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Proc. nº 769/99 TC – Plenário Rel.: Consº Artur Maurício
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
1 – O Provedor de Justiça, no uso dos poderes conferidos pelo artigo
281º nº 2 alínea d) da Constituição da República Portuguesa, requer ao Tribunal Constitucional a fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade da norma contida no artigo 82º nº 1 alínea d) do Decreto--Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro (Estatuto da Aposentação), norma esta que entende violar o disposto nos artigos 13º, 15º e 18º nº 2 da Constituição.
Fundamenta o seu pedido, em síntese, na seguinte ordem de considerações:
- A norma em causa vem erigir a cidadania portuguesa em condição sine qua non para constituição ou manutenção da situação jurídica de aposentação;
- O nº 1 do artigo 15º da Constituição estabelece o princípio da equiparação de direitos entre estrangeiros e apátridas que residam ou se encontrem em Portugal e os nacionais, no que toca ao gozo de direitos, embora com excepções;
- Ora, o direito à aposentação não se enquadra, desde logo, nas excepções a esse princípio directamente estabelecidas pelo nº 2 desse mesmo artigo 15º; e, por outro lado, não corresponde ao exercício de uma função pública que não tenha carácter meramente técnico, pois na situação de aposentação não se verifica o exercício de qualquer função;
- Quanto, por outro lado, à possibilidade de se estabelecerem excepções por via legislativa ao referido princípio da equiparação (previsto ainda no dito nº 2, parte final, do artigo 15º da CRP), tais excepções “não podem escapar ao quadro geral das restrições aos direitos fundamentais”, o que leva a averiguar, primeiro, se a razão de ser que veda a estrangeiros o exercício de certos cargos é aplicável à situação de aposentados e, depois, se a exclusão em causa é, em todo o caso, constitucionalmente viável face apenas ao instituto da aposentação;
- Estando a ratio da limitação do exercício de funções públicas por estrangeiros ligada ao próprio exercício dos cargos (ao exercício de poderes públicos) “em nenhum caso se pode pensar como análoga a situação de aposentado, em que, por natureza, não há exercício de qualquer função”. Com efeito, “se um funcionário, provido num lugar para que se exija a nacionalidade portuguesa, tem necessariamente que a possuir no momento da aposentação, nada permite exigir, não se podendo considerar verificados os requisitos da necessidade, proporcionalidade e adequação, que o mesmo funcionário mantenha a titularidade da mesma cidadania durante a sua situação de aposentado, cessada que está a razão de ser da limitação constitucional”;
- Mas, se é assim, então, e por maioria de razão, também não se pode considerar como constitucionalmente adequada a restrição, considerando-a no plano, apenas, do instituto da aposentação. Em suma,: “não há quaisquer razões de interesse público que justifiquem a norma em apreço”;
- O princípio da igualdade (artigo 13º da CR) proíbe quaisquer discriminações constitucionalmente ilegítimas. Ora, uma diferenciação de tratamento como a presente “é discriminatória por restringir um direito com base na cidadania (cf. artigo 13º nº 2 da Constituição) não autorizada constitucionalmente no artigo 15º”.
Notificado, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54º e 55º, nº 3 da Lei do Tribunal Constitucional, o Primeiro-Ministro veio oferecer o merecimento dos autos.
Cumpre decidir.
2 – A norma que o requerente pretende ver julgada inconstitucional consta do artigo 82º nº 1 alínea d) do Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro, que aprovou o Estatuto da Aposentação (de ora em diante designado como EA). Dispõe este preceito:
“1 – A situação de aposentado extingue-se nos casos de:
............................................................................................................
d) perda da nacionalidade portuguesa, quando esta for exigida para o exercício do cargo pelo qual o interessado foi aposentado;”
Conjugando esta norma com o que se dispõe nos artigos 22º e 74º do mesmo Estatuto, resulta claro que a “perda da nacionalidade portuguesa”, como causa da extinção da situação de aposentado, decorre da “interdependência essencial entre a qualidade de servidor do Estado e o direito à aposentação”
(Parecer da PGR nº 8/75 in BMJ nº 251, pp. 43 e segs.).
Com efeito, sendo requisito necessário para a aquisição do direito à aposentação a inscrição na Caixa Geral de Aposentações, obrigatória para todos os “servidores do Estado” - o que, para determinados cargos, pressupõe a nacionalidade portuguesa – e mantendo-se o vínculo à função pública na situação de aposentação, a extinção da situação de aposentação resultará, em primeira linha, da quebra daquele vínculo por, com a perda da nacionalidade portuguesa, deixar de se verificar tal pressuposto.
O preceito em causa tem, assim, na sua base, uma concepção do
“estatuto da aposentação” segundo a qual este se inscreve ainda no “estatuto da função pública”.
A partir desta concepção compreende-se a lógica do preceito: se alguém só pôde exercer determinado cargo público porque era português e se, consequentemente, só em razão dessa qualidade pôde adquirir o direito à aposentação em tal cargo – ou seja, o direito a passar nele à situação de
“funcionário aposentado” – não há que estranhar que, se a pessoa em causa perde essa qualidade, perca também o direito ou situação cuja aquisição dela dependeu.
Seja qual for a justificação da medida normativa, certo é que ela estabelece uma restrição dos direitos dos não nacionais (ou que se tornam não nacionais).
E a questão de constitucionalidade que o requerente pretende ver apreciada por este Tribunal reside, precisamente, em saber se essa restrição de direitos, feita com base na nacionalidade, não ofende o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição, não estando ela legitimada, como não está, pelas ressalvas ao princípio da equiparação entre nacionais e estrangeiros previstas no nº 2 do artigo 15º da mesma Constituição.
3 - A jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o tratamento constitucional dos estrangeiros não é extensa.
São, porém, de salientar:
- o acórdão nº 54/87 (in “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 9º vol. pp. 273 e segs.) que versou sobre as garantias de defesa dos estrangeiros no processo de extradição;
- o acórdão nº 338/95 (in “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 31º vol., pp. 575 e segs.) que se pronunciou sobre normas que negam aos peticionários do direito de asilo o apoio judiciário, na modalidade de concessão de patrocínio judiciário;
- o acórdão nº 354/97 (in “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 36º vol., pp. 931 e segs.) que apreciou a constitucionalidade da norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº 362/78, de 28 de Novembro interpretada no sentido de que nele se não exigia que os funcionários e agentes da administração pública das ex-províncias ultramarinas possuam a nacionalidade portuguesa para lhes poder ser atribuída a pensão de aposentação requerida ao abrigo daquele decreto-lei;
- o acórdão nº 423/01 (in Diário da República, I Série A, de 7/11/01) que verificou a constitucionalidade das normas que reservavam a nacionais portuguesas a qualificação como deficiente das Forças Armadas, ou equiparado.
Desta jurisprudência retiram-se as seguintes ideias centrais, que não se vê razão para abandonar:
- O artigo 15º nº 1 da Constituição, garantindo aos estrangeiros e apátridas que se encontrem ou residam em Portugal os direitos e deveres do cidadão português, consagra o princípio do tratamento nacional;
- Embora a Constituição consinta que a lei reserve certos direitos exclusivamente aos cidadãos portuguesas (artigo 15º nº 2 in fine) não pode fazê-lo de forma arbitrária, desnecessária ou desproporcionada, sob pena de inutilização do próprio princípio da equiparação;
- Os direitos referidos no artigo 15º nº 1 da Constituição não são apenas os direitos fundamentais, os direitos, liberdades e garantias ou os direitos constitucionalmente garantidos, mas também os consignados aos cidadãos portuguesas na lei ordinária.
Neste último sentido cfr. Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República nº 23/81, in “Pareceres”, vol. I, p. 319, Gomes Canotilho e Vital Moreira “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª ed. p. 134, Jorge Miranda, “Manual de Direito Constitucional”, Tomo III, 3ª ed., pp. 141/142, Vieira de Andrade, “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, p. 184 e Mário Torres, prefácio a “Direitos dos Estrangeiros” de Ana Vargas e Joaquim Ruas, p. 17, todos citados no Acórdão nº
423/01.
4 – Se é certo que o direito de aposentação faz parte do estatuto da função pública, ele é também uma manifestação do direito à segurança social reconhecido a “todos” no artigo 63º da Constituição; radicado no princípio da dignidade da pessoa humana, ínsito nos artigos 1º e 2º da mesma Constituição, este direito à segurança social visa assegurar, designadamente, àqueles que terminaram a sua vida laboral activa, uma existência humanamente condigna.
Mas não se inserindo ele no domínio dos direitos, liberdades e garantias, não há aqui que chamar à colação o disposto no artigo 18º nº 2 da Constituição e o condicionalismo que este impõe às normas restritivas de direitos fundamentais, em contrário do que pretende o requerente.
Para resolver a questão de constitucionalidade em causa, o que tem de se apurar é se a solução legal infringe os limites constitucionais comuns que o legislador, na sua actividade conformadora da ordem jurídica tem de respeitar, limites esses que são, tanto os decorrentes dos princípios gerais e fundamentais da Constituição, como os que ela especificamente enuncie para certos domínios ou tipos de situações.
Com efeito, na esteira do ensinamento de Gomes Canotilho (“Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 3ª ed. p. 392) “(...) a restrição de direitos fundamentais de estrangeiros pressupõe uma certa medida de
“discricionariedade” do legislador constituinte ou, mediante autorização da Constituição, do legislador ordinário”; mas, adverte o mesmo autor, “também aqui se coloca uma “teoria de limites” do poder constituinte ou dos poderes constituídos constitucionalmente competentes quanto à exclusão de direitos de estrangeiros (...). A diferenciação entre “direitos dos portugueses” e “direitos de todos” pressupõe sempre uma justificação ou fundamento material, não devendo esquecer-se o relevo dos standards mínimos pelo direito internacional relativamente à determinação deste fundamento material”.
A questão será, assim, a de saber se a norma do artigo 82º, nº 1, alínea d) do EA, ao eleger uma determinada circunstância para pôr termo à situação de aposentação (aos direitos que ela integra) de que continuam a usufruir aqueles em que tal circunstância se não verifica (os que não perderam a nacionalidade portuguesa) não introduz uma diferenciação, discriminatória, sem fundamento racional e injusta entre as pessoas a quem o direito á aposentação é originariamente reconhecido – ou seja, se deste modo se não verifica, no caso, uma violação do princípio da igualdade.
Mas esta indagação há-de ser feita à luz do disposto no artigo 15º da Constituição, já que a referida circunstância é a da nacionalidade e o princípio da igualdade, quanto a ela, recebe um tratamento específico naquele preceito constitucional.
Nesta conformidade, ponderando que o artigo 15º nº 1 da Constituição consagra o princípio da equiparação entre nacionais e não nacionais, mas com as excepções consignadas no nº 2 e com a possibilidade e o legislador, ele próprio, estabelecer outras excepções ou limitações àquele princípio, caberá, fundamentalmente, apurar se a decisão do legislador de extinguir o direito à aposentação aos funcionários e agentes que, tendo visto o mesmo direito reconhecido em razão do exercício de funções para as quais era exigível a nacionalidade portuguesa, perderam essa nacionalidade, viola tal princípio por ser discriminatória, arbitrária ou injusta.
5 – Disse-se atrás que o preceito legal em causa tem na sua base uma concepção do estatuto da aposentação como sendo este ainda matéria do “estatuto da função pública”.
As normas que integram o estatuto da aposentação são ainda normas do estatuto da função pública, sendo os seus destinatários, em certo sentido, funcionários e agentes do Estado – o aposentado continua vinculado à função pública, nos termos do artigo 74º do Estatuto da Aposentação.
Nesta lógica estaria, como também se disse, a justificação constitucional da norma em apreço; e ela seria tanto mais válida quanto a norma não se limita a retirar o direito a uma pensão (aspecto nuclear do estatuto da aposentação) mas extingue a própria “situação de aposentação”.
E pode ainda dizer-se que a mesma lógica se reforça quando a perda da nacionalidade portuguesa ocorra por vontade do interessado, dirigida a esse efeito – por “renúncia” ou “repúdio” (artigo 8º da Lei nº 37/81, de 3 de Outubro).
Por outro lado, tendo em linha de conta que o financiamento das pensões – constituindo estas o núcleo da situação de aposentação – é assegurado, para além das quotas dos interessados, e até em maior medida, por subsídios do Orçamento do Estado e comparticipações das entidades responsáveis, pode, ainda, sustentar-se que não é chocante, nos casos em que a perda de nacionalidade resulte de uma intencional rejeição da affectio societatis relativamente ao Estado português (casos de “renúncia” ou de “repúdio”), este deixar de sentir-se obrigado a contribuir para a pensão de reforma de quem assim dele se afastou.
6 - A verdade é que, como se deixou dito, no “estatuto da aposentação” – que é matéria de “função pública” – avulta a sua dimensão de instrumento e instituto de “segurança social”; o direito à aposentação é, de algum modo, o direito à segurança social dos funcionários e agentes da Administração Pública.
E, nesta perspectiva, deixa de ser decisiva a circunstância de a situação jurídica dos aposentados incluir elementos do estatuto da função pública, para assumirem maior relevância outras considerações.
Desde logo, o facto de o fundamento em que assenta a extinção da situação de aposentação – deixar o interessado de ser português quando o cargo por ele exercido e por que adquiriu o estatuto de aposentado exige a nacionalidade portuguesa – não atender à substancial diferença entre a situação de trabalhador no activo e a de aposentado.
Com efeito, no caso, a exigência da nacionalidade portuguesa conexiona-se intimamente com o efectivo exercício do cargo – é porque neste não predominam funções técnicas e nele avultam poderes cujo exercício não deve ser atribuído a não nacionais que a Constituição estabelece a ressalva ao princípio da equiparação – sendo certo que na situação de aposentado o funcionário fica definitivamente dispensado do serviço activo, perdendo, deste modo, sentido que nela se projectem os condicionamentos impostos ao exercício do cargo e só por este justificados.
Vale por dizer que o fundamento da diferença de tratamento entre nacionais e não nacionais não é material e racionalmente justificado.
Por outro lado, na lógica do legislador do Estatuto da Aposentação, compreende-se que não se ligue a perda da situação de aposentado à perda da nacionalidade portuguesa, quando esta não é exigida para o exercício do cargo – a situação de aposentado pode, ab origine, constituir-se relativamente a um não nacional. Só que, também neste outro tipo de casos, a situação de aposentado irá, quase sempre, constituir-se relativamente a nacionais que não verão extinguir-se aquela situação se entretanto perderem a nacionalidade portuguesa. Ora, não há verdadeiramente razão para esta dualidade, indiciando ela que as vicissitudes da “nacionalidade” não são uma circunstância susceptível de constituir fundamento razoável para a determinação das consequências no plano da aposentação.
Mas outra ordem de considerações se afigura decisiva.
O direito à aposentação tem como pressuposto a qualidade de subscritor da Caixa Geral de Aposentações e a prestação de um certo número de anos de serviço, com pagamento das respectivas quotas.
Embora as pensões dos aposentados da função pública sejam em larga medida suportadas pelo Estado, certo é assim que, ao longo de toda a sua carreira no activo, o funcionário ou agente vai contribuindo com o pagamento de quotas para a Caixa Geral de Aposentações, para vir a auferir, na situação de aposentado, a sua pensão de aposentação.
Ora é manifestamente injusto que esse funcionário ou agente, tendo comparticipado para o seu sub-sistema da segurança social da função pública durante todo o tempo em que exerceu funções, perca, apenas por ter deixado de ser português, os correspondentes direitos, em particular, o direito à pensão, núcleo essencial desses direitos, cuja usufruição representa, na maioria dos casos, o meio principal de assegurar ao aposentado uma existência humanamente condigna.
E se é facto que, nos termos da actual Lei da Nacionalidade (citada Lei nº 37/81), a perda da nacionalidade portuguesa só pode resultar de declaração expressa de vontade nesse sentido, já, no quadro da Lei nº 2098, de
29 de Julho de 1959 – cuja vigência coincidiu, em parte, com a da norma em causa
– ela poderia ter ocorrido por outras razões não reveladoras de uma perda de affectio societatis.
Em suma, pois, ao estabelecer como causa da extinção da situação de aposentação a perda da nacionalidade portuguesa nos termos do artigo 82º nº 1 alínea d) do Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro (Estatuto da Aposentação), o legislador consagrou uma solução arbitrária e discriminatória, por não ter fundamento racional a diferença de tratamento entre nacionais e não nacionais e que infringe o princípio da justiça, deste modo violando o princípio da equiparação de direitos entre nacionais e não nacionais, estabelecido no artigo
15º nº 1 da Constituição.
7 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, o Tribunal Constitucional decide:
Declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma do artigo 82º, nº 1, alínea d) do Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro
(Estatuto da Aposentação), por violação do princípio constante do artigo 15º nº
1 da Constituição.
Lisboa, 20 de Fevereiro de 2002
Artur Maurício Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Maria Helena Brito Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa