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Proc. nº 349/01 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – O Banco..., SA, identificado nos autos, recorre para este Tribunal, do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de fls. 161 e segs., recurso que vem interposto ao abrigo da:
- alínea a) do nº. 1 do artigo 70º da Lei nº. 28/82, por alegadamente ter sido ter recusada a aplicação dos artigos 127º e 128º do Código Penal, “com o fundamento de que nem essas disposições nem o artigo 30º nº 3 da Constituição da República consignam o princípio de que a responsabilidade criminal e contraordenacional se extingue, quando o criminoso ou o arguido foi uma sociedade que, entretanto, se extinguiu por fusão com outra sociedade (...)”
- alínea b) do nº. 1 do artigo 70º da Lei nº. 28/82 por o tribunal recorrido ter aplicado “norma” (despacho de delegação de competências nº. 25248/99, proferido pelo Inspector Geral do Trabalho, publicado no DR, II Série, de 22 de Dezembro) “cuja inconstitucionalidade foi suscitada no recurso penal”.
Admitido o recurso e produzidas alegações, o Ministério Público suscitou duas questões prévias, concluindo:
“1 – A decisão recorrida não recusou aplicar, com fundamento em inconstitucionalidade, as normas constantes dos artigos 127º e 128º do Código Penal, pelo que não se verificam os pressupostos de admissibilidade do recurso fundado na alínea a) do nº. 1 do artigo 70º da Lei nº. 28/82.
2 – Não constitui objecto idóneo da fiscalização da constitucionalidade, por desprovido de natureza normativa, o acto administrativo de delegação de competências, praticado pela entidade a que a lei atribui competência para aplicação das coimas por contraordenações laborais – prevendo, porém, expressamente a possibilidade de ocorrer a delegação que, no caso dos autos, se verificou.
3 – Termos em que – pelas razões apontadas – não deverá conhecer-se do recurso interposto.”
Notificado para responder às questões prévias invocadas, o recorrente manteve que o acórdão recorrido recusou a aplicação dos artigos 127º e 128º do CP e sustentou que o despacho de delegação de poderes é, pelo seu conteúdo, uma norma, louvando-se numa sentença do Tribunal de Trabalho de Leiria, de que juntou cópia.
Cumpre apreciar e decidir as referidas questões prévias.
2 - Com interesse para a solução de direito, resulta dos autos o seguinte:
- Por despacho do Delegado da Delegação de Viseu da Inspecção Geral do Trabalho, de 12/5/2000 foi imposta ao Banco M... SA uma coima no montante de 1.500.000$00 pela prática de uma contraordenação laboral;
- Deste despacho foi interposto recurso pelo Banco M... para o Tribunal de Trabalho de Viseu.
- Na pendência do recurso, o ora recorrente requereu a anulação do procedimento contraordenacional e o consequente arquivamento dos autos com fundamento na extinção do Banco M..., dada a fusão, por incorporação, desta instituição bancária no Banco... SA e o princípio da não transmissibilidade da responsabilidade criminal ou contraordenacional que resultaria dos artigos 127º e 128º do Código Penal e do artigo 30º nº 3 da Constituição;
- O assim requerido foi indeferido, mas o recurso foi parcialmente provido, fixando-se o montante da coima no mínimo de 1.400.000$00.
- De novo inconformado, o Banco..., SA recorreu para a Relação de Coimbra que, por acórdão de fls. 161, ora impugnado, negou provimento ao recurso.
3 - Conhecendo da questão da alegada extinção da responsabilidade contraordenacional, entendeu-se, em síntese, nesse aresto:
- Nos termos do CP a morte do agente é causa de extinção, quer do procedimento criminal quer da pena;
- O normativo constitucional invocado refere-se tão só às penas, entendendo-se como tais as sanções aplicadas em processo criminal;
- Dado o princípio da individualização da responsabilidade criminal, compreende-se que, no domínio do direito criminal, a intransmissibilidade das penas tenha lugar;
- Não se consagrando de forma absoluta aquele princípio (por vezes o legislador determina a punição criminal de pessoas colectivas), a regra é a sua observância, que apenas cede por razões de ordem pragmática;
- Sendo pressuposto da individualização a culpa e a morte exclusivo dos seres vivos, o suporte para a extinção da responsabilidade das pessoas colectivas apenas se poderá explicar por motivos de ordem pragmática, de política criminal;
- O fim da responsabilidade das pessoas colectivas só poderá ocorrer se a sua extinção for determinada por via normativa, o que não sucede no caso;
- A disposição do artigo 112 alínea a) do Código das Sociedades Comerciais, não deixando de transmitir para a sociedade incorporante (ou para a nova sociedade resultante da fusão) todos os direitos e obrigações das sociedades extintas) significa que praticada uma infracção por esta, é aquela responsável, com se a infracção tivesse sido por si cometida.
- Se este raciocínio é válido para as sanções criminais, por maioria de razão o será para as de carácter contraordenacional em que a “carga censória” feita ao agente é menor e em que a culpa não se baseia numa censura ética mas sim “na imputação do facto à responsabilidade social do seu autor” (Figueiredo Dias);
- Em suma, não estando determinado por via normativa que o “fim” da infractora conduza à extinção da sua responsabilidade contraordenacional, é a sua sucessora responsável, conforme determina a alínea a) do artigo 112º do CSC.
Ora, vindo o recurso interposto, no que concerne às normas dos artigos 127º e 128º do Código Penal, ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea a) da LTC, impunha-se que o acórdão recorrido tivesse afastado a aplicação dessas normas com fundamento na sua desconformidade à Constituição.
Mas nada disso aconteceu, como se vê dos fundamentos supra sintetizados em que assentou o indeferimento da pretensão do recorrente de se julgar extinta a responsabilidade contraordenacional – a não aplicação dos artigos 127º e 128º do CP à responsabilidade contraordenacional das pessoas colectivas extintas não resultou de qualquer entendimento no sentido de as normas neles contidas consubstanciarem um regime contrário à Constituição.
E, sendo assim, manifesto é que o recurso interposto ao abrigo da referida norma da LTC não é admissível.
4 – Vejamos, agora a segunda questão prévia.
A este propósito, resulta dos autos, o seguinte:
- A coima imposta à recorrente foi objecto de despacho do Delegado da Delegação de Viseu da Inspecção Geral do Trabalho, Delegado esse que teria sido também o subscritor do despacho de confirmação do auto de notícia com que se iniciara o procedimento contraordenacional (isto segundo o recorrente, já que no acórdão recorrido se diz que “não resultou da factualidade apurada que tenha sido a mesma pessoa física quem proferiu os dois despachos”).
- O despacho sancionatório foi proferido no uso de poderes delegados conferidos pelo Inspector Geral do Trabalho nos termos do despacho de 30/11/99, publicado no Diário da República, II Série, de 22/12/99; a norma habilitante da delegação está contida no artigo 17º nº 2 da Lei nº 116/99 que, atribuindo competência ao Inspector Geral do Trabalho para aplicação de coimas correspondentes a contraordenações laborais, permite a delegação dos pertinentes poderes nos delegados ou subdelegados do Instituto de Desenvolvimento das Condições de Trabalho.
Não é, porém, esta norma habilitante que o recorrente pretende ver apreciada sub especie constitutionis, mas o próprio despacho de delegação que se expressa nos seguintes termos:
“Despacho nº 25248/99 (2ª série) – 1 – Nos termos expressos no artigo
17º nº 2 do Decreto-Lei nº 116/99, de 4 de Agosto, delego, relativamente às delegações de Lisboa e Porto, nos delegados da área respectiva e quanto aos demais serviços regionais, nos respectivos delegados e subdelegados, a competência para aplicação das coimas previstas naquele diploma, com excepção da sanção acessória de interdição temporária do exercício de actividade prevista no artigo 32º nº 3 do Decreto-Lei nº 146/99, de 1 de Setembro. 2 – O presente despacho produz efeitos a partir de 1 de Dezembro de 1999”
A questão que se coloca é, pois, a de saber se este despacho pode constituir objecto idóneo do recurso de constitucionalidade em fiscalização concreta.
Sendo este recurso, quando interposto ao abrigo do artigo 70º nº 1 alíena b) da LTC um meio impugnatório de decisões judiciais que aplicam normas cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, a resolução de uma tal questão passa, decisivamente, por se saber se o despacho de delegação de poderes em causa tem a natureza de norma ou a de acto administrativo.
O Supremo Tribunal Administrativo tem, de há muito, firmado jurisprudência
(quase sempre produzida a propósito da eficácia de despachos de delegação de poderes não publicados) no sentido de que estes despachos quando têm como objecto certas matérias em abstracto assumem a natureza de acto normativo regulamentar (acórdãos proferidos nos Processos nºs. 12068, 13461, 15873, 10844 e 27838, publicados in “Acórdãos Doutrinais”, nº. 239, p. 1259, nº. 263, p.
1362, nº. 272-273, p. 985, nº. 253, p. 66 e nº. 370, p. 1052, respectivamente, e no Proc. nº 12805, este publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano
114º, nº 3687, pags. 174 e segs com anotação favorável do Prof. Afonso Queiró). De notar, porém, que no Acórdão do Tribunal Pleno, de 14/5/85, proferido no Proc. nº. 12583, publicado in “Acórdãos Doutrinais”, nº. 284-285, p. 989 e sobre um despacho da autoria de um director-geral se escreveu:
“(...) não podem deter, como delegados, o poder regulamentar do Governo, conferido a este pela Constituição da República [v. artigo 202º, al. c)], e do uso do qual provém a delegação de poderes, em abstracto. Por isso, os despachos de delegação por eles proferidos não têm a natureza regulamentar mas a de actos administrativos, dirigidos a funcionário inferior, na escala hierárquica. A sua publicidade justifica-se pela necessidade de ser levado ao conhecimento geral a alteração da competência delegada, para que os interessados saibam a quem devem dirigir as suas pretensões.”
Esta jurisprudência assenta essencialmente no entendimento de que o despacho de delegação de poderes visa “uma pluralidade de hipóteses, verificáveis no futuro e não tem como destinatárias entidades concretamente determinadas ou determináveis “a priori”” (cit. Acórdão proferido no Proc. nº 10844), na esteira da doutrina de Stassinopolos (“Traité des Actes Administratifs”, p. 111).
Mereceu a mesma jurisprudência o seguinte comentário crítico de Paulo Otero, in
“A competência delegada no direito administrativo português”, p, 163:
“A jurisprudência do STA coloca correctamente o problema quando pretende determinar a generalidade ou a abstracção do acto de delegação, todavia, salvo melhor opinião, confunde situações e omite referências. Confunde a noção de generalidade com abstracção, omite a determinação do destinatário da delegação e, sobretudo, analisa sempre a questão tendo em vista certos resultados que pretende atingir e que constituem o objecto principal do recurso.”
Para este autor, com efeito, o despacho de delegação não reveste a característica da generalidade, quanto ao seu elemento subjectivo (o acto dirige-se a um órgão determinado) mas quanto ao seu objecto, no que concerne à delegação plural – a que está agora em causa – já ela é caracterizada pela abstracção por se consubstanciar na “permissão para a prática de uma pluralidade de actos, face a um conjunto de situações indetermináveis, isto é, não concretizadas individualmente”.
O acto de delegação seria, assim, simultaneamente individual e abstracto, revestindo, deste modo, uma característica do acto administrativo (a individualização) e outra do acto regulamentar (a abstracção).
Conclui Paulo Otero (ob. cit. pag. 167):
“(...) não podemos deixar de considerar o carácter em simultâneo individual e concreto como o traço tipicamente característico dos actos administrativos. Deste modo, a ausência do carácter concreto do acto de delegação leva a que este não possa ser visto como um acto administrativo típico. Trata-se de um acto administrativo imperfeito quanto à estrutura, mas que segue as regras e regime dos restantes actos administrativos.”
Como acto administrativo é igualmente a caracterização do despacho de delegação de poderes feita pelos Profs. Rogério Soares e Freitas do Amaral, como bem reconhece Paulo Otero (ob. cit. p. 160, nota 1).
Já Mário Esteves de Oliveira in Código do Procedimento Administrativo Anotado, anotação VIII ao artigo 35º, se afasta desta doutrina, quando escreve:
“O acto de delegação, quando respeita ao exercício em abstracto da competência pelo delegado, comporta-se como um acto normativo – ou, fazendo apelo à conhecida classificação da doutrina italiana, como um acto “com conteúdo indirectamente normativo”, isto é, um acto que, não contendo normas jurídicas, um dever-ser, se destina contudo a tornar aplicáveis normas anteriores – porque o seu efeito é operar uma “redistribuição” de competência normativamente fixada.
Mesmo a delegação para a prática de um acto administrativo, para a decisão de um procedimento administrativo determinado, também pode ser vista como tal: na verdade, para o delegado e para os destinatários do acto a praticar por este ou para os interessados no respectivo procedimento, a delegação funciona como se fosse a verdadeira e primeira norma de competência, vinculando-os a todos (como se estivesse estabelecida na própria lei de competência) à repartição de poderes feita através dela.”
De todo o modo, não deixa de se assinalar que, mesmo neste entendimento, se reconhece que o despacho não contém normas jurídicas ou um dever-ser.
Na doutrina estrangeira, alinha na tese que atribui à delegação de poderes a natureza de acto administrativo, entre outros, José Maria Boquera Oliver (in
“Estudios sobre el acto administrativo”, 5ª ed., p. 58-59), que, depois de definir a delegação (“es la trasferencia ou traslación de una potestad o competencia de un sujeto u órgano a outro sujeto u órgano para que éste la ejercite en nombre de aquél. La delégación sólo es posible cuando la Ley la permite. La delegación de una potestad pública, y de cualquier competencia o atribuición, tiene lugar mediante una decisión del titular de la misma
(delegante).”) adverte em nota de pé de página (nº. 62):
“Por eso dicen los autores que estudian la delegación de competencias administrativas que ésta se lleva a efecto mediante “acto administrativo”. Véanse De La Vallina, J. L., Transferencias de funciones administrativas, IEAL, Madrid, 1964, pág. 87 e sigs., y González Navarro, F., Delegación, sustitición y avocación interorgánicas, en “Organización y procedimiento administrativos. Estudios”, Montecorvo, Madrid, 1975, página 211.”
Com efeito, é deste entendimento Francisco Gonzalez Navarro que, na obra em co-autoria com Jesus Gonzalez Perez, “Regimen juridico de las administraciones publicas y procedimiento administrativo comum (Ley 30/1992, de
26 de noviembre)”, 1993, p. 304 e segs., propõe a seguinte definição :
“(...) transferencia revocable del ejercicio de determinadas competencias administrativas que, mediante acto administrativo dictado por motivos de oportunidad, se realiza en favor de órganos inferiores por aquel
órgano que, habiéndolas recibido directamente de la norma jurídica (no por delegación), está autorizado a ello por la misma o por outra distinta (...).”
(sublinhado nosso)
E em nota de pé de página (nota 25, pags, 304/305) cita um outro autor espanhol, Juan Luis de la Vallina Velarde in “Transferencia de funciones administrativas”, en IEAL, 1964, pp. 87-149, para quem a delegação administrativa é uma “modalidad de transferencia de competencias en virtud de la cual, en los casos previstos por la norma jurídica, se faculta a un sujeto u
órgano (delegante) para que, por un acto administrativo no normativo, dictado exclusivamente por razones de oportunidad, confiera a outro sujeto u órgano inferior (delegado) una nueva competência, que materialmente es idéntica a la del delegante.” (sublinhado nosso).
Na mesma obra, Gonzalez Perez e Gonzalez Navarro reiteram aquele entendimento, quando afirmam (a) que a delegação de poderes é o acto administrativo que opera a condição suspensiva do exercício da competência atribuída ao órgão delegado pela norma autorizativa da delegação, (b) que o mecanismo da delegação não se realiza directamente pela norma, mas através de um acto concreto do titular primário da competência, possibilitado formalmente pela norma de cobertura e, finalmente, (c) que a delegação prevista numa norma de raíz legal se torna efectiva mediante acto administrativo no qual o órgão delegante transfere para outro órgão o exercício de determinada ou determinadas competências [págs. 308,
310 (nota 35) e 328].
Importa, agora, evocar a jurisprudência deste Tribunal sobre o conceito de norma, para os fins específicos de controlo de constitucionalidade que a Constituição e a lei integram na competência do Tribunal Constitucional. A sua doutrina tem-se mantido uniforme e tem como pedra de toque a exigência de se operar com um conceito formal e não com um conceito material de norma, doutrina esta já sustentada na Comissão Constitucional.
Lê-se, a propósito no Parecer da Comissão Constitucional nº 13/82, in “Pareceres da Comissão Constitucional”, vol. 19º, pags. 149 e segs:
“Antes de mais, é esse o significado mais corrente ou imediato da expressão – aquele que a associa (abstraindo agora das normas de direito não escrito) à representação de um “preceito” ou “disposição” estabelecido por acto do poder legislativo ou de um poder regulamentar, e constante do diploma que incorpora esse acto. E esta consideração terá maior valimento se puder dizer-se que a nossa Constituição não fornece “qualquer apoio para uma definição material de lei, como acto legislativo geral e abstracto”, e quanto a própria distinção entre os conceitos de lei em sentido material e lei em sentido formal se revela em crise na doutrina.”
No Acórdão nº 26/85 deste Tribunal (in “Acórdãos do Tribunal Constitucional” 5º vol., p. 7 e segs), que não deixou de evocar a doutrina expressa no citado parecer da Comissão Constitucional, lê-se:
“Seja como for, é decerto seguro e indiscutível que a Constituição, ao prever o controlo da constitucionalidade das “normas” jurídicas (...) teve em vista não toda a actividade dos poderes públicos mas apenas um sector dela, a saber, o que se traduz na emissão de regras de conduta ou padrões de valoração de comportamentos (i. é., de “normas”): deste modo, fora desse específico controlo ficam os puros actos de aplicação dessas regras ou padrões, que são os actos jurisdicionais e os actos administrativos, stricto sensu.”
Acrescenta, ainda, o mesmo acórdão:
“(...) Com efeito, se é inquestionável que todo o sistema de fiscalização da constitucionalidade, só pode ter por objecto normas (cf. o teor dos artigos 277º e segs. da Constituição), não é menos verdade que na averiguação e determinação do que seja “norma”, para esse efeito, não pode partir-se de uma noção material, doutrinária e aprioristicamente fixada desse conceito. E, designadamente, não pode partir-se da ideia clássica que liga ao mesmo conceito as notas da “generalidade” e da “abstracção”.
(...) Assim, o que há-de procurar-se, para o efeito do disposto nos artigos 277º e seguintes da Constituição, é um conceito funcional de “norma”, ou seja, um conceito funcionalmente adequado ao sistema de fiscalização da constitucionalidade aí instituído e consonante com a sua justificação e sentido.
Pois bem: como a Comissão Constitucional já havia acentuado, o que se tem em vista com esse sistema é o controlo dos actos do poder normativo do Estado (lato sensu) – e, em especial do poder legislativo – ou seja, daqueles actos que contêm uma “regra de conduta” ou um “critério de decisão” para os particulares, para a Administração e para os tribunais.
Não são, por conseguinte, todos os actos do poder público os abrangidos pelo sistema de fiscalização da constitucionalidade previstos na Constituição. A ele escapam, por um lado (e como já a Comissão Constitucional salientara), as decisões judiciais e os actos da Administração sem carácter normativo, ou actos administrativos propriamente ditos; e, por outro lado, os “actos políticos” ou
“actos de governo”, em sentido estrito (como, v.g., os actos do Presidente da República respeitantes à dissolução da Assembleia da República, à nomeação do Primeiro-Ministro, etc.). Uns e outros, na verdade, já não serão actos
“normativos”, mas actos de aplicação, execução ou simples utilização de “normas”
– isto é, de regras de conduta ou critérios de decisão – seja, de normas infraconstitucionais (como normalmente acontecerá com os primeiros), seja de normas constitucionais (como é característica dos segundos).
Onde, porém, um acto do poder público for mais do que isso, e contiver uma regra de conduta para os particulares ou para a Administração, ou um critério de decisão para esta última ou para o juiz, aí estaremos perante um acto 'normativo”, cujas injunções ficam sujeitas ao controlo de constitucionalidade.”
Ora, esta jurisprudência põe assim em causa, para efeito de determinar o domínio da sindicabilidade exercida pelo Tribunal Constitucional, a distinção entre disposição individual e concreta e disposição geral e abstracta, que está na base da controvérsia sobre a natureza do despacho de delegação de poderes.
Pareceria, deste modo, irrelevante a caracterização do acto de delegação de poderes, na delegação plural, como acto administrativo ou acto de natureza híbrida que deve ser tratado como acto administrativo ou como acto normativo, para saber se ele é objecto idóneo do recurso de constitucionalidade.
Na verdade, muito embora sem se afoitar na caracterização do “acto” em causa no recurso que deu lugar ao Acórdão nº 26/85 (por desnecessidade), o Tribunal Constitucional deixou clara a afirmação da sua competência para verificar a constitucionalidade de actos individuais e concretos.
Simplesmente, determinante deste juízo foi o facto desse “acto” se incorporar num diploma formalmente legislativo uma vez que “utilizando a forma de decreto-lei para extinguir as empresas públicas em causa, o Governo não actua como simples órgão superior da Administração Pública, mas recorre ao seu poder legislativo – ou seja, a um poder cujo exercício, seja qual for o conteúdo de que se revistam as suas determinações, se encontra sujeito à fiscalização da constitucionalidade”.
Por outro lado, deixou o Tribunal igualmente claro que se situa já fora do âmbito da sua competência verificar a constitucionalidade dos “actos de aplicação, execução ou simples utilização de “normas””, normas que identifica como “regras de conduta ou critérios de decisão”
Ora a delegação de poderes é uma medida de desconcentração administrativa, que visa a desburocratização da Administração e, estruturalmente, um acto interno (o que se tem por indiscutível quando delegante e delegado são órgãos da mesma pessoa colectiva – ou seja, nos casos de delegação intra-subjectiva) muito embora com relevância externa – e daí a exigência da sua publicação (cfr. Paulo Otero, ob cit. pag. 172).
Mediante o despacho de delegação de competências, o delegante limita-se a transferir para o delegado o exercício de certos poderes (ou a própria titularidade desses poderes) ou, noutra concepção, a autorizar o delegado a exercer uma competência que a lei habilitante já lhe conferia, exercício esse condicionado à prática do acto autorizativo; e, em tal medida, é um acto de simples utilização da norma – esta, sim, norma – habilitante.
De resto, ele dirige-se a destinatários determinados ou imediatamente determináveis (todos e só aqueles que, no momento da emissão do despacho exercem os cargos nele referenciados) e nem sequer se contem em diploma formalmente legislativo.
Tal faz com que o despacho em causa não seja sindicável, sub specie constitutionis, por este Tribunal.
Não estão, pois, preenchidos os requisitos de admissibilidade do recurso previsto no artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC, pelo que também nesta parte procede a questão prévia suscitada pelo Ministério Público.
4 – Decisão
Pelo exposto e em conclusão, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa, 5 de Dezembro de 2001 Artur Maurício Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa