTC.
4. Quanto às questões suscitadas ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, há que notar que tais recursos de constitucionalidade pressupõem e exigem que os recorrentes tenham suscitado, de modo processualmente adequado e perante os tribunais recorridos, as questões de inconstitucionalidade normativa que pretendem depois ver apreciadas pelo Tribunal Constitucional (cfr. artigo 72º, n.º 2, da LT). Tal decorre da própria caraterização deste Tribunal como mero órgão de recurso, que apenas conhece de questões já discutidas e apreciadas pelos tribunais comuns.
Sucede, porém, que a recorrente não logrou suscitar as três questões de inconstitucionalidade normativa que pretende ver agora apreciadas, de modo tal que o tribunal recorrido delas fosse obrigado a conhecer. Com efeito, apenas se pode extrair das conclusões das suas alegações de recurso as seguintes referências a questões com relevância jurídico-constitucional:
«12) Nesta medida, e para que só valham condutas aceitáveis, dúvidas inexistem em como o ato recorrido enferma de vício de violação de lei agravada por afronta ao direito de defesa (…), acolhido que está no art. 32.°, n. 10.° da CRP; nos arts. 110.°, n.º 2 e 117.°, n.°1 do EMJ, com os efeitos referidos no art. 124.°, n.°1i do Estatuto e 37.°, n.° 1 do ED.
(…)
18) Motivos pelos quais padece o ato punitivo de vício de violação de lei por afronta ao direito de defesa constitucional e legalmente consagrado - cfr. arts. 32.° da CRP, 110.°, n.º 2 e 117.°, n.º 1 do EMJ e 370, n.º 1 do ED e, na jurisprudência, Acórdão do STA de 83.11 .03; Acórdão do STA de 94.03.22., proferido no processo n.º 29270; Acórdão do STA de 22-06-2010, proferido no processo n.º 01091/08; Acórdão do TCA-N de 04-02-2010, proferido no processo n.° 00575/97 e ainda Acórdãos elencados por Manuel Leal-Henriques, Procedimento Disciplinar, Lisboa, 1997, 3a ed., Editora Rei dos Livros, 2002, p. 261.» (fls. 250 e 252)
Daqui decorre que, caso se fosse rigoroso na análise das suas alegações, nem sequer seria possível deslindar qualquer questão de inconstitucionalidade (verdadeiramente) normativa. Bem pelo contrário, a recorrente limita-se a convocar vários preceitos constitucionais, com vista a sustentar a sua tese. Mas, no fundo, a recorrente apenas ataca a própria decisão disciplinar sancionatória, mas não propriamente a inconstitucionalidade de uma específica norma jurídica.
Contudo, mesmo que assim seja, certo é que a decisão recorrida – num inegável esforço interpretativo e de promoção do acesso à tutela jurisdicional efetiva – acabou por conseguir discernir, de entre essas alegações genéricas e pouco concretizadas, uma única questão de inconstitucionalidade normativa: a que se centra na inconstitucionalidade do artigo 117º, n.º 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ). Assim sendo, se bem que nem tal lhe fosse exigido, certo é que a decisão recorrida apenas apreciou essa questão de inconstitucionalidade normativa (cfr. fls. 331 a 338). De onde decorre a impossibilidade legal de conhecimento acerca das questões relativas à inconstitucionalidade das interpretações normativas extraídas do artigo 59º, n.º 4, do Estatuto Disciplinar dos Funcionários Públicos (na redação aprovada pelo Decreto-Lei n.º 28/84, de 16 de janeiro) e da conjugação entre os artigos 131º do EMJ e do artigo 48º, n.º 4, do Estatuto Disciplinar dos Funcionários Públicos (na redação aprovada pela Lei n.º 58/2008, de 09 de setembro).
5. Por último, mesmo quanto à alegada inconstitucionalidade da interpretação normativa extraída do artigo 117º do EMJ, segundo a qual “não implica ou escusa que, na acusação, se faça referência ou se dê a conhecer ao arguido as penas que lhe são aplicáveis, sobretudo quando estão em causa penas de natureza expulsiva”, certo é que a decisão recorrida não aplicou efetivamente essa interpretação. Pelo contrário, a decisão recorrida não se limitou a adotar aquela (redutora) interpretação, antes tendo acrescentado que a expressa identificação da sanção disciplinar potencialmente aplicável ficaria remetida para o relatório final, a elaborar pelo instrutor do procedimento disciplinar, nos termos do artigo 122º do EMJ. Desse mesmo relatório final – que foi, aliás, transcrito pela decisão recorrida – consta expressamente que:
“Há um mínimo que se espera de quem abraçou a carreira da magistratura judicial. Ora, com todo o respeito, a Exmª Juíza não revela, infelizmente, condições para atingir esse mínimo. A sua manutenção em funções continuaria a significar consequências nocivas para a administração da Justiça e para a confiança que os cidadãos devem nela depositar” (fls. 338)
Além disso, a decisão recorrida é clara, quando afirma que:
“Ora, o direito de audiência foi garantido pela notificação do relatório de inspeção, e do modo subsequente como sobre ele, entendeu exercer o seu direito de defesa, sendo que constando [d]o mesmo os factos integrantes da acusação, a proposta nele formulada não vinculada a Entidade decisória, que perante a proposta a acolhe ou não.
O limite sancionatório do CSM, está nos factos a que tem de ater-se, e na fundamentação da decisão, como aliás decorre do artº 124º do CPA, pois que a valoração desses factos releva de discricionariedade técnica, que sendo discricionária não é arbitrária, mas vinculada a essa factualidade a valoração normativa feita da mesma.” (fls. 334)
A decisão recorrida não afirma, pois, em momento algum, que a recorrente pudesse ficar privada de conhecer e reagir face à sanção potencialmente aplicável. Ao invés, considerou que a inclusão, em sede de acusação, dos factos que justificavam a aplicação dos preceitos legais devidos já permitia à recorrente antecipar e defender-se, de modo justo e efetivo. Como tal, considerou que a possibilidade de antevisão da sanção disciplinar de aposentação já podia ser extraída dos factos constantes da acusação.
Sucede porém que, em sede de requerimento de interposição de recurso, por sua exclusiva opção, a recorrente fixou como objeto do presente recurso uma interpretação normativa demasiado redutora do artigo 117º do EMJ, quando comparada com aquela efetivamente aplicada pela decisão recorrida, pois procurou abstrair-se destes elementos interpretativos adicionais, agora mesmo enunciados. Visto que o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer da inconstitucionalidade de normas jurídicas (ou de interpretações normativas) que tenham sido efetivamente aplicadas pelos tribunais recorridos – conforme decorre do artigo 79º-C da LTC –, impõe-se, assim, concluir pela impossibilidade de conhecimento do objeto do presente recurso, também quanto à parcela que diz respeito ao artigo 117º do EMJ.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro, decide-se não conhecer do objeto do recurso.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.»
2. Inconformada com a decisão proferida, a recorrente veio deduzir a seguinte reclamação, cujos termos ora se resumem:
«II - O objeto do recurso
Fundamentalmente, suscitou-se no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão disciplinar expulsiva e, ademais, nas alegações produzidas no âmbito deste processo, que os arts. 110.°, n.º 2 (mormente in fine) e 117.°, n.º 1, 124.°, n.º 1, 131.° do EMJ (conjugados com o art. 48.°, n.º 3 do novo ED 2008), deviam ser interpretados e aplicados de acordo com os arts. 13.°, 20.° n.º 4, 32.°, n.º 1, 2 e 10, 269.°, n.º 3 da Constituição da República, impondo-se assim, ao contrário do que sucedeu, como se disse no requerimento de interposição de recurso, que a interpretação levada a efeito fosse no sentido de que a arguida deveria ter tido conhecimento da possibilidade de poder sofrer uma pena de natureza expulsiva, por forma a poder defender-se adequadamente de tal acusação.
Não interessa a este passo compreender as dificuldades de quem, em prazo certo e preclusivo, sustenta uma determinada dimensão jurídica da questão que pretende ver conhecida, face a 'todo o tempo necessário' que, quem decide, tem para fazer o mesmo.
O que interessa dizer é que não conseguimos aceitar que, no caso vertente, se diga ou se dê a entender (porém claramente) que o Supremo Tribunal de Justiça como que a muito a custo (fala-se em 'inegável esforço interpretativo') descortinou uma inconstitucionalidade - a da interpretação e aplicação do art. 117.º do EMJ ao caso de que cuidamos.
Abreviando razões, o que se alega é que, a partir do momento em que o Supremo Tribunal de Justiça (e bem, porque aferiu a justiça que a situação de facto merece com referência à lei constitucional, que se entendia violada por interpretação distinta da que sustentamos ao longo do processo) se pronunciou específica, detalhada e profusamente sobre a constitucionalidade daquele preceito, rebatendo (de forma desajustada, é certo) as razões de inconstitucionalidade, que claramente percebeu, aduzidas pela requerente, é evidente que não se pode deixar de considerar que a questão de constitucionalidade foi bem suscitada e, assim, conhecida, exigindo tal, consequentemente, a pronúncia do Tribunal Constitucional.
Temos assim que, entre o mais, se o Supremo Tribunal de Justiça reduziu as questões de constitucionalidade à do art. 117.º do EM], tal é porém suficiente para afrontar a questão essencial e essa é a de que importa perceber se, do ponto de vista da devida interpretação dos normativos constitucionais aludidos, basta ou não (face até à factologia pressuposta, em que era impossível adivinhar que seria decidida a inaptidão da requerente para exercer a função jurisdicional) a mera referência a normas e aos deveres violados, tal como vem dito no art. 117.0 do EM], para se entender que o direito de audição e defesa foi assegurado.
(…)
Isto tudo para referir que se aceita centrar a discussão (como nos parece que faz o Supremo Tribunal de Justiça) na questão da legalidade constitucional do estatuído no art. 117.° do EM].
III - A decisão reclamada
Salvo o devido respeito, a decisão reclamada confunde com toda a evidência, num prius interpretativo profundamente restritivo dos pressupostos do art. 70.°, n.º 1, ali. b) da LTC, que já demos nota, questões jurídicas com simples argumentos.
(…)
A questão jurídica que se coloca aqui, nesta sede, é a seguinte:
Aplicou ou não o Supremo Tribunal de Justiça '( ... ) norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo' - cfr. art. 70.° n.º 1, ali. b) do LTC.
Ora, estando em causa a interpretação de uma norma (rectius, a sua inconstitucionalidade), o que está em causa (a questão jurídica) é saber se a interpretação levada a efeito pelo Supremo Tribunal conduziu (contra o sentido constitucional da norma) à aplicação da norma em apreço.
Nada mais.
Não se discutem ou podem validamente discutir as razões ou argumentos (por mais absurdos ou desfasados que sejam) que conduziram o Tribunal a aplicar a norma.
Note-se bem:
Se se sustenta que deve ser feita uma determinada interpretação de uma certa norma e o Tribunal a aplica com fundamentos ostensivamente errados, isso não conduz ou pode conduzir a que o Tribunal Constitucional, salvo o merecido respeito, tudo confundindo, venha dizer que não pode conhecer da questão, na medida em que, assim sendo, do ponto de vista prático e efetivo, estaria descoberta a forma para nunca conhecer do que quer que fosse -impedindo-se assim a concretização do princípio da tutela jurisdicional efetiva.
Bastava, pois e assim, que o Tribunal aplicasse a norma e justificasse a sua aplicação em argumentos erróneos e desfasados, ignorando, ou mesmo fugindo, ao cerne da questão.
Diz-se na decisão reclamada (primeira ratio decidendi) que a requerente havia sustentado quanto à inconstitucionalidade da interpretação normativa extraída do art. 117.° do EMJ que tal 'não implica ou escusa que, na acusação, se faça referência ou se dê a conhecer ao arguido as penas que lhe são aplicáveis, sobretudo quando estão em causa penas de natureza expulsiva', adiantando-se a este respeito que a decisão recorrida não se limitou a adotar esta (redutora) interpretação, acrescentando que a expressa identificação ficaria remetida para o relatório final a que se refere o art. 122.° do EM].
Com rigor, o que se disse a este respeito e in totum no requerimento foi o seguinte:
' O art. 117.°, n.º 1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais, quando este, nomeadamente no seu segmento 'indicando os preceitos legais no caso aplicáveis', é interpretado e integrado, concretamente, com um sentido (restritivo), segundo o qual a norma não implica ou escusa que, na acusação, se faça referência ou se dê a conhecer ao arguido as penas que lhe são aplicáveis, sobretudo quando estão em causa penas de natureza expulsiva.'
Vejamos:
Quase sem palavras para enfrentar o erro de julgamento da decisão reclamada, temos assim que é evidente que o que está em causa é o facto de, não se referindo na acusação as consequências fácticas, a pena a aplicar, o arguido não sabe do que se está a defender, rectius, não se pode defender do que não lhe é dito ou do que não sabe.
O que é que, em nome da razoabilidade se pergunta, tem a ver com isto a circunstância de a referência à pena ficar reservada para o relatório final?
Salvo o devido respeito, nada!
A não ser confirmar que a interpretação é desconforme com a Constituição e com o direito de audiência e de defesa com evidência plasmado nos normativos constitucionais supra referidos.
Isto é:
O facto de a pena vir inovatoriamente (só e apenas) no relatório final é perfeitamente irrelevante, pois este relatório final não é notificado à arguida, só o sendo a decisão final que o contém, como aliás até se disse no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal.
O que é que se está aqui a sancionar à reclamante?
- A circunstância de não ter dito o manifesto, o palmar, o evidente, de não ter tido a capacidade de prever o rigorismo manifestamente contraditório com que se identificou a questão constitucional que se pretende ver conhecida?
A questão toda (a questão e não a argumentação, pois) está no facto de ao sustentar-se que não é forçoso referir-se as penas possíveis de aplicar na acusação, se estar a interpretar o art. 117.º do EM] em desconformidade com os preceitos constitucionais invocados, interpretação essa que, por isso, implica que a reclamante (ou outrem) não se pudesse ter defendido eficazmente e com consciência da desgraça que lhe poderia ter sucedido (como sucedeu).
Note-se bem:
É inadmissível (à luz de qualquer cogitado aceitável) instituir, assim em perfeita irrelevância, em razão do não conhecimento da questão constitucional o facto que se pretende censurar constitucionalmente.
Ou seja: que a referência à sanção só é mesmo conhecida na decisão final, pois esse é que é o problema, essa é que é a errada interpretação da lei por afronta ao direito de audiência e defesa, constitucionalmente consagrado, é disso mesmo que se queixa a reclamante.
(…)
Nesta linha, desenvolve a decisão reclamada outra razão para não conhecer da questão constitucional em causa.
E essa é que, resultando tal de uma citação da decisão punitiva tirada de páginas, de dizeres e argumentos, o direito de audiência foi assegurado pela notificação do relatório da inspeção e dos factos nele contidos, sendo que a proposta não vincula a entidade decisória, que tem poder discricionário para decidir.
Conclui, assim, a decisão reclamada, a um primeiro passo, que o Supremo Tribunal não afirma que a reclamante ficou privada de reagir à sanção.
Ora, o que é que isto importa?
Salvo o devido respeito, nada.
Esta é, pura e simplesmente, uma conclusão negativa do que positivamente se pretende ver conhecido por este Tribunal, ou seja, o facto de que é forçoso que, na acusação, se refiram as penas para que os arguidos se possam defender eficazmente.
No entanto, vemos aqui uma dimensão positiva na decisão reclamada, na medida em que nada diz sobre a discricionariedade, que nada tem radical, ostensiva e evidentemente a ver com o que se discute (sempre ressalvado o devido respeito, é o facto de o Tribunal que julgou a questão não ser da área e não interiorizar eventualmente o cerne do conceito, pois, como todos sabemos, o facto de o poder ser discricionário só implica agravadamente que o direito de audição deva ser o mais amplamente possível assegurado).
Continua a decisão, em erro de julgamento, adiantando que o Supremo Tribunal entendeu que bastava a inclusão dos factos na acusação para que o direito de audição se tenha que dar por verificado de acordo com a parametricidade constitucional, podendo assim a reclamante antever a possibilidade da sanção que lhe veio a ser aplicada, interpretação esta que, no entender da decisão reclamada, não teria sido afrontada no recurso para o Tribunal Constitucional 'pertinentemente'.
Vejamos:
Em primeiro lugar, temos que, mesmo reduzindo a questão à constitucionalidade da interpretação do art. 117.° do EM], este argumento não tem autonomia e antes fica consumido (ou prejudicado) pela necessidade (já sobejamente equacionada) de, na acusação, se dever apontar a pena a aplicar, que, assim mesmo, deve constar obrigatoriamente da acusação.
Essa é, como repetimos, a questão a conhecer, ou seja, se, de acordo com os parâmetros constitucionais, é ou não necessário interpretar o art. 117.° do EM] como devendo conter a obrigação de a acusação referir (direta ou indiretamente por referência às normas que as preveem) a possível pena a aplicar ao arguido.
O que se passa, pois, é que o cerne da questão não é, nada tem a ver, com o argumento do Supremo Tribunal de Justiça.
O que está em causa não são os factos.
O que está em causa é a pena, é a consequência jurídica da factologia pressuposta.
(…)» (fls. 392 a 401).
3. Notificado para o efeito, o recorrido deixou esgotar o prazo de resposta, sem que viesse aos autos apresentar qualquer requerimento.
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A título preliminar, importa fixar os termos da presente reclamação. A recorrente conforma-se com a decisão de não conhecimento do objeto do recurso, quer quanto ao recurso interposto ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, quer quanto às questões normativas emergentes do artigo 59º, n.º 4, do Estatuto Disciplinar dos Funcionários Públicos (na redação aprovada pelo Decreto-Lei n.º 28/84, de 16 de janeiro) e da conjugação entre os artigos 131º do EMJ e do artigo 48º, n.º 4, do Estatuto Disciplinar dos Funcionários Públicos (na redação aprovada pela Lei n.º 58/2008, de 09 de setembro).
Por conseguinte, o presente acórdão incidirá, exclusivamente, sobre a possibilidade de conhecimento da interpretação normativa extraída do artigo 117º do EMJ.
4. Em síntese, a recorrente aparenta sustentar uma cisão entre o preceito legal que consagra determinado comando normativo e a concreta interpretação que dele venha a ser extraída por um tribunal. Ou seja, no seu entendimento, o objeto dos recursos de constitucionalidade resumir-se-iam aos próprios preceitos legais consagradores de normas jurídicas, mas não já à concreta dimensão normativa que deles tivesse sido concretamente extraída pelas decisões alvo de recurso para o Tribunal Constitucional. No caso dos presentes autos, considera a recorrente que a circunstância de a decisão recorrida ter apreciado a alegada inconstitucionalidade do artigo 117º do EMJ bastaria para que fosse possível proceder-se ao conhecimento do objeto do presente recurso, na medida em que a questão jurídica seria a mesma, ainda que sujeita a uma distinta fundamentação, por parte do Supremo Tribunal de Justiça.
Porém, assim não é. Decorre inequivocamente do artigo 79º-C da LTC – e da jurisprudência há muito consolidada neste Tribunal – que só é possível conhecer da “interpretação normativa” que tenha sido efetivamente aplicada pelo tribunal recorrido. Não é suficiente que o recorrente tenha indicado o preceito legal aplicado pela decisão recorrida, antes sendo imprescindível que o mesmo logre identificar qual a específica fundamentação que permitiu configurar o sentido e a amplitude da interpretação normativa dele extraída. Ora, a própria recorrente admite que a interpretação (devidamente fundamentada) acolhida na decisão recorrida não corresponde àquela por si defendida e àquela concreta interpretação que ela fixou, de modo livre, como objeto do presente recurso.
Como já amplamente demonstrado pela decisão ora reclamada, a decisão recorrida adotou uma interpretação normativa do artigo 117º do EMJ mais ampla do que a fixada pela recorrente, considerando que o direito de audiência estaria garantido pela notificação do relatório de inspeção e que a identificação da pena aplicável constava do relatório final.
Em consequência, mais não resta do que confirmar o juízo da decisão ora reclamada, no sentido da inexistência de identidade entre a interpretação normativa aplicada pelo tribunal recorrido e aquela que consta como objeto do presente recurso.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Fixam-se as custas devidas pela recorrente em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 31 de janeiro de 2013. – Ana Maria Guerra Martins – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro