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Proc. nº 541/01
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Inconformadas com o acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, de 7 de Fevereiro de 2001 (fls. 130 a 138) - que julgou findo o recurso que para aí haviam interposto do acórdão da 1º Secção, de 26 de Janeiro de 2000 (fls. 73 a 78), com fundamento na oposição entre este acórdão e um outro, da 1ª Subsecção, de 22 de Setembro de 1994 - as ora recorrentes vieram arguir a sua nulidade “por violação da Constituição”.
Na fundamentação da referida reclamação por nulidade sustentam as recorrentes, designadamente, que:
“(...)
4º - O acórdão do Pleno na interpretação e aplicação que fez das normas das alíneas b) e b`) do art. 24º do ETAF ao caso em apreço, rejeitando o recurso por falta de pressuposto, violou o princípio constitucional consagrado no art. 20º da CRP – O direito de acesso ao direito.
5º - Com efeito, as normas das alíneas b) e b`) do art. 24º do ETAF fixam como pressuposto do recurso para o Pleno da Secção a oposição de julgados com o mesmo fundamento de direito e não com o mesmo fundamento de facto.
6º - O critério de interpretação de normas jurídicas de maior relevância é o da interpretação das normas em conformidade com a Constituição; a interpretação que o Pleno da Secção fez das normas das alíneas b) e b`) do art. 24º do ETAF viola o direito constitucional de acesso ao direito, consagrado no art. 20º da CRP.
7º - A garantia da protecção jurídica, incluindo a via judiciária estende-se a todos e quaisquer direitos e interesses legítimos, a todas as situações juridicamente protegidas. Cabe no âmbito normativo deste direito o direito a uma tutela judicial efectiva, que, no caso em apreço, foi violado com a decisão proferida pelo Pleno ao vedar
às recorrentes a possibilidade de ver apreciado o direito ao recurso com fundamento na alínea b) do art. 24º do ETAF.
8º - Mas, se este for o sentido e alcance da norma, então é a norma da alínea b) do art. 24º do ETAF inconstitucional, por violar o direito de acesso ao direito, consagrado no art. 20º da CRP.
9º - Assim, as normas das alíneas b) e b`) do art. 24º do ETAF, interpretadas no sentido de que os pressupostos dos recursos de acórdãos da secção que perfilhem solução oposta à de acórdão da mesma secção ou do respectivo Pleno impõem que as situações de facto apreciadas nos dois acórdãos sejam iguais ou idênticas, viola o princípio constitucional «o direito de acesso ao direito», na interpretação e aplicação concreta nele feita.
(...)”.
2. A reclamação por nulidade foi, porém, desatendida por acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, de 17 de Maio de 2001 (fls. 158 e 159). Para tanto escudou-se aquele Tribunal, em síntese, na seguinte fundamentação:
“(...)
2. Por força da remissão do art. 102º da LPTA, os casos de nulidade dos acórdãos deste Supremo Tribunal são os previstos no art. 716º do CPC, isto é, além dos casos previstos no art. 668º/1 do CPC, a hipótese de o acórdão ser lavrado contra o vencido. Ora, é manifesto que a pretensa inconstitucionalidade da interpretação acolhida pelo tribunal das normas das alíneas b) e b`) do art. 24º do ETAF, poderá constituir erro de julgamento, mas não é subsumível a qualquer das hipóteses típicas de nulidade. Tamanha é esta evidência que maior esforço demonstrativo seria desperdício. Aliás, o requerimento de fls. 134 nada contém que permita entender por que vias poderia caber a essa alegada infracção do art. 20º da CRP a qualificação de nulidade do acórdão”.
3. Inconformadas com a assim decidido as recorrentes interpuseram, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso de constitucionalidade, “para apreciação da conformidade com a Constituição da norma que se extrai das alíneas b) e b`) do artigo 24º do ETAF, na interpretação que lhe deu o Supremo Tribunal Administrativo, por alegada violação do disposto no artigo 20º da Constituição”.
4. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso (fls. 169 a 172). É o seguinte, na parte decisória, o seu teor:
“4. O recurso previsto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe, além do mais, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica - ou de uma sua interpretação normativa - e que, não obstante, a decisão recorrida a tenha aplicado no julgamento do caso. Ora, constitui desde há muito jurisprudência assente neste Tribunal (veja-se, entre muitos nesse sentido, os acórdãos nºs 62/85, 90/85 e 450/87, in Acórdãos do T.C., 5º vol., p. 497 e 663 e 10º vol., pp. 573, respectivamente) que a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo quando tal se faz em tempo de o tribunal recorrido a poder decidir e em termos de ficar a saber que tem essa questão para resolver - o que exige que a questão seja suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a mesma inconstitucionalidade respeita (ou seja: em regra, antes da prolação da sentença). Em consequência, tem este Tribunal entendido de forma reiterada que, em princípio, não constitui meio idóneo para suscitar a questão de inconstitucionalidade o requerimento de arguição de nulidades da decisão. Nesse sentido escreveu-se, por exemplo, no supra citado acórdão nº 450/87 “Deste modo, porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença, e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão, nem torna esta obscura ou ambígua, há-de ainda entender-se - como este Tribunal tem entendido - que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade...”. Ora, no caso que é objecto dos autos, apenas na reclamação por nulidade da decisão recorrida as recorrentes suscitaram a questão de constitucionalidade que agora pretendem ver apreciada, o que, de acordo com a jurisprudência antes exposta, não pode já considerar-se durante o processo. Não tendo, pois, sido suscitada antes de proferida a decisão recorrida a questão da constitucionalidade da norma que se extrai das alíneas b) e b`) do artigo 24º do ETAF, conforme exige a al. b) do nº 1 do artigo 70º da lei do Tribunal Constitucional, ao abrigo da qual é interposto o recurso, tal obsta, só por si,
à possibilidade de conhecer do objecto do mesmo”.
4. É desta decisão que vem interposta pelas recorrentes, ao abrigo do disposto no art. 78º-A, nº 3 da LTC, a presente reclamação para a Conferência, que vem fundamentada, em síntese, nos seguintes termos:
“(...)
3º - Ora, como se depreende do presente a questão de inconstitucionalidade levantada não poderia ter sido suscitada antes da decisão final, porque as normas cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada – alíneas b) e b`) do art. 24º do ETAF – só foram aplicadas no acórdão final proferido pelo STJ; até então aquelas normas não haviam sido aplicadas nem interpretadas, em desconformidade com a Constituição.
4º - A garantia da protecção jurídica, incluindo nesta a da constitucionalidade das normas, estende-se a todos os momentos do processo, abrangendo também a decisão final; os cidadãos têm direito à tutela judicial efectiva da conformidade de todas as decisões com as normas constitucionais.
5º - Quando o legislador da norma do art. 70º nº 1 al. b) da LTC fez depender o recurso para o TC do pressuposto de que a inconstitucionalidade deverá ser suscitada durante o processo não quis dizer que essa questão deveria ter sido suscitada antes de proferida a sentença final; o pressuposto da inconstitucionalidade p. na al. b) do nº 1 do art. 70º da LTC significa que o recorrente tem que, previamente ao recurso para este Tribunal, suscitar a questão no juiz a quo, seja pela via de eventuais recursos extraordinários, seja pela via da arguição da nulidade por violação da Constituição.
6º - A decisão sumária objecto da presente reclamação e toda a jurisprudência nela citada a seu favor, assentam numa interpretação literal da norma, que não está de acordo com a vontade do legislador.
7º - Entender-se como correcta a decisão sumária é vedar à apreciação deste Tribunal todas as questões de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade que só podem ser suscitadas após a decisão final, e quando só nestas decisões foram as normas apreciadas e aplicadas em desconformidade com a Constituição.
8º - Pelo exposto, estamos em total desacordo com a decisão sumária ao decidir não conhecer o objecto do recurso por não Ter sido suscitada a questão antes de proferida a decisão final, e porque, no caso em apreço, as normas em causa não foram aplicadas nem eram aplicáveis, antes dela, logo, não podia a questão de constitucionalidade Ter sido suscitada anteriormente”.
5. Notificado para responder, querendo, à reclamação das recorrentes, o recorrido veio aos autos para sustentar a sua improcedência.
Cumpre apreciar e decidir.
III – Fundamentação
6. Na decisão sumária de fls. 169 a 172, ora reclamada, decidiu o Relator, em reafirmação da jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional, não ser possível conhecer do objecto do recurso que as recorrentes pretenderam interpor, por estas apenas terem suscitado a questão de constitucionalidade que pretendiam ver apreciada já depois de proferida a decisão recorrida, concretamente na sua reclamação por nulidade.
Com a presente reclamação as reclamantes pretende contestar o assim decidido, alegando, fundamentalmente, que:
a) a jurisprudência que vem sendo seguida pelo Tribunal Constitucional, e que foi reiterada pela decisão reclamada, no sentido de interpretar a norma do art.
70º, nº 1, al. b), da LTC, como exigindo que a questão de constitucionalidade seja suscitada antes de proferida a decisão recorrida, é excessivamente formalista e assenta numa interpretação literal da norma que não está de acordo com a vontade do legislador;
b) no caso concreto, nunca as recorrentes poderiam ter suscitado a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida porquanto foi esta que, pela primeira vez, aplicou os preceitos - as alíneas b) e b`) do art. 24º do ETAF - de que se extrai a norma cuja constitucionalidade pretende ver apreciada.
Vejamos.
7. Não têm, desde logo, razão as recorrentes quando acusam a interpretação que vem sendo feita pelo Tribunal Constitucional da expressão «durante o processo» de ser excessivamente formalista e literal e de ser mesmo contrária à vontade do legislador. Para além do que, com interesse para esta questão, já se deixou dito na decisão reclamada, recorda-se agora, apenas, o que se escreveu, por exemplo, no Acórdão nº 15/95 (ainda inédito), e tem sido por inúmeras vezes repetido: “a locução
«durante o processo» exprime precisamente o desiderato da suscitação na pendência da causa da questão de constitucionalidade, em termos de esta mesma questão ser tida em conta pelo tribunal que decide. Esta ideia é, afinal, corolário da natureza e do sentido da fiscalização concreta de constitucionalidade de normas e, em especial, do recurso de parte que dela participa. Aí a questão de constitucionalidade é uma questão incidental, em estreita relação com o feito submetido a julgamento, só podendo incidir sobre normas relevantes para o caso. O interesse pessoal na invalidação da norma (G. Canotilho e V. Moreira) só faz sentido e se concretiza na medida em que a parte confronte, em tempo, o tribunal que decide a causa com a controversa validade constitucional das normas que aí são convocáveis”.
Em suma: a exigência, como regra, de que a questão de constitucionalidade seja colocada perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida - em tempo e em termos de este estar obrigado a dela conhecer - não é uma questão de formalismo, como pretendem as recorrentes, mas um corolário lógico da natureza e sentido do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.
8. Alegam ainda as reclamantes que não poderiam ter colocado a questão de constitucionalidade antes de ter sido proferida a decisão recorrida, porquanto foi esta que, pela primeira vez, aplicou a norma objecto do recurso.
Vejamos.
O Tribunal Constitucional tem efectivamente admitido que a questão da constitucionalidade de uma norma jurídica - ou de uma sua interpretação normativa - seja suscitada já depois de proferida a decisão, em hipóteses, excepcionais, em que o recorrente não tenha tido oportunidade processual de o fazer antes, designadamente por a aplicação dessa norma pela decisão recorrida ser de todo em todo imprevisível, em termos de não lhe ser exigível que a antecipasse.
É esta hipótese factual que as recorrentes, de alguma forma, entendem que se encontra retratada nos autos.
Porém, como vai ver-se, sem razão.
Efectivamente, pretendendo as ora reclamantes recorrer para o Pleno da Secção de Contencioso do Supremo Tribunal Administrativo, era evidente que podiam antecipar a aplicação por aquele Tribunal do disposto no artigo 24º, alíneas b) e b`), do ETAF, preceitos que se referem precisamente aos pressupostos de admissibilidade do recuso que então pretenderam interpor. A isto acresce que a própria interpretação normativa desses preceitos que veio a ser seguida pela decisão recorrida - exigindo, como pressuposto de admissibilidade do recurso para o Pleno, a verificação de uma identidade ou semelhança substancial das situações de facto sobre as quais recaíram o “acórdão fundamento” e o “acórdão recorrido” -, era também ela previsível, pois nesse sentido (como o Ministério Público então demonstrou no seu parecer) se havia já pronunciado, em outros arestos, o Pleno daquele Tribunal.
Assim, sendo previsível - e era-o efectivamente - que a decisão recorrida pudesse vir a dar às normas objecto do recurso - as alíneas b) e b´) do art. 24º do ETAF - a dimensão normativa que as ora recorrentes reputam de inconstitucional, era-lhe efectivamente exigível que tivessem, logo nas alegações de recurso para o Pleno do STA, suscitado essa mesma inconstitucionalidade.
É que, como este Tribunal tem afirmado repetidamente, recai sobre as partes o
ónus de analisarem as diversas possibilidades interpretativas susceptíveis de virem a seguidas e utilizadas na decisão e utilizarem as necessárias precauções, de modo a poderem, em conformidade com a orientação processual considerada mais adequada, salvaguardar a defesa dos seus direitos (cfr., nesse sentido, entre muitos outros, o acórdão nºs 479/89, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14º vol., p. 149).
Em suma: podiam (porque tiveram oportunidade processual) e deviam (porque sobre elas recai esse ónus) as ora recorrentes - se entendiam que a interpretação normativa dos preceitos em causa que veio a ser adoptada pelo Supremo Tribunal Administrativo era inconstitucional - ter colocado a questão de constitucionalidade que agora pretendem ver apreciada antes de ter sido proferida a decisão recorrida.
Não o tendo feito, não podem agora, de acordo com a jurisprudência antes expressa, que mantém inteira validade, conhecer-se do objecto do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, por falta dos seus pressupostos legais de admissibilidade.
III – Decisão
Por tudo o exposto, decide-se indeferir a presente reclamação. Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs. cada um.
Lisboa,9 de Janeiro de 2002 José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida