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Procº nº: 1141/98.
2ª Plenário. Relator:- BRAVO SERRA.
1. O Provedor de Justiça veio requerer, com fundamento na alínea d) do nº 2 do artigo 281º da Constituição, a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do nº 1 artº 85º do Regulamento de Disciplina Militar aprovado pelo Decreto-Lei nº 142/77, de 9 de Abril, para tanto, em síntese, aduzindo:-
- estabelecendo o nº 1 do artº 79º Regulamento de Disciplina Militar que a competência para instaurar ou mandar instaurar processo disciplinar coincide com a competência disciplinar, e o nº 1 do artº 85 do mesmo Regulamento que o instrutor do processo é, em regra, o chefe que determinou a sua instauração, daí resulta que é a mesma pessoa quem determina a instauração do processo, procede à respectiva instrução e aplica a decisão punitiva;
- o artigo 266º da Constituição, que consagra o princípio da imparcialidade administrativa e é aplicável à administração militar, não pode deixar de reger no âmbito do procedimento administrativo sancionatório;
- ora, se o disposto no nº 1 do citado artº 79º não parece prejudicar a aplicação daquele princípio, já a norma cuja declaração de inconstitucionalidade solicita põe em causa as garantias postuladas pelo mesmo princípio, tanto mais que o processo disciplinar militar pode culminar na aplicação de sanções tão gravosas como a prisão, que, por isso, reclamam especiais cuidados no que respeita às garantias de imparcialidade;
- não parece compatível com as garantias consagradas no nº 10 do artigo 32º da Constituição concentrar numa mesma pessoa a competência para mandar instaurar processo disciplinar, instruí-lo e punir;
- se do regime constitucional respeitante ao processo criminal, bem como do Código de Processo Penal, resulta que diferentes hão-de ser os juízes da pronúncia e do julgamento, o que é estabelecido tendo em vista a garantia da imparcialidade do julgamento, igualmente em processo administrativo sancionatório não deverá coincidir na mesma pessoa a competência para instruir e aplicar a sanção, e isso porque, de resto, a imparcialidade administrativa só é integralmente garantida se existir separação institucional e procedimental entre o órgão que conduz a fase instrutória do procedimento administrativo e o órgão competente para praticar o acto decisório.
2. Ouvidos sobre o pedido o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro Ministro, veio o primeiro oferecer o merecimento dos autos, enquanto que o segundo sustentou conformidade com a Lei Fundamental por parte da norma questionada.
Concluiu assim o Primeiro Ministro a resposta que apresentou:-
“Considerando:
A. Que, tal como resulta do nº 2 do artº 266º da CRP, o princípio da imparcialidade se revela essencialmente como um corolário de acção administrativa, que t[e]m como destinatários imediatos ‘os órgãos e agentes administrativos’ quando exercem ‘as respectivas funções’;
B. Que a sua incidência como vínculo ao legislador quando este dispõe sobre organização administrativa, emerge da conjugação dos princípios da justiça, proporcionalidade e igualdade, vendo fundamentada a sua aplicação como parâmetro de constitucionalidade das leis, apenas quando estas:
a) Direccionam a administração para o preenchimento de fins de natureza não exclusivamente pública;
b) Tornem manifestamente impossível ou criem necessariamente sérios riscos de tomada de decisões não isentas;
c) Ou omitam ou depreciem garantias constitucionais dos administrados [;]
C. Que o preceito impugnado ao permitir, na esfera do poder disciplinar militar, o cúmulo competencial de poderes instaurativos, instrutórios e de decisão na mesma autoridade, não preenche nenhuma das situações descritas na alínea precedente, tanto mais que existe uma relação de harmonização entre o mesmo preceito e o disposto no artº 86º do CPA, que, na qualidade de legislação geral e supletiva em matéria de procedimento administrativo, também admite a referida acumulação;
D. Que, contrariamente ao que o autor afirma, o Tribunal Constitucional não defendeu que todos os princípios de Processo Penal relativos
às fases instrutória e decisória se deveriam ‘aplicar qua tale’ ao domínio da disciplina militar, já que, enquanto o primeiro consiste num processo judicial, o segundo é definível como um procedimento administrativo especial, para o qual a Constituição prevê, na al d) do nº 3 do seu artº 27º, a peculiar faculdade de os responsáveis pelo exercício do poder disciplinar poderem aplicar penas da privação da liberdade;
E. Que o Tribunal Constitucional reconhece no Ac. 103/87 as especificidades da ordem disciplinar militar, no quadro das notas características da instituição castrense, tais como ‘(...) a subordinação da actividade da instituição (e portanto da acção individualizada de cada um dos seus membros) não ao princípio da direcção e chefia comum à generalidade dos serviços públicos, mas a um peculiar princípio de comando em cadeia, implicando um especial dever de obediência; a sujeição dos mesmos a particulares regras disciplinares [e,] eventualmente, jurídico-penais;
F. Que o legislador detém, à luz do ordenamento constitucional, liberdade conformadora bastante para assegurar um procedimento de disciplina militar destinado a assegurar a eficácia dos imperativos da obediência e comando em cadeia, em cujo âmbito se inclui a possibilidade de concentração da função instrutória e decisória no âmbito do exercício do poder disciplinar;
G. Que a conduta administrativa dos órgãos da Administração Militar, se encontra sempre casuisticamente sujeita a ser invalidada quando bulir com o princípio da imparcialidade, mormente quando os actos concretamente praticados no mesmo exercício violarem as garantias dos arguidos; prosseguirem interesses alheios aos interesses públicos; revelarem um interesse pessoal e directo no caso de choque com o regime de impedimentos fixado pela legislação geral que regula o procedimento administrativo; demonstrarem uma manifesta falta de neutralidade; ou ostentarem uma visível falta de transparência na instrução e fundamentos da decisão[;]
H. Que da norma impugnada não decorre qualquer comando que determine, ou que crie riscos de ocorrência das situações acabadas de descrever;
Deve esse Venerando Tribunal não se pronunciar pela inconstitucionalidade do nº 1 do artº 85º do Regulamento de Disciplina Militar, assim fazendo a necessária Justiça”.
Apresentado memorando e fixada a orientação do Tribunal, cumpre decidir.
3. A norma sub iudicio determina que o instrutor do processo disciplinar é, em regra, o chefe que determinou a sua instauração.
De outro lado, no nº 1 do artº 79º do Regulamento de Disciplina Militar prescreve-se que a competência para instaurar ou mandar instaurar processo disciplinar (instauração essa que é imediata e obrigatoriamente efectivada por decisão dos chefes quando eles tenham conhecimento de factos que possam implicar responsabilidade disciplinar dos seus subordinados - cfr. artº 77º) coincide com a competência disciplinar, estatuindo-se no nº 1 do artº 94º que, se o chefe entender que a instrução do processo está completa, proferirá a sua decisão.
Como o requerente não põe em causa o citado nº 1 do artº
79º, tendo em conta que o teor literal da norma sindicada não rege sobre as relações entre a entidade instrutória e a entidade decisória e, por fim, ponderando o que comanda o aludido nº 1 do artº 94º, haverá que entender-se que o pedido abarca a norma ínsita no nº 1 do artº 85º do Regulamento de Disciplina Militar, no entendimento de que o chefe que instruir o processo disciplinar é o competente para aplicar a respectiva sanção.
Só assim, na verdade, é entendível o pedido, que não apela à conjugação normativa decorrente da articulação daqueles três preceitos.
É, pois, com estes cortornos que se irá analisar a questão.
4. Deverá, desde logo, sublinhar-se que o comando que se extrai da norma em causa (atendendo ao que acima ficou indicado) deve ser entendido como a «possibilidade» de convergirem numa mesma pessoa os poderes de instrução e decisão. E diz-se «possibilidade» já que, na prática usual - exceptuando as situações que se reportam a infracções leves - o que sucede é que, normalmente, o superior hierárquico que determina a instauração de procedimento disciplinar militar não é quem procede à instrução (cfr., aliás, o que se estatui nos números 2 e 3 do artº 83º do citado Regulamento).
Mas, dada aquela «possibilidade», importa verificar se, no processo disciplinar militar, a coincidência numa mesma pessoa das competências para instruir e punir se não compatibiliza com o princípio da imparcialidade da Administração.
Esta verificação impõe que sejam dadas respostas às seguintes subquestões:-
- saber se aquele princípio é aplicável no âmbito das Forças Armadas;
- saber se o mesmo princípio reclama, em geral, uma cisão entre a entidade instrutora e a entidade decisora;
- saber se, ainda que não seja dada resposta afirmativa
à anterior subquestão, de todo o modo, a cisão é exigida quando estejam em causa processos sancionatórios;
- saber, por último, se, atenta a natureza das sanções aplicáveis em processo disciplinar militar - que pode culminar com a aplicação de penas de prisão -, o falado princípio terá de ser perspectivado como implicando inevitavelmente a cisão entre entidade instrutora e entidade decisora.
Comecemos pela primeira subquestão.
5. Tem sido sustentado que o princípio da imparcialidade da Administração, esteado no nº 1 do artigo 266º da Lei Fundamental, vincula “todas as autoridades ou entidades, públicas ou privadas, que de alguma forma exerçam a função administrativa ou pratiquem actos em matéria administrativa” (assim, Maria Teresa de Melo Ribeiro, O Princípio da Imparcialidade da Administração Pública, 1996, 123).
Porque aquela disposição constitucional está vertida no Título IX da Parte III do Diploma Básico, e porque os preceitos relativos à Defesa Nacional se encontram consagrados no Título X, poderia suscitar-se a dúvida sobre se as regras e princípios constitucionais aplicáveis à Administração Pública seriam também aplicáveis à Defesa Nacional.
A uma tal dúvida, porém, tem sido dada resposta positiva
(cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 921, que defendem que “no caso da Administração estadual, estão abrangidos todos os seus domínios, tanto da civil como da militar”, e Alexandra Leitão, A Administração Militar, na colectânea O Direito da Defesa Nacional e das Forças Armadas, 441 a 449), tanto mais que o artigo 270º da Constituição - que se reporta às restrições dos direitos, liberdades e garantias dos militares, agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efectivo, bem como dos agentes dos serviços de segurança - se encontra incluído no Título IX e não no Título X (antecedentemente epigrafado de Forças Armadas). A alteração levada a efeito pela Revisão Constitucional operada pela Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro, não pode, aliás, neste particular, deixar de ser entendida como querendo significar que foi ultrapassada a separação então existente entre a Administração Pública e as Forças Armadas, que resultava da organização do poder político estabelecido no período de transição posterior a 1976, organização essa que se visou justamente terminar com a 2ª Revisão Constitucional, com a qual ficou sublinhada a recusa de uma concepção de acordo com a qual as Forças Armadas como que constituíam uma comunidade separada, dotada de ordenamento interno autónomo, ficando, pois, após a dita Revisão, consagrado inequivocamente o entendimento segundo o qual “só existe uma autêntica lealdade constitucional das forças armadas se, sem prejuízo do reconhecimento da sua especificidade, o próprio subsistema jurídico-militar for leal à Constituição” (usaram-se as palavras de António de Araújo, Direitos e deveres dos cidadãos perante a Defesa Nacional, citada colectânea, 314 a 323; neste ponto, aliás, no Acórdão deste Tribunal nº 103/87, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º volume, 99 e segs., disse-se que com a 2ª Revisão Constitucional se pretendeu insofismavelmente “significar a inclusão das Forças Armadas na Administração Pública”.
6. Alcançado que as Forças Armadas são parte integrante da Administração Pública e, consequentemente, que aquelas estão subordinadas aos princípios prescritos no nº 2 do artigo 266º da Constituição, somos levados a entrar na análise da segunda subquestão, qual seja a de saber se o princípio da Imparcialidade da Administração reclama uma separação pessoal entre quem instrui o procedimento administrativo e quem o decide.
Na verdade, e como se viu, o requerente afirma que um tal princípio só se realiza integralmente se uma tal cisão ocorrer.
Será assim?
Gomes Canotilho e Vital Moreira (ob. cit., 925) defendem que o princípio da imparcialidade da Administração, que deve reger a actividade da Administração, impõe que, “no conflito entre o interesse público e os interesses particulares, a Administração deve proceder com isenção na determinação da prevalência do interesse público, de modo a não sacrificar desnecessária e desproporcionadamente os interesses particulares (imparcialidade na aplicação do princípio da proporcionalidade)”, exigindo também uma “igualdade de tratamento dos interesses dos cidadãos através de um critério uniforme de prossecução do interesse público”, E adiantam que aquele princípio “que se relaciona, embora não se confunda, com o princípio da igualdade, deve, por outro lado, distinguir-se do princípio da neutralidade, pois a Administração não pode conceber-se como neutral em relação à prossecução do interesse público”.
Também Vieira de Andrade (A Imparcialidade da Administração como Princípio Constitucional, a págs. 219 e seguintes do volume 50 do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra) ensina que “a actividade administrativa será imparcial sempre que as decisões respectivas sejam determinadas exclusivamente com base em critérios próprios, adequados ao cumprimento das suas funções específicas no quadro da actividade geral do Estado, e na exacta medida em que os critérios não sejam substituídos ou distorcidos por influência de interesses alheios à função, sejam estes interesses pessoais do funcionário, interesses de indivíduos, de grupos sociais, ou mesmo interesses políticos concretos do Governo” (na mesma senda, Mário Esteves de Oliveira, Direito Administrativo, 1º volume, 1980, 331, Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, 1º volume, 251 e segs. - autor que não deixa de efectuar o paralelismo entre o nº 2 do artº 262º da nossa Constituição e a forma como o princípio da imparcialidade da Administração foi consagrado na constituição italiana -, João Caupers, Introdução ao Direito Administrativo, 2000, 82 e segs., Maria Teresa de Melo Ribeiro,. ob. cit., 155 e
156, e Rui Machete, O Processo Administrativo Gracioso Perante a Constituição Portuguesa de 1976, in Estudos de Direito Público e Ciência Política, 379, que associa o princípio da imparcialidade com o princípio da legalidade).
Concluir-se-á desta arte, que, como diz Freitas do Amaral
(Direito Administrativo, 3º volume, 205), do princípio da imparcialidade da Administração resultam os seguintes corolários:
“a) Proibição de favoritismos ou perseguições relativamente aos particulares, sejam quais forem os motivos invocados, designadamente motivos políticos, partidários ou sindicais;
b) Proibição de os órgãos da Administração tomarem decisões sobre assuntos em que estejam pessoalmente interessados, por razões de carácter familiar, económico, político, etc.;
c) Proibição de os órgãos da Administração tomarem parte ou interesses em contratos celebrados com a Administração ou por ela aprovados ou autorizados”.
Em face do que é postulado pelo princípio de que curamos, terá de reconhecer-se que a lei ordinária, para além das garantias que directamente se expressam na Lei Fundamental, deverá ainda estabelecer garantias que se lobriguem como adequadas e suficientes para que a plenitude daquele princípio seja assegurada.
Ora, tendo como perspectiva as garantias resultantes directamente da própria Constituição, é evidente que, quanto a elas, inexiste qualquer liberdade de conformação do legislador que, por isso, as não poderá deixar de consagrar, não podendo, também, editar normação que afecte o seu conteúdo essencial. Assim, quanto a tais garantias, na margem de liberdade conformativa do legislador unicamente se poderá incluir a determinação das respectivas formas, modos, termos e, porventura, circunstâncias - tudo como decorrência da concretização dessas específicas garantias.
Já pelo que toca à estipulação de meios tendentes a garantir a adequação e suficiência do princípio da imparcialidade administrativa, e na falta de preceitos constitucionais directamente consagradores desta ou daquela concreta garantia que nesse princípio entronque, deve reconhecer-se que a liberdade de conformação do legislador ordinário é mais lata (e nem sempre com idêntico dimensionamento). Na realidade, onde estiverem menos especificadas ou densificadas na Constituição as garantias de imparcialidade administrativa, mais ampla pode ser a intervenção criadora do legislador ordinário; e, pelo contrário, se a Lei Fundamental já concretizou mais pormenorizadamente ou densificou um catálogo de garantias concretas, a actividade legislativa deverá apresentar-se mais reduzida.
Fornece-nos o Diploma Básico, para além das garantias subjectivas incluídas no seu artigo 50º, nº 3, (destinadas a garantir a isenção e independência no exercício de cargos de carácter electivo) e no artigo 269º, nº 5 (incompatibilidades quanto ao exercício de empregos ou cargos públicos com outras actividades), um rol de garantias objectivas gerais - quer de carácter preventivo, quer de carácter repressivo - da actividade administrativa, com vista a ser atingido o desiderato da imparcialidade do procedimento administrativo.
Neste sentido, avultam, por exemplo, os princípios da administração aberta e da obrigatoriedade da notificação dos actos administrativos - artigo 268º, números 1 a 3 -, a existência de um procedimento administrativo que assegure a participação dos interessados - artigo 267º, nº 5
-, a consagração do concurso público como forma normal de acesso à função pública - artigo 47º, nº 2 -, a exigência de fundamentação expressa dos actos administrativos que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos - artigo 268º, nº 3 -, o asseguramento dos meios contenciosos indispensáveis a uma tutela jurisdicional efectiva - artigo 268º, nº 4 -, a possibilidade de assistência por advogado perante qualquer autoridade - artigo 20º, nº 4 - e a possibilidade de queixa ao Provedor de Justiça - artigo 23º.
Perante um tal rol, é perfeitamente compreensível que o legislador ordinário tenha, no Código do Procedimento Administrativo (aprovado pelo Decreto-Lei nº 442/91, de 15 de Setembro, na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 6/96, de 15 de Novembro), para além de concretizar algumas daquelas estipulações, acrescentado outras garantias de imparcialidade. É disso exemplo o prescrito nos seus artigos 166º, 182º e 183º e a minuciosa regulação constante dos artigos 44º a 51º no que tange às garantias subjectivas de imparcialidade, com o estabelecimento de casos e situações de impedimento e fundamentos de escusa ou suspeição.
Simplesmente, se é sustentável que se diga que uma “das vias adequadas para prevenir a violação do princípio da imparcialidade e promover a imparcialidade administrativa consiste em distinguir os órgãos administrativos instrutórios dos órgãos decisórios” (como defende Maria Teresa de Melo Ribeiro, dita obra, 310), isso não significa que a Constituição tal imponha, ou que essa via se apresente como absolutamente necessária e indispensável para se atingir ou promover aquele princípio. Mister é, isso sim, que, na falta dessa consagração, se encontrem reguladas no ordenamento jurídico formas garantísticas que, de modo adequado e suficiente, assegurem inequivocamente que a Administração, ao desenvolver a sua actividade, irá agir com respeito pelo mínimo de garantias de imparcialidade.
Ora, tendo em conta o que se encontra consagrado no Código do Procedimento Administrativo e que acima se anotou, entende-se que aí estão adequadamente estabelecidas regras de cujo funcionamento resulta a imposição da prossecução de uma actividade administrativa que, por elas, se tem de pautar com independência e imparcialidade, sem que se torne necessária a consagração da cisão entre a entidade instrutora e a entidade decisora. Por isso, essa cisão não é estabelecida em tal Código (cfr. artº 86º, nº 1).
Vale a pena referir que, do mesmo modo, um professor quando ensina está sujeito ao princípio da imparcialidade, estando-o também quando elabora as provas de avaliação, quando as corrige e quando avalia os respectivos resultados, sem prejuízo de poder acumular essas sucessivas funções. E, no particular que tratamos, tem o Supremo Tribunal Administrativo entendido que não viola o princípio da imparcialidade a actuação do dirigente máximo do serviço quando homologa a classificação final dos candidatos elaborada pelo júri a que presidiu em concurso para provimento de pessoal do respectivo organismo ou serviço, e preste o director-geral, que foi presidente do júri que homologou a lista de classificação final de um concurso, informação no recurso hierárquico necessário (cfr. acórdãos de 11 de Junho de 1992, no Apêndice ao Diário da República de 16 de Abril de 1996, e de 8 de Abril de 1997, no Processo nº
29.920, e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Jurisprudência Administrativa - Sumários, 590 e 591).
Ora, a existência, já assinalada, da corte de garantias estabelecidas pela lei ordinária, apresenta-se como adequada e minimamente suficiente para cumprir a efectivação do princípio da imparcialidade administrativa constitucionalmente imposto, sem que se torne absolutamente indispensável que seja consagrada naquela lei a regra da cisão, no procedimento administrativo, entre a entidade instrutória e a entidade decisora, sendo de sublinhar que, de toda a forma, aquela separação funcional não é algo de inarredável face ao texto da Lei Fundamental.
7. Mas, como se disse, porque importa saber se, a concluir-se pela não indispensabilidade da consagração da regra da cisão de que se tratou acima, de todo o modo haveria que averiguar se essa indispensabilidade teria de ser consagrada no âmbito dos processos sancionatórios, é ocasião de se enfrentar a terceira subquestão.
Convirá anotar que a norma que se surpreende no nº 10 do artigo 32º da Constituição (que, a partir da Revisão Constitucional decorrente da Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, passou a assegurar os direitos de audiência e defesa em todos os processos sancionatórios, e não apenas nos processos de contra-ordenação), nada veio a acrescentar ao que já se prescrevia na versão da Lei Fundamental anterior àquela Revisão relativamente aos procedimento disciplinar efectuado no âmbito da Administração Pública. De facto, no nº 3 do artigo 269º estabelece-se, como já se estabelecia, que em processo disciplinar são garantidas ao arguido as suas audiência e defesa. E daí que se conclua que a inclusão, levada a efeito no falado nº 10 do artigo 32º, do asseguramento dos direitos de audiência e defesa nos processos sancionatórios não tem o significado de fazer atrair o regime destes processos em geral, e do processo disciplinar em especial, para o regime do processo criminal.
É bem certo que este Tribunal já reconheceu (cfr. citado Acórdão nº 103/87) que o “princípio da presunção de inocência dos arguidos, consagrado expressamente para o processo criminal no artigo 32º, nº 2, da Constituição é “igualmente válido, na sua ideia essencial, nos restantes domínios sancionatórios e, agora, em particular, no domínio disciplinar”. Todavia, pese embora esse reconhecimento, nunca foi afirmado por este órgão de administração de justiça que a generalidade das garantias prescritas constitucionalmente para o processo criminal de deveriam aplicar, de pleno, no
âmbito disciplinar; o que se afirmou foi, por um lado (mesmo aresto) que, salvo para a aplicação da pena de admoestação, era exigível a existência de um processo, “pois que, não havendo processo (ainda que só verbal), desde logo se não vê que possam ter lugar quaisquer diligências probatórias necessárias ao exercício” do direito de defesa; e, por outro (cfr. Acórdão nº 90/88, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º volume, 311 e segs.) que, se “certos princípios expressamente consagrados para o processo criminal são igualmente válidos”, na sua ideia essencial, para os restantes processos sancionatórios, daí não decorria necessariamente que, por exemplo, a assistência de defensor devesse ser considerada como algo de constitucionalmente garantido no âmbito da generalidade dos procedimentos disciplinares.
O requerente, como se viu, invoca que se do regime constitucional respeitante do processo criminal, bem como do Código de Processo Penal, resulta que diferentes hão-de ser os juízes da pronúncia e do julgamento, o que é estabelecido tendo em vista a garantia da imparcialidade do julgamento, igualmente em processo administrativo sancionatório não deverá coincidir na mesma pessoa a competência para instruir e aplicar a sanção.
Sem que seja necessário discutir agora em que medida é que o Diploma Básico impõe, perante o gizar do processo criminal como devendo obedecer a uma estrutura acusatória, a cisão entre o juiz da instrução ou da pronúncia e o juiz do julgamento (e sobre esse ponto já este Tribunal teve ocasião de discretear - cfr. Acórdãos números 13/83 e 219/89, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1º volume, 151 e segs. e 19º volume, tomo 2, 717 e segs.), o que é certo é que a assimilação do processo criminal ao processo disciplinar tem limites derivados da natureza de um e de outro, e dos objectivos, necessariamente distintos, que um e outro visam prosseguir. Aliás, seria desde logo questionável em que medida é imposta a estrutura acusatória do processo disciplinar atenta a sua específica natureza.
Efectivamente, a responsabilidade disciplinar visa assegurar o complexo de deveres a cuja observância é obrigado quem pertence a dada instituição ou corpo social dotado de organização com carácter de estabilidade e de permanência, sujeição essa que, correlativamente, implica que haja, nessa instituição ou corpo social, órgãos dirigentes aos quais é atribuída competência para reprimir, mediante a aplicação de sanções, a violação daqueles deveres, aplicação que, obviamente, atinge o prevaricador enquanto membro da instituição ou corpo social e não enquanto cidadão.
O poder punitivo disciplinar não se identifica, assim, com aquele poder punitivo do Estado - exercido sobre todo o território do Estado e sobre quem nele se encontre - exercido no âmbito criminal. O poder punitivo disciplinar é, antes, um poder de «supremacia especial», que apenas pode ser exercido relativamente a quem pertence à instituição ou corpo social.
É cabido, neste ponto, citar Freitas do Amaral (Conceito e Natureza do Recurso Hierárquico, 1º volume, 1981, 50 e 51), que assim discorre:-
“...............................................................................................................................................................................................................................................................
Na verdade, para nós, a relação hierárquica tem um conteúdo complexo e só pode considerar-se verdadeiramente perfeita e completa quando for integrada, simultaneamente, por três poderes hierárquicos típicos - acompanhados pelos correlativos deveres, do lado do subalterno.
Queremos referir-nos ao poder de direcção (faculdade de dar ordens e instruções ao subalterno), ao poder de superintendência (faculdade de revogar e, eventualmente, modificar os actos do subalterno) e ao poder disciplinar
(faculdade de punir e, eventualmente, expulsar o subalterno).
Na verdade, de que valeria a um superior hierárquico poder dar ordens se, uma vez desobedecidas estas pelo subalterno, aquele não tivesse a possibilidade de eliminar ou substituir os actos que as contrariassem e de punir ou expulsar do serviço os agentes que as ignorassem?
No poder de superintendência, como controle sobre os actos, o essencial está na revogação; no poder disciplinar, como controle sobre as pessoas, o essencial está na punição. Em ambos reside a eficácia do poder de direcção, que sem eles não passa de mera fachada.
Concluímos , assim, que o vínculo hierárquico só é completo e perfeito quando assenta na existência simultânea dos três poderes - e dos deveres ou sujeições correlativas.
...............................................................................................................................................................................................................................................................”
De assentar é, pois, que o poder disciplinar - conquanto deva ser exercido com respeito pelos deveres fundamentais, porquanto mal se compaginava a ausência desse respeito no contexto de um Estado de direito - tem um carácter instrumental relativamente ao funcionamento global da Administração, sendo o princípio da hierarquia, que nesta rege inquestionavelmente, que implica que o exercício daquele poder caiba ao superior hierárquico.
Se o poder disciplinar é instrumental do poder administrativo - e aquele atribuído a uma dada entidade com competência hierárquica superior dentro da instituição ou corpo social com a finalidade de assegurar a prossecução dos fins destes -, então, nessa medida, é de admitir que aquele primeiro poder se exerça com ampla discricionaridade, pautando-se, em larga dimensão, por critérios de conveniência e de oportunidade, o que, seguramente, leva a que se conclua que existe aqui uma profunda diferença relativamente à jurisdição criminal, na qual a vinculação à lei é essencial, sendo vedadas as avaliações de oportunidade e conveniência, ainda que fundadas no interesse público.
Por isso, é compreensível que, nessa jurisdição, como se disse no Acórdão nº 581/2000 (no Diário da República, 2ª Série, de 22 de Março de 2001), “as garantias de imparcialidade hão-de ser maiores do que noutros domínios”.
É certo que o Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei nº
24/84, de 16 de Janeiro (cfr. nº 1 do seu artº 51º) consagra (exceptuando-se os casos de menor relevância em que é aplicável a pena de repreensão) a regra da separação entre a entidade instrutora e a entidade decisora. Simplesmente, isso, como resulta do que veio de se dizer, não representa a consagração de algo que é imposto constitucionalmente, antes representando a efectivação, por via do direito ordinário, de uma garantia adicional que tem como pano de fundo uma mais acentuada prossecução da imparcialidade da Administração.
Aliás, o mesmo legislador, ao reger o procedimento disciplinar laboral, optou por um outro caminho, justamente o de não consagrar a separação entre quem instrui e decide (cfr. nº 5 do artº 10º do Decreto-Lei nº
64-A/98, de 27 de Fevereiro), e isso não obstante ter de reconhecer-se que o poder disciplinar representa, no campo do direito do trabalho, um instrumento de auto-tutela da posição jurídica do poder de direcção do empregador, sendo um e outro daqueles poderes facetas que exprimem a faculdade de organização do trabalho.
Concluir-se-á, desta sorte, que não será da mera circunstância de no âmbito de certo procedimento disciplinar coincidirem na mesma pessoa - o superior hierárquico - as competências instrutórias e decisórias que resulta a violação do princípio da imparcialidade. O que se reclama, isso sim, para que não fique sem conteúdo tal princípio, é que o procedimento disciplinar concreto preveja garantias objectivas e subjectivas que assegurem esse princípio constitucionalmente consagrado.
8. Impõe-se, pois, entrar na dilucidação da última subquestão, qual seja a de saber se, tendo em atenção que o processo disciplinar militar pode culminar com a aplicação da pena de prisão, o mesmo exige a adopção de especiais cuidados referentemente ao asseguramento da garantia da imparcialidade, o que imporia, no ponto, à aproximação a certos princípios consagrados constitucionalmente para o processo criminal, designadamente, no que ora releva, a adopção do princípio da separação entre quem instrui ou acusa e quem pune.
Não se nega, dada a evidência, que a especificidade do processo disciplinar militar, decorrente, no que agora importa, da possibilidade de aplicação de penas de prisão, justifica, e até impõe, que sejam asseguradas certas garantias estabelecidas para o processo criminal, garantias essas que, constitucionalmente, não são impostas para os demais processos sancionatórios, designadamente para os processos disciplinares (cfr., neste particular, o entendimento sufragado por este Tribunal no já citado Acórdão nº 90/88 quanto à escolha de defensor).
Porém, e como já se viu, a assimilação do processo disciplinar ao processo criminal tem de ter limites derivados das respectivas naturezas.
Não se vá sem dizer que a Lei Fundamental não deixou de exceptuar, quanto ao princípio da proibição da privação da liberdade a não ser em consequência de sentença judicial condenatória, os casos de prisão disciplinar imposta a militares [alínea d) do nº 3 do artigo 27º].
Seja qual for o entendimento que se der a essa excepção
- nomeadamente saber se a consagração constitucional dessa excepção visa, e tão só, o estabelecimento de uma regra de competência de harmonia com a qual se admite a possibilidade de, sem que esteja em causa um procedimento criminal culminante com uma sentença judicial condenatória, os chefes militares poderem impor penas de prisão -, o que é certo é que se intentou consagrar que um tal género de sanção possa ser aplicável fora daquele processo e, consequentemente, possa ser imposta num procedimento que, por ser de natureza diversa daquele, não tem, inarredavelmente, de conter todos os formalismos garantísticos do processo penal.
É que, se a intenção do legislador constituinte fosse a de o procedimento gizado para a aplicação de penas disciplinares de prisão aos militares dever obedecer aos mesmos princípios e de respeitar as mesmas garantias estabelecidas para o processo criminal, então ficaria sem conteúdo
útil a disposição excepcional constante da mencionada alínea d) do nº 3 do artigo 27º. Não se justificava, na verdade, a adopção de um processo que só nominalmente fosse apelidado de disciplinar, porquanto, respeitantemente às garantias e formalismos, era idêntico ao processo criminal. A única diferença culminaria, e só, na não existência de uma sentença judicial condenatória.
O Provedor de Justiça, como se viu, não impugna a circunstância de quem ordena a instauração do processo disciplinar militar também profira a decisão. O que ataca é o facto de o chefe que decide ser [recte poder ser] quem pratica os actos de investigação ou de instrução.
Já se teve ocasião de dizer que, relativamente à generalidade dos processos disciplinares, a cisão entre entidade instrutora e entidade decisora, conquanto constitua uma garantia adicional do princípio da imparcialidade da Administração, não constitui, porém, uma garantia essencial para o asseguramento desse princípio, e sem a qual o processo disciplinar se tornaria constitucionalmente censurável. E, identicamente, teve ocasião de referir que o que se torna indispensável é averiguar se tal processo apresenta, na sua globalidade, garantias mínimas que se antevejam com suficiência para que aquele princípio, no seu conteúdo essencial, não seja postergado.
Reclama-se, por isso, que a investigação ou instrução não seja conduzida por quem tem interesse pessoal no seu desfecho; que seja facultado ao arguido, sem peias, a apresentação das suas razões e motivos, quer em sede de facto, quer em sede de direito, o que inculca, necessariamente, a faculdade de requerer diligências que se não antolhem como despropositadas ou impertinentes; que o arguido possa ser assistido por defensor; que haja um processo, se as sanções aplicáveis se não situarem no patamar menos grave da simples repreensão; que a decisão seja fundamentada; e que seja permitido ao arguido servir-se dos meios recursórios contenciosos.
Dada a ausência, no Regulamento de Disciplina Militar, de qualquer norma sobre impedimentos e suspeições (ao invés do que sucede no Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local - cfr. seu artº 52º), isso significa que o processo disciplinar militar está inquestionavelmente «contaminado» do vício de não asseguramento do princípio da imparcialidade administrativa?
É o que se irá ver.
É indispensável, como decorre do que se veio dizer, que o procedimento disciplinar, como procedimento administrativo que é, contenha normação que concretize a “proibição de os órgãos da Administração tomarem decisões sobre assuntos em que estejam pessoalmente interessados” (como refere Freitas do Amaral, Direito Administrativo cit.; no mesmo sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição cit., 925).
Na dita ausência, necessário se torna pesquisar se porventura não existirá no ordenamento jurídico vigente uma corte normativa que, sendo aplicável ao procedimento disciplinar militar, permita que nele não intervenha quem tenha um interesse pessoal no respectivo desfecho.
O Código do Procedimento Administrativo dispõe nos números 1, 2 e 6 do seu artº 2º:-
1. As disposições deste Código aplicam-se a todos os órgãos da Administração Pública que, no desempenho da actividade administrativa de gestão pública, estabeleçam relações com os particulares, bem como aos actos em matéria administrativa praticados pelos órgãos do Estado que, embora não integrados na Administração Pública, desenvolvam funções materialmente administrativas.
6. As disposições do presente Código relativas à organização e à actividade administrativa são aplicáveis a todas as actuações da Administração Pública no domínio da gestão pública.
7. No domínio da actividade de gestão pública, as restantes disposições do presente Código aplicam-se supletivamente aos procedimentos especiais desde que não envolvam diminuição das garantias dos particulares.
Tem-se entendido que o aludido Código se aplica aos
órgãos da Administração Militar (cfr. Mário Esteves de Oliveira, Código do Procedimento Administrativo, 2ª edição, 65, e Alexandra Leitão, ob. cit., 451 e
492 a 494, autora que sustenta que a aplicação supletiva do Código de Procedimento Administrativo constitui “reflexo directo da procedimentalização da actividade da Administração Militar” e que considera que aquele diploma deve, em vários casos, aplicar-se subsidiariamente no âmbito do processo disciplinar militar).
Ora, a aplicação supletiva das disposições do indicado corpo de normas - ou, num outro entendimento das coisas, a aplicação analógica das disposições daquele Código no que ao particular em causa concerne - levará a que se não possa dizer que no procedimento disciplinar militar, não obstante a inexistência de normas específicas sobre impedimentos e suspeições, não rejam comandos que asseguram que quem tenha interesse pessoal no desfecho do processo nele não deva intervir.
Por outro lado, da forma como se deve desenrolar, em regra, o processo disciplinar militar, extrai-se que, quanto à fase de instrução, as garantias de defesa e de audiência do arguido são de molde a que se não possa sustentar que aí inexiste um desrespeito pelo mínimo de observância de garantias subjectivas inerentes ao princípio da imparcialidade.
De facto, como resulta dos artigos 83º e 88º a 96º, do Regulamento de Disciplina Militar, o instrutor é sempre obrigado a ouvir o arguido; este deve ser convenientemente informado de todos os factos de que lhe são imputados; o processo, por regra, obedece à forma escrita, devendo ser sempre entregue ao arguido nota de culpa (forma a que deve obedecer obrigatoriamente quando a pena a aplicar seja igual ou superior à pena de prisão disciplinar); o arguido pode requerer o que considerar conveniente para a sua defesa e indicar quaisquer meios de prova que se não mostrem manifestamente inúteis ou prejudiciais para a descoberta da verdade; o instrutor deve realizar todas as diligências com a finalidade de alcançar essa descoberta e apurar o esclarecimento dos factos e a definição da culpabilidade do arguido; o arguido pode fazer-se assistir por defensor (cfr., neste ponto, o já aludido Acórdão nº
90/88 e o disposto no artº 21 do Estatuto dos Militares das Forças Armadas aprovado pelo Decreto-Lei nº 236/99, de 25 de Junho); a decisão no processo disciplinar é sempre escrita e fundamentada e, se punitiva, deverá descrever perfeita e compreensivelmente os factos praticados e os deveres militares por eles infringidos, devendo essa ser notificada integralmente ao arguido.
Do acervo das regras enunciadas (às quais se aditará que, como decorre dos artigos 105º e 106º do referido Estatuto dos Militares das Forças Armadas, está plena e expressamente assegurada a existência de recurso contencioso, após o recurso hierárquico necessário, quando a decisão sancionadora não tenha sido imposta pelo Chefe do Estado Maior do respectivo ramo das Forças Armadas), pode, assim, extrair-se a conclusão de que estão suficientemente estabelecidos os necessários instrumentos que apontam no sentido de, subjectivamente, se acatar a independência da entidade instrutora.
Mas, se assim é, resta ponderar se o processo disciplinar militar também se reveste de garantias objectivas de imparcialidade.
Desde logo convém realçar que não será curial afirmar-se que para todo o procedimento administrativo se deve encontrar uma única resposta para o problema atinente às garantias de imparcialidade.
Efectivamente, como escreve Maria Teresa de Melo Ribeiro
(indicada obra, 283 e 284), “a própria pluralidade de administrações públicas, a heterogeneidade das autoridades, funcionários e agentes administrativos, a diversidade das funções exercidas, a multiplicidade dos interesse prosseguidos e a complexidade crescente da estrutura social a conformar, impedem, em definitivo, a elaboração de uma única resposta para o problema da imparcialidade administrativa no âmbito da organização da Administração Pública e para os problemas que a sua promoção suscita”. Também Vieira de Andrade (ob. cit., 238) sublinha que, em matérias de garantias de imparcialidade, as leis devem optar por soluções diferenciadas consoante os tipos de decisão e os sectores de actividade.
Não carece de demonstração que, se há sector da Administração que se reveste de características muito próprias e de uma forma organizativa reconhecidamente peculiar, ele é, sem dúvida, o das Forças Armadas, onde a organização hierárquica rege por excelência.
As finalidades e exigências específicas desse sector são, aliás, inconcebíveis se desacompanhadas de uma acentuada disciplina. É que, sendo as Forças Armadas uma instituição constituída por pessoas a quem é confiado o uso de armas e a quem, para a defesa nacional, é dada formação para o uso de meios violentos - exigindo-se-lhes a exposição a riscos que podem levar ao sacrifício da própria vida, o que tudo acarreta a observância de numerosos deveres que se não surpreendem noutros sectores da Administração -, mal se compreenderia que a cadeia hierárquica não estivesse dotada de poder para a aplicação de sanções eficazes contra quem, dentro dessa organização, desrespeita aqueles deveres. Por isso, só uma ampla subordinação à cadeia de comando pode levar à unidade de acção, de esforços e de direcção, subordinação essa que, se não fora a existência de sanções gravosas para o incumprimento de deveres essenciais às finalidades das Forças Armadas e a sua aplicação célere e simplificada, redundaria em ficar desprovida de efectividade prática.
A celeridade e o carácter sumário que o processo disciplinar tem necessariamente que assumir no foro militar, em função das exigências próprias da natureza das operações militares e da consequente prevalência do princípio do comando, são incompatíveis com um sistema excessivo de garantias, eventualmente paralisante.
Como este Tribunal já reconheceu, há a necessidade de garantir os valores da hierarquia e da coesão inerentes à disciplina militar, que é um “pilar essencial da instituição castrense”, existe uma “axiologia subjacente aos valores decorrentes da segurança e da disciplina exigíveis nas Forças Armadas e aos interesses militares próprios da defesa nacional” (cfr. Acórdão nº 606/99, publicado no Diário da República, 2ª Série, de 16 de Março de
2000) e há uma “diferente caracterização da comunidade civil e da comunidade militar, esta fazendo apelo a deveres militares e a valores como a segurança e a disciplina das Forças Armadas e ainda a interesses militares de defesa nacional”
(cfr. Acórdão nº 370/94, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28º volume,
178 e segs.).
Claro que, situando-nos, como nos situamos, perante um Estado de direito, terão de existir no procedimento disciplinar militar garantias mínimas decorrentes desse Estado e aqueloutras que se extraem da própria Constituição. O que, todavia, não é exigível, é que, em face de um e de outra, esse procedimento tenha de assegurar necessariamente o mesmo tipo de garantias que defluem da lei ordinária para, por exemplo, o processo disciplinar comum dos funcionários e agentes da Administração Central, Regional e Local.
Seja como for, o que se não pode escamotear é que o Regulamento de Disciplina Militar e outra legislação aplicável, que com aquele se deve conjugar, contêm disposições que contribuem para assegurar um núcleo mínimo e suficiente para que se possa dizer que é respeitado o princípio da imparcialidade administrativa.
É disso exemplo o prescrito:-
- no artº 69º do RDM (o participante de uma infracção disciplinar deve procurar esclarecer-se previamente acerca das circunstâncias que caracterizam a infracção, ouvindo, sempre que for conveniente e possível, o infractor);
- nos artigos 37º a 43º do RDM (distribuição de competência pelos diferentes graus da hierarquia consoante a gravidade das sanções a aplicar);
- no artº 79º do RDM (possibilidade de avocação, até ser proferida decisão, do processo disciplinar por qualquer superior hierárquico do chefe até então competente);
- nos artigos 112º e 113º do RDM e artigos 105º e 106º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas (possibilidade de reclamação e recurso hierárquico);
- no artº 117º do RDM (dever do chefe a quem foi dirigido recurso hierárquico de, se assim julgar necessário para o apuramento da verdade, mandar proceder a novas averiguações através de processo escrito, nomeando para o efeito um oficial averiguante, que deverá obrigatoriamente ouvir o arguido);
- nos artigos 145º a 153º do RDM (possibilidade do recurso de revisão, a decidir pelo concelho superior de disciplina do respectivo ramos das Forças Armadas);
- no artº 134º, alínea b), do RDM (obrigatoriedade de os conselhos superiores de disciplina darem parecer quando possam ser aplicadas as penas mais graves de reserva compulsiva, reforma compulsiva e separação do serviço aos oficiais e sargentos);
- no artº 76º do RDM - e em conjugação com a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral levada a efeito pelo Acórdão deste Tribunal nº 90/88 - (possibilidade de apresentação de queixa contra o superior sem o risco de punição, quando ela for manifestamente infundada);
- no artº 32º, nº 2, da Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas aprovada pela Lei nº 29/82, de 11 de Dezembro, e artº 2º da Lei nº 19/85, de 13 de Julho (possibilidade de apresentação de queixa ao Provedor de Justiça).
Convir-se-á, pelo que vem de se elencar, que o processo disciplinar militar está dotado de um mínimo de instrumentos que podem assegurar, de modo objectivo e subjectivo, a garantia de imparcialidade da Administração, sem que se torne inapelavelmente necessário, para a atingir, consagrar a regra da cisão entre a entidade instrutora e a entidade decisora.
9. Em face do exposto, não se declara a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante do nº 1 do artº 85º do Regulamento de Disciplina Militar aprovado pelo Decreto-Lei nº
142/77, de 9 de Abril, na medida em que da mesma, em conjugação com as disposições ínsitas nos artigos 79º, nº 1, e 94º, nº 1, do mesmo Regulamento, resulta que o chefe que instruir o processo disciplinar militar é o competente para aplicar a respectiva sanção.
Lisboa,22 de Janeiro de 2002 Bravo Serra Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) Paulo Mota Pinto (vencido, nos termos da declaração de voto que junto) José Manuel Cardoso da Costa
Declaração de voto
Concordando, no essencial, com a declaração de voto do Conselheiro Mota Pinto, votei vencida, sobretudo, porque entendo que a previsão, no artigo
27º, nº 3, alínea d), da Constituição, da prisão disciplinar militar não corresponde, a qualquer título, a uma legitimação de um processo militar disciplinar sem o essencial das garantias do processo penal. O reconhecimento constitucional da prisão disciplinar militar só significa, na que entendo ser a
única interpretação concordante com os princípios constitucionais relativos à restrição dos direitos, liberdades e garantias, que o ilícito meramente disciplinar, de elevada gravidade, legitima a pena de prisão. Não posso, no entanto, aceitar a ilação de que tal ilícito e a respectiva sanção permitem um aligeiramento nas garantias de defesa que são atribuídas ao respectivo processo. Essas, quanto a mim, hão-de ser, no essencial, idênticas às garantias essenciais do processo penal, nomeadamente no que se refere, pelo menos numa medida mínima,
às garantias derivadas do princípio do acusatório como a da separação entre a entidade acusadora, instrutora e julgadora. É sob essa unidade essencial de garantias que a privação de liberdade em direito disciplinar militar tem lugar no sistema de garantias, numa perspectiva de coerência e congruência e não de excepcionalidade.
Maria Fernanda Palma
Declaração de voto Votei vencido por entender que a norma do artigo 85º, n.º 1, em conjugação com os artigos 79º, n.º 1 e 94º, n.º 1, do Regulamento de Disciplina Militar (RDM), na parte em que permite que, em processo disciplinar no qual podem ser aplicadas penas privativas de liberdade, a mesma pessoa promova, instrua e decida o processo, é inconstitucional, por violar o princípio – que retiro do artigo 32º, n.º 10 e do princípio da imparcialidade da Administração, consagrado no artigo
266º, n.º 2, ambos da Constituição da República – segundo o qual, em processos sancionatórios, e pelo menos se destes puder resultar a aplicação de penas de prisão, a entidade que promove e instrui o processo não pode ser a mesma que o decide. Um tal princípio é claramente violado pela solução normativa em análise. Na verdade, refere-se que a prática usual, exceptuando situações de infracções leves, é a de o superior hierárquico que determina a instauração do procedimento disciplinar não ser quem procede à instrução. Mas não deixa de se reconhecer expressamente que a convergência na mesma pessoa dos poderes de instaurar, instruir e decidir o processo, e mesmo que nestes possam e venham efectivamente a ser aplicadas penas como a detenção ou proibição de saída, prisão disciplinar ou prisão disciplinar agravada, corresponde a uma “possibilidade” admitida pelo entendimento das normas em crise. Julgo, porém, que aquela possibilidade de “convergência” não é justificada, nem pela especificidade do poder punitivo disciplinar (especificidade que, aliás, bem poderia dizer-se apontar noutro sentido), nem pelas características próprias da instituição militar – pelo menos, fora de situações como as previstas no artigo 83º, n.º 2, do RDM (“em campanha, em situações extraordinárias ou estando as forças fora dos quartéis ou bases”) –, nem, muito menos, pelo disposto no artigo 27º, n.º 2, alínea d), da Constituição. Esta última disposição constitucional permite a privação da liberdade em consequência da aplicação de prisão disciplinar a militares – mas não é possível extrair dela nada a respeito dos princípios e das garantias processuais que tal aplicação tem constitucionalmente de respeitar, e, muito menos, qualquer argumento de distinção genérica do processo criminal, cujas garantias estão previstas no artigo 32º (e não no artigo 27º) da Constituição. A meu ver, o Tribunal deveria, antes, ter concedido relevância à verificação de que também no processo disciplinar militar são aplicadas sanções privativas da liberdade (prisão disciplinar, nomeadamente), à circunstância de o regime geral, constante do “Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional ou Local”, ser diferente, com separação entre as entidades instrutora e decisora (apesar de não existir a prisão como sanção), e ao facto de, das restantes garantias no processo disciplinar militar que se elencam, nenhuma delas permitir atalhar às consequências, para a posição de imparcialidade da pessoa que decide o processo, de ter sido ela mesma quem o instaurou e instruiu. Teria, portanto, declarado inconstitucional a norma em causa.
Paulo Mota Pinto