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Processo n.º 41/13
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, A. reclamou, em 9 de outubro de 2012 (fls. 1 a 3), ao abrigo do n.º 4 do artigo 76º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho proferido pelo Juiz-Relator junto do Tribunal da Relação do Porto, em 27 de junho de 2012 (fls. 61), que rejeitou recurso de constitucionalidade por si interposto, em 17 de maio de 2012 (fls. 59), por falta de esgotamento dos recursos ordinários, conforme determinado pelo artigo 70º, n.º 2, da LTC.
O referido recurso de constitucionalidade foi interposto da decisão sumária proferida pelo Relator junto daquele Tribunal, em 11 de janeiro de 2012 (fls. 8 a 28), que foi posteriormente confirmada por acórdão proferido pelo mesmo Tribunal, em 02 de maio de 2012 (fls. 38 a 58), que indeferiu reclamação deduzida contra aquela primeira decisão. Entretanto, em 17 de maio de 2012, o recorrente arguiu a nulidade deste último acórdão (fls. 59) e interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, em 22 de maio de 2012 (fls. 74 a 93-verso).
2. A reclamação foi feita nos seguintes termos:
«Através do requerimento de fls. 598 o arguido interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional.
A norma cuja inconstitucionalidade o arguido pretende ver apreciada é o artigo 412° nº 3 do Código de Processo Penal, quando interpretada (como resultou do acórdão recorrido) no sentido em que o arguido, para impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, terá de construir uma outra versão dos factos, não se bastando com a criação da dúvida razoável, por violação do disposto nos artigos 2°, 9° alínea b), 32° nº 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, e do princípio “in dúbio pró réu”.
Por despacho agora notificado ao arguido, foi entendido que “o recurso para o T. Constitucional nos termos do n°. 2 do artº 70° da Lei n°. 28/82 de 13/11, só é possível quando já não houver possibilidade de haver mais do recurso ordinário, o que obviamente, não é o caso, pois o arguido está a recorrer para o S.T.J., razão pela qual o recurso é inadmissível”.
No entanto, o arguido não se pode conformar com tal entendimento, como se explicará.
O n.º 2 do artigo 70º da Lei n.° 28/82 de 13/11 estabelece que “Os recursos previstos nas alíneas b) e f) do número anterior apenas cabem de decisões que não admitam recurso ordinário, por a lei o não prever ou por já haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam, salvo os destinados a uniformização de jurisprudência.
No caso em apreço, foi, de facto, interposto recurso para o S.T.J., mas que não tem como objeto - pelo menos diretamente — a impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto (e nomeadamente a interpretação dada pelo Tribunal da Relação ao artigo 412° n° 3 do Código de Processo Penal (como resultou do acórdão recorrido) no sentido em que o arguido, para impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, terá de construir uma outra versão dos factos, não se bastando com a criação da dúvida razoável), por estar já vedado o recurso nessa parte.
Por isso, sendo nessa parte a decisão proferida pelo Tribunal da Relação irrecorrível, deverá o recurso interposto para esse Tribunal ser admitido.» (fls. 633 a 636)
3. Em sede de vista, ao abrigo do n.º 2 do artigo 77º da LTC, perante a referência a uma anterior arguição de nulidade e interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça – emergente do despacho de rejeição do recurso de constitucionalidade (fls. 61), o Procurador-Geral Adjunto a exercer funções neste Tribunal promoveu que fossem solicitados ao tribunal recorrido as referidas peças processuais.
Após análise dos documentos supra referidos, entretanto juntos aos autos, o Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se nos seguintes termos:
«1. Por Decisão Sumária proferida em 11 de janeiro de 2012, do Senhor Desembargador Relator na Relação do Porto, julgou-se manifestamente improcedente o recurso que A. interpusera da decisão que, em 1.ª instância, o havia condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 220 dias de multa à taxa diária de 4€, num total de 880,00€ e ainda considerara parcialmente provado e procedente o pedido de indemnização civil.
2. Inconformado com essa decisão, o arguido reclamou para a conferência que, por acórdão de 2 de maio de 2012, a manteve.
3. Desse acórdão foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional.
4. Esse recurso não foi admitido pelo douto despacho cuja cópia está junta a fls. 60.
5. Segundo consta desse mesmo despacho e foi posteriormente comprovado pelos elementos solicitados e enviados, além de ter recorrido para o Tribunal Constitucional do acórdão da conferência, o recorrente, em 17 de maio de 2012, arguiu a nulidade do mesmo e, em 22 de maio de 2012, interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
6. Tendo o recurso de constitucionalidade sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, um dos requisitos de admissibilidade consiste em a decisão não ser passível de recurso ordinário.
7. Ora, como se viu anteriormente, o próprio recorrente, do acórdão da conferência, além de recorrer para o Tribunal Constitucional, arguiu a sua nulidade e recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça pelo que, quando interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, a decisão não se encontrava consolidada na ordem dos tribunais judiciais.
8. Poderíamos ainda acrescentar que a interpretação normativa cuja inconstitucionalidade o recorrente suscitou e identificou no requerimento recursório, não foi a aplicada no acórdão recorrido.
9. Na verdade, nessa decisão, transcrevendo-se a decisão sumária, após se tecerem considerações genéricas e teóricas sobre a competência da Relação em matéria de recursos em que seja impugnada a matéria de facto, apreciou-se, com alguma minúcia, a concreta situação dos autos, dizendo-se a final (fls. 56):
“A convicção do tribunal, assim sustentada, impor-se-ia a qualquer outra versão, ainda que igualmente plausível, porém o arguido não constrói uma outra versão, antes pretende afirmar a dúvida sobre os factos, dúvida que a certeza formada e sustentada na sentença, não permite”.
10. Ora, entendendo a Relação que não houve “dúvida razoável” (como refere o recorrente quando enuncia a questão de constitucionalidade), antes certeza – matéria esta não sindicável pelo Tribunal Constitucional -, mostrar-se-ia processualmente inútil conhecer da questão.
11. Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
4. Face à invocação de um novo fundamento de não conhecimento do objeto do recurso, a Relatora convidou o reclamante, conforme determinado pelos artigo 703º, n.º 2, e 704º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC), aplicável “ex vi” artigo 69º da LTC, por despacho proferido em 05 de março de 2013 (fls. 98), para que viesse aos autos, querendo, pronunciar-se sobre o mesmo. Na sequência desse convite, o reclamante pronunciou-se, em 20 de março de 2013 (fls. 100 a 103) nos seguintes termos:
«1. Os presentes autos de reclamação resultam do despacho do Tribunal da Relação do Porto que considerou não admissível o recurso interpôs-to para os presentes autos, por ser ainda possível o recurso ordinário da decisão proferida por aquela Relação.
2. Por isso, salvo melhor opinião, não será nesta sede que a questão agora levantada pelo Digno Magistrado do Ministério Público deverá ser conhecida, já que o que está em causa é se, tendo o arguido interposto recurso para o S.T.J. da decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, poderá desde já recorrer também para o Tribunal Constitucional por a Lei não prever recurso ordinário sobre matéria de facto.
3. No entanto, e quanto ao demais explanado na referida promoção do Digno Magistrado do Ministério Público, aquilo que a decisão recorrida refere é que o arguido não constrói uma outra versão dos factos, pretendendo antes criar a dúvida sobre os mesmos.
4. Daqui se retira que para a decisão recorrida, o arguido - para atacar a convicção da M. Juiz inserta na decisão proferida pelo Tribunal de la. Instância - teria de construir uma outra versão, não bastando atacar a forma como aquele Tribunal chegou a tal conclusão, nomeadamente criando a dúvida razoável.
5. Ora, como doutamente explica o Exmo. Conselheiro Alves Velho (ac. do STJ de 14/02/2012, proc. 6823/09.3TBBRG.G1.S1, in www.dgsi.pt), no uso dos poderes conferidos pelo art. 712 do CPC, a Relação deve formar a sua convicção, na plena aplicação e uso do princípio da livre apreciação das provas, nos mesmos termos em que o deve fazer a 1.ª a Instância, sem que se lhe imponha qualquer limitação relacionada com a convicção que serviu de base à decisão impugnada, em função do princípio da imediação da prova.
6. É que, tal como se refere no douto acórdão do mesmo STJ, de 12/09/2006, pela pena do mesmo distinto relator, e naquele citado, cabe à Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, procedendo à audição ou leitura dos depoimentos indicados pelas partes, dado o efetivo 2° grau de jurisdição sobre a apreciação do conteúdo da prova produzida. Por isso, acentua, a prova há de ser sempre apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inscritas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, tudo se resolvendo, afinal, na formação de juízos e raciocínios que, tendo subjacentes as ditas regras, conduzem a determinadas convicções refletidas na decisão dos pontos de facto sob avaliação. Deve ela ainda ser considerada globalmente, conjugando todos os elementos disponíveis e atendíveis (art. 515 CPC).
7. E ainda: Finalmente, no âmbito dessa valoração, das provas no seu conjunto, poderão os julgadores lançar mão de presunções naturais, de facto ou judiciais -art. 351 C. Civil.
8. Para, deste modo, concluir, como se transcreve no sumário acima citado: Numa palavra, a Relação deverá formar e fazer refletir na decisão a sua própria convicção, na plena aplicação e uso do princípio da livre apreciação das provas, nos mesmos termos em que o deve fazer a 1.ª Instância, sem que se lhe imponha qualquer limitação, relacionada com a convicção que serviu de base à decisão impugnada, em função do princípio da imediação da prova.
9. Nesta lapidar formulação, referem-se os princípios a que deve obedecer a atuação do Tribunal da Relação, no uso dos seus poderes de sindicar sem outras peias a matéria de facto de ajuizada pela 1.ª Instância, de modo a concretizar o efetivo 2° grau de jurisdição que a lei assegura.
9. Ora, no caso em apreço, o Tribunal da Relação do Porto limitou-se a aderir aos fundamentos da sentença recorrida e, nessa sequência, vem a entender que para o arguido por em causa aquela convicção do Tribunal de 1ª Instância teria de construir uma outra versão dos factos.
10. Por isso, deverá a reclamação ser atendida.»
Posto isto, cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
5. Em primeiro lugar, sufraga-se integralmente o entendimento vertido no despacho reclamado, segundo o qual o reclamante interpôs recurso de constitucionalidade num momento processual em que ainda não tinha ocorrido o esgotamento integral dos meios ordinários de impugnação da decisão recorrida. Com efeito, nos termos do n.º 2 do artigo 70º da LTC, exige-se que o recurso de constitucionalidade seja interposto de uma decisão que não admita recurso ordinário. Ora, o próprio reclamante admitiu, implicitamente, que, à data da sua interposição, ainda subsistiam meios ordinários para impugnação daquela decisão, visto que não só arguiu a nulidade da decisão recorrida, como, mais tarde interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão que pretendia ver agora sindicada pelo Tribunal Constitucional.
O argumento segundo o qual o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça “não tem como objeto – pelo menos diretamente – a impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto (e nomeadamente a interpretação dada pelo Tribunal da Relação ao artigo 412° n.° 3 do Código de Processo Penal” não procede. Com efeito, a circunstância de a lei processual constitucional exigir o esgotamento dos recursos ordinários, antes da interposição de recurso de constitucionalidade [no caso de recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC], não visa, do modo exclusivo, garantir que a decisão recorrida expressa a última palavra de um tribunal comum acerca de determinada questão de inconstitucionalidade normativa, mas antes visa que o juízo acerca da constitucionalidade, a proferir pelo Tribunal Constitucional, não venha a ser subsequentemente prejudicado – e despojado dos seus efeitos – por uma decisão posterior, tomada por um outro tribunal comum de recurso. É que, veja-se, se o tribunal superior viesse a negar provimento ao recurso ordinário, mesmo que este versasse sobre outro fundamento de impugnação da decisão recorrida, o eventual juízo de inconstitucionalidade normativa, a proferir pelo Tribunal Constitucional, ver-se-ia desprovido de qualquer eficácia intraprocessual, pois que sempre subsistiria um fundamento alternativo de não provimento do pedido formulado pelo recorrente.
Em suma, mesmo que se admitisse que o recurso ordinário interposto para o Supremo Tribunal de Justiça não versaria, direta e exclusivamente, sobre o problema de inconstitucionalidade normativa que constitui objeto do recurso de constitucionalidade interposto, certo é que eventual decisão desfavorável ao ora reclamante sempre prejudicaria o “interesse processual” de um (hipotético) juízo de inconstitucionalidade anterior à sua decisão. É precisamente por isso que o n.º 2 do artigo 70º da LTC exige o prévio esgotamento dos recursos ordinários. Não tendo sido assegurado esse esgotamento, mais não resta que confirmar a decisão reclamada de não conhecimento do objeto do recurso.
Em segundo lugar, adere-se ainda à constatação do Ministério Público, segundo o qual se verifica igualmente uma ausência de identidade entre a dimensão normativa escolhida pelo reclamante como objeto do recurso interposto e aquela interpretação normativa efetivamente acolhida pelo tribunal recorrido. Em boa verdade, a decisão recorrida nunca interpretou o n.º 3 do artigo 412º do CPP no sentido de que “o arguido, para impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, terá de construir uma outra versão dos factos, não se bastando com a criação da dúvida razoável”. Pelo contrário, a decisão recorrida expressamente afirma que existe uma certeza processual acerca da prática dos factos pelos quais o reclamante foi condenado, não se podendo concluir que a mesma tenha aceite que aquele sequer tenha criado uma dúvida razoável acerca dos factos dado como provados.
Evidentemente, não cabe a este Tribunal pronunciar-se sobre o concreto juízo subsuntivo dos factos dados como provados ao ilícito típico penalmente relevante, mas tão só constatar que a interpretação acolhida pelo tribunal recorrido não corresponde, de modo algum, àquela que o recorrido elegeu como objeto do presente recurso. Tanto basta para que se conclua pela ausência de identidade normativa entre ambas, razão que justificaria, igualmente, a impossibilidade de conhecimento do objeto do recurso, por força do artigo 79º-C da LTC.
III – DECISÃO
Nestes termos, pelos fundamentos supra expostos e ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 77º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 10 de abril de 2013. – Ana Maria Guerra Martins – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.