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Proc. nº 336/01 TC – 1ª Secção Rel: Consº Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1 – M... e H..., com os sinais dos autos, deduziram embargos de executado à execução ordinária, para pagamento de quantia certa, que a Caixa de Crédito... instaurou contra “G... Lda” e outros, entre os quais os embargantes.
Em 1ª instância, os embargos foram julgados procedentes, mas a Relação de Évora, em recurso interposto pela embargada, revogou aquela decisão, o que veio a ser confirmado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls.
85 e segs.
É deste último aresto que vem interposto, pelos referidos embargantes, o presente recurso para o Tribunal Constitucional, pretendendo os recorrentes a apreciação da constitucionalidade da norma ínsita no artigo 46º alínea c) do Código de Processo Civil, na redacção foi dada pelo Decreto-Lei nº
329-A/95, de 12 de Dezembro, norma que dizem violar o disposto nos artigos 2º e
18º nº 3 da Constituição da República Portuguesa.
Nas suas alegações, formulam a seguinte conclusão:
“Com a entrada em vigor do DL 329-A/95, introduzindo um novo regime de reconhecimento de força executiva aos documentos particulares em lide já decidida, ainda que sem trânsito, fazendo com que a norma do artº 51º do C.P.Civil que transitou para o artº 46º, a sua aplicação na circunstância haja violado a garantia que aos recorrentes confere o falado disposto no nº 3 do artº
18º da Constituição da República Portuguesa.”
Não houve contra-alegações.
Cumpre decidir.
2 – Resulta dos autos o seguinte:
- Na acção executiva instaurada em 1994 contra, entre outros, os ora recorrentes, foi dada à execução um documento designado “abertura de crédito em conta corrente caucionada”, datado de 25/10/89, em que figura como primeira outorgante a exequente Caixa de Crédito Agrícola, como segundo outorgante a sociedade “Giba Lda” e terceiros outorgantes quinze pessoas, entre as quais, os recorrentes.
- No que ao caso interessa, consta do referido documento que a primeira outorgante abriu a favor da segunda outorgante um crédito em conta corrente caucionada até 30.000.000$00, tendo os terceiros outorgantes ficado como fiadores e principais pagadores, responsabilizando-se, solidariamente com a
“Giba Lda”, pelo pontual cumprimento do contrato e renunciando desde logo ao benefício de excussão prévia.
- A assinatura dos recorrentes neste documento foi reconhecida notarialmente por semelhança em 26/10/89.
- Os embargos foram deduzidos pelos ora recorrentes em 24/11/94.
O acórdão recorrido que, como se disse, confirmou o acórdão da Relação de Évora revogatório da decisão de 1ª instância que julgara procedentes os embargos, teve como fundamento a norma do artigo 46º nº 3 do CPC para onde transitou a norma do artigo 51º do mesmo Código, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, entrado em vigor em 1/1/97, norma essa que entendeu imediatamente aplicável ao caso dos autos.
3 – À data em que a execução foi instaurada e os embargos deduzidos dispunha o artigo 51º nºs 1 e 2 do CPC que, nos escritos particulares, com excepção dos extractos de factura, letras, livranças e cheques, a assinatura do devedor deveria estar reconhecida pelo notário, reconhecimento que teria de ser presencial quando a execução tivesse por fim o pagamento de quantia certa e o montante da dívida constante do escrito excedesse a alçada da relação.
Daqui resulta que, naquela data, o documento particular em causa, assinado pelos embargantes com mero reconhecimento por semelhança, não era título exequível.
O Decreto-Lei nº 329-A/95 deu, porém, nova redacção ao artigo 46º do CPC, dele ficando a constar que são títulos executivos “os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 805º (...).”
Foi esta norma que o acórdão recorrido aplicou no caso, entendendo, em síntese, que ela era de aplicação imediata aos processos pendentes, não ficando, com isto, restringido qualquer direito fundamental (isto, sem prejuízo da legítima interrogação sobre se, em bom rigor, a norma aplicada, no ponto em causa, não foi antes a norma de direito transitório ínsita no nº. 3 do artigo
26º do Decreto-Lei nº. 329-A/95, de 12 de Dezembro).
Diferente é a tese sustentada pelos recorrentes, para quem a norma anterior conferia um direito de “não poderem ser imediatamente executados”, sendo a norma aplicada “manifestamente restritiva daquele direito à não execução imediata e não podia ter efeito retroactivo”.
Pode afirmar-se que o acórdão recorrido segue uma linha jurisprudencial, praticamente pacífica, do STJ, como bem se revela no Assento nº
9/93, publicado in DR I Série de 10/11/93, onde, no estrito plano do direito infraconstitucional, se discutia questão semelhante à que foi resolvida no acórdão recorrido – aplicação da lei nova (artigo 51º nº1 do CPC, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 242/85, de 9 de Julho, no ponto em que deixou de exigir, como requisito de exequibilidade de letras, livranças e cheques, o reconhecimento notarial da assinatura do devedor) aos processos pendentes.
O que estava em causa no presente processo era, como se disse, a aplicação do artigo 46º alínea c) do CPC às execuções pendentes, norma essa que, no mesmo sentido da alteração que ocorrera com a exequibilidade das letras, livranças e cheques, dispensou, como requisito formal da exequibilidade dos documentos particulares, o reconhecimento notarial da assinatura do devedor.
A questão que cumpre apreciar, considerando a conclusão das alegações apresentadas, é, pois, a de saber se a norma do artigo 46º alínea c) do CPC, interpretada em termos de ela ser aplicável aos processos executivos pendentes em que, à data da instauração da execução e da dedução dos embargos, de acordo com a legislação então vigente, o título não era exequível, ofende, nos termos pretendidos pelos recorrentes, o artigo 18º nº 3 da CRP.
Resposta afirmativa a esta questão pressuporia – desde já se diga - necessária e cumulativamente que:
- A aplicação imediata da norma envolvesse retroactividade;
- O direito em causa fosse um dos direitos, liberdades e garantias previstos no citado preceito constitucional;
- A norma consubstanciasse uma restrição do direito.
Com efeito, o que está constitucionalmente vedado pelo artigo 18º nº 3 da Constituição é, no que ao caso importa, a retroactividade de leis restritivas de direitos, liberdades e garantias.
Ora, é desde logo manifesto, sem necessidade de outras considerações, que o “direito” (sem sequer nos comprometermos com uma tal qualificação) supostamente atingido com a norma, não reveste a natureza de um daqueles direitos que o preceito constitucional tutela.
O que o artigo 46º alínea c) do CPC fez foi tão só dispensar, como requisito da exequibilidade dos documentos particulares em que o devedor reconhece uma obrigação pecuniária com montante determinado ou determinável nos termos do artigo 805º, o reconhecimento notarial da assinatura, ou seja uma formalidade que anteriormente vigorava (no caso, reconhecimento presencial).
No caso, à aplicação imediata desta norma, postulada pelo princípio geral da aplicação da lei processual no tempo, que “direito” invocado pelos recorrentes se lhe oporia ? O direito a não poderem ser executados imediatamente...
Ora este suposto “direito” não é mais do que o reflexo da inexequibilidade do título, por falta de uma formalidade, à luz da legislação vigente no momento da instauração da execução e da dedução dos embargos.
E mesmo que direito fosse, certo é que ele não estaria consagrado no Título II da CRP nem se vê que pudesse ser considerado com natureza análoga à dos direitos catalogados como fundamentais (artigo 17º da CRP).
Tanto basta e sem necessidade de outras considerações para se entender que a norma em causa não ofende o artigo 18º nº 3 da CRP.
Diga-se, por último, que a pretensão do recorrente, na perspectiva quer do direito ordinário, quer do direito constitucional, conduziria ao absurdo de, julgada extinta a instância, o exequente poder instaurar nova execução (já no domínio da nova legislação) sem que se lhe pudesse, então, opor a inexequibilidade do título.
4 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se, para cada um, a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa, 5 de Dezembro de 2001 Artur Maurício Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa