Imprimir acórdão
Proc. nº 194/01 Acórdão nº 544/01
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em 26 de Outubro de 1992, A interpôs, junto do Supremo Tribunal Administrativo, recurso contencioso de anulação de um despacho do Secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, datado de 17 de Agosto de 1992, que indeferiu o recurso hierárquico que havia interposto para o Ministro do Planeamento e da Administração do Território da resolução que recaiu sobre o parecer da Comissão de Coordenação da Região (CCR) de Lisboa e Vale do Tejo desfavorável ao seu projecto de loteamento industrial de uma parcela de terreno, sito em..., freguesia e concelho do Montijo. A entidade recorrida, na resposta de fls. 22 e seguintes, pugnou pela absolvição da instância e, subsidiariamente, pelo não provimento do recurso. Nas respectivas alegações (fls. 38 e seguintes), o recorrente apresentou, entre outras, as seguintes conclusões:
'[...]
4ª - O acto recorrido enferma de violação de lei, sob a forma de erro sobre os pressupostos de direito e de facto e aplicação de normas inconstitucionais, tendo violado os arts 168º/1/a) e n.º 2 da CRP, 4º e 17º do DL n.º 93/90, 24º/3 e 30º/1 do DL n.º 400/84, pois a) O DL n.º 93/90 restringiu o direito de propriedade (artº 62º da CRP), direito fundamental sujeito ao regime dos direitos, liberdades e garantias, ex vi do artº 17º da CRP, sem que tenha existido prévia lei de autorização legislativa, violando o disposto no artº 168º/1/a) e 2 da Constituição da República Portuguesa (v. Acs. do Trib. Const. in DR, II Série, de 20/11/91);
[...].'
A entidade recorrida apresentou também alegações (fls. 60 e seguintes), tendo nomeadamente sustentado o seguinte:
'[...] Pretende o Recorrente que o acto impugnado incorre no vício de violação de lei, por ter sido praticado ao abrigo de um diploma inconstitucional e padecer de erros sobre os pressupostos de facto e de direito. Desde logo advoga que o regime da REN configura uma clara limitação do direito de propriedade, contemplado no art. 62º da CRP. A este respeito, dir-se-á que o direito de propriedade, como direito constitucionalmente garantido, não é um direito absoluto, antes comporta restrições necessárias à defesa de outros direitos e interesses com igual consagração constitucional. Haja em vista os denominados direitos sociais, designadamente, a defesa do património cultural, da protecção da natureza e do equilíbrio ecológico – nº 2, do art. 66º, da CRP. Haverá, pois, que conjugar o poder de gozo do bem objecto do direito de propriedade com uma das tarefas fundamentais do Estado, plasmadas na alínea e), do art. 9º, do texto constitucional, que se transcreve:
«Proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correcto ordenamento do território.» definindo-se este como a tradução, no espaço, das políticas económica, social, cultural e ecológica da sociedade (vide Carta Europeia de Ordenamento do Território), pressupõe a utilização racional dos recursos naturais, tendo por base o solo, e por finalidade o desenvolvimento equilibrado das populações urbanas e rurais, com vista a uma melhoria das condições de vida. Na demarcação de espaços onde uma classe de uso do solo é dominante, haverá que contrapor, no caso dos autos, espaços naturais (onde as medidas de salvaguarda dos recursos naturais dominam sobre as actividades produtivas), de que são exemplos, entre outros os cordões dunares, estuários, sapais, zonas húmidas, florestas de protecção, parques e reservas naturais, praias e formações geológicas, e espaços industriais, onde se pretende efectivar a operação de loteamento, com os riscos ambientais que isso envolve, podendo «vir a afectar o equilíbrio ecológico da área, que se considera de manter» – fls. 214 do Instrutor. Invoca, ainda, o Recorrente que o regime da REN foi estabelecido por decreto-lei, sem autorização prévia da Assembleia da República. Deliberadamente (e diz-se deliberadamente, porque o enfoque à Lei de Bases do Ambiente – Lei 11/87, de 7 de Abril – é feito no próprio preâmbulo do Decreto-Lei nº 93/90), o Recorrente ignorou que este diploma foi publicado depois daquela Lei de Bases, que define «as bases da política de ambiente, em cumprimento do disposto nos artigos 90º e 66º da Constituição da República» seu art. 1º – política de ambiente de que são instrumentos a RAN e a REN – alínea d), do nº 1, do art. 27º. Logo, o Governo apenas necessitaria de autorização legislativa para estabelecer o regime da REN, se a Assembleia da República não tivesse aprovado, em data anterior, a Lei de Bases do Ambiente. E não foi o caso. O acto recorrido baseou-se, pois, em normas que não diminuem o alcance do conteúdo dos preceitos constitucionais, estando a sua conformidade constitucional salvaguardada pelo nº 2, do art. 18º da CRP, inexistindo, em consequência, o alegado vício de violação de lei, por desrespeito de normas constitucionais.
[...].'
O representante do Ministério Público, no parecer de fls. 74 v.º a 75º v.º, sustentou que o recurso não merecia provimento.
2. Por acórdão de 21 de Janeiro de 1998, a 1ª Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, entre outros pelos seguintes fundamentos (fls. 81 e seguintes):
'[...] Alega mais o recorrente – conclusão 4 a) – que o acto recorrido enferma de violação de lei, sob a forma de erro sobre os pressupostos de facto e direito e, designadamente, por aplicação de normas inconstitucionais, por ter sido praticado ao abrigo de um diploma inconstitucional à luz do artº 168º-1 b) e 2 da Constituição (por lapso refere-se a al. a)). Este diploma, porém, não foi emitido «a descoberto», mas, como diz a Entidade Recorrida e resulta do expresso no seu relatório preambular e se considerou no acórdão deste STA de 25/6/92 (Ap. DR de 16/4/96, págs. 4276) no seguimento do disposto no artº 27 da Lei de Bases do Ambiente – Lei nº 11/87, de 7 de Abril – que fixou as directrizes essenciais, a disciplina básica do regime jurídico em matéria da política do ambiente, de que é instrumento a REN. E trata-se de um decreto-lei de desenvolvimento daquela Lei, que não desrespeita, mantendo-se dentro dos seus princípios fundamentais e que não dispõe sobre matéria abrangida na al. b) do referido artº 168º. Improcede, assim, este arguido vício de violação de lei.
[...]'.
3. A. recorreu do referido acórdão para o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo (fls. 101), tendo nas respectivas alegações (fls. 105 e seguintes) apresentado, entre outras, as seguintes conclusões:
'[...]
8ª - O acto recorrido enferma de violação de lei, sob a forma de erro sobre os pressupostos de direito e de facto e aplicação de normas inconstitucionais, tendo violado os arts. 168º/1/b) e nº 2 da CRP, 4º e 17º do DL nº 93/90, 24º/3 e
30º/1 do DL nº 400/84, merecendo o douto acórdão recorrido censura por haver decidido em contrário, pois (cfr. texto, nºs 14 a 17): a) O DL nº 93/90 restringiu o direito de propriedade (artº 62º da CRP), direito fundamental sujeito ao regime dos direitos, liberdades e garantias (e ao regime de reserva legislativa), ex vi do artº 17º da CRP, sem que tenha existido prévia lei de autorização legislativa, ou sem que a Lei 11/87 contenha suficiente densificação dos princípios gerais aplicáveis ao instituto, que permitam aferir da conformidade do regime legal instituído com aquela lei reforçada, violando o disposto no artº 168º/1/b) e 2 da CRP; b) O pedido de loteamento formulado pelo recorrente não contemplou qualquer construção na faixa de 200 metros interior à linha de praia-mar, destinando-se essa faixa a zona verde, como expressamente foi admitido pela entidade recorrida; c) Não estando prevista nenhuma acção para aquela faixa, o equilíbrio ecológico daquela área nunca poderia ser prejudicado, não se justificando a sua sujeição ao regime previsto nos arts. 17º e 4º/1 do DL nº 93/90, uma vez que a ratio daqueles preceitos abrange apenas as acções que pela sua expressão física directa ou potencialidade imediata possam pôr em causa o equilíbrio ecológico, o que não se verifica no caso em apreço; d) A simples inclusão de uma parcela de terreno em zona sujeita a regime transitório da REN – o que se impugna no caso vertente – não permite per se indeferir as pretensões dos praticantes (cfr. artº 4º/2 e 17º/1 do DL nº 93/90); e) O prédio a lotear não se integra em qualquer das alíneas do Anexo II ao DL nº
93/90, pois encontra-se na sua quase totalidade atulhado e terraplanado, não apresentando, em resultado da transformação, características que o tornem apto a integrar a REN; g) A parte não terraplanada e atulhada é composta de salinas, categoria não prevista em qualquer das alíneas do referido anexo;
[...]'.
A entidade recorrida também alegou (fls. 129 e seguintes), sustentando que o recurso jurisdicional devia ser rejeitado ou, se assim não se entendesse, julgado improcedente. O recorrente respondeu a certas questões prévias suscitadas pela entidade recorrida (fls. 140 e seguintes). O Ministério Público, no parecer de fls. 150 e v.º, pronunciou-se no sentido da rejeição do recurso.
4. Por acórdão de 16 de Janeiro de 2001, o Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso (fls. 155 e seguintes). Pode ler-se no texto do acórdão, para o que aqui releva, o seguinte:
'[...]
8.2.2. Alega ainda o recorrente na conclusão 8ª que o acto recorrido enferma de violação de lei, sob a forma de erro sobre os pressupostos de direito e de facto e aplicação de normas inconstitucionais, violando os artºs 168º, nº 1, al. b) e nº 2 da CRP, 4º e 17º do DL nº 93/90, 24º/3 e 30º/1 do DL nº 400/84, merecendo o Acórdão recorrido censura por haver decidido em contrário, porquanto o DL nº
93/90 restringiu o direito de propriedade (artº 62º da CRP), direito fundamental sujeito ao regime dos direitos, liberdades e garantias (e ao regime de reserva legislativa) ex vi do artº 17º da CRP sem que tenha existido prévia autorização, ou sem que a Lei nº 11/87 contenha suficiente densificação que permitam aferir da conformidade do regime legal instituído com aquela lei reforçada, violando o disposto no artº 168º/1/b e 2 da CRP. O Acórdão recorrido decidiu, e bem, que o DL nº 93/90 não foi emitido «a descoberto», mas antes no seguimento do disposto no artº 27º da Lei de Bases do Ambiente (Lei nº 11/87, de 07 de Abril), que naquele normativo (nº 1, al. a)) determina serem instrumentos de política do ambiente e do ordenamento do território, além da reserva agrícola nacional, a reserva ecológica nacional. Trata-se, assim, de uma lei de bases, sendo o DL nº 93/90, um decreto-lei de desenvolvimento que está submetido à respectiva lei de bases (nº 2, 2ª parte, do artº 115º da CRP). Não explica o recorrente onde é que aquele diploma legal extravasa os parâmetros ou quadro legal de desenvolvimento fixados na lei de bases, e era a ele que o competia fazer, para este T. Pleno poder emitir pronúncia sobre tal questão. Acresce que, hoje, o direito de propriedade constitucionalmente reconhecido não
é um direito absoluto, estando, antes, sujeito a limites intensos, sendo particularmente relevantes os que ocorrem no domínio urbanístico e do ordenamento do território, a ponto de se questionar se o direito de propriedade inclui o direito de construir – jus aedificandi – ou se este radica antes no acto administrativo autorizativo (licença de construção), pelo que a utilização do uso dos solos está sujeita a uma rede complexa de planos de ordenamento, autorizações, licenças, proibições, materialmente constitutivos de ónus ou restrições socialmente adequadas, nuns casos, ou de sacrifícios especiais ligitimadores de um direito indemnizatório, noutros casos (para maior desenvolvimentos, os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in «Constituição da República Portuguesa Anotada», 3ª edição, págs. 333 e 349). Não se vislumbra, assim, em que é que o Acórdão recorrido violou as invocadas leis constitucionais e leis ordinárias que lhe são assacadas na conclusão 8ª. Quantos aos erros nos pressupostos de facto incluídos nas diversas alíneas b) a g) da referida conclusão 8ª, não pode sobre eles emitir pronúncia este T. Pleno, atentas as limitações de cognição impostas pelo nº 1 do citado artº 21º do ETAF. Improcede, assim, também a conclusão 8ª da alegação do recorrente.
[...].'
5. A. interpôs recurso do referido acórdão de 16 de Janeiro de 2001 para o Tribunal Constitucional (fls. 184), ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, com fundamento na inconstitucionalidade orgânica e material do Decreto-Lei n.º 93/90, de 10 de Março, por violação dos artigos 62º e 168º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 da Constituição ('na redacção vigente no momento em que a questão foi suscitada nos autos', a que correspondem actualmente os artigos 62º e 165º, nº 1, alínea b)). O recurso para o Tribunal Constitucional foi admitido por despacho de fls. 186. Já no Tribunal Constitucional, foi proferido o despacho de fls. 189 e v.º, mandando notificar o recorrente para completar o requerimento de interposição do recurso, indicando quais as normas do Decreto-Lei n.º 93/90, aplicadas na decisão recorrida, que considera inconstitucionais e que pretende submeter à apreciação deste Tribunal, qual a norma ou princípio constitucional violado por cada uma dessas normas, bem como qual a peça processual em que suscitou a questão da inconstitucionalidade. Notificado deste despacho, o recorrente veio dizer o seguinte (fls. 190 e v.º):
'1. As normas do Decreto-Lei n.º 93/90, de 10 de Março, aplicadas na decisão recorrida e que o recorrente considera inconstitucionais, pretendendo submeter à apreciação deste Tribunal, são todas as normas legais constantes do citado diploma (Decreto-Lei nº 93/90, de 10 de Março) e em especial, dados os seus efeitos, as normas que constam dos artigos 3º, 4º e 17º desse mesmo diploma (as quais estabelecem um regime proibitivo de uso de solos – áreas REN).
2. No entendimento do recorrente, o supracitado diploma legal – o conjunto de todas as suas normas e em particular os seus artigos 3º, 4º e 17º – enfermam de inconstitucionalidade orgânica por regularem matéria atinente «a direitos liberdades e garantias» sem terem sido precedidos da necessária autorização legislativa da Assembleia da República (violando desse modo o art. 165º/1/b) e 2 da CRP, por referência aos arts. 62º e 17º do diploma fundamental) e de inconstitucionalidade material por ofensa ao «direito de propriedade privada».
3. Mais esclarece que a inconstitucionalidade das supra citadas normas foi suscitada pelo recorrente logo na conclusão 4ª/a) das alegações de recurso apresentadas junto do Supremo Tribunal Administrativo e na conclusão 8ª das alegações de recurso interposto para o Pleno desse Tribunal.'
Notificado para produzir alegações, A. nelas concluiu do seguinte modo (fls. 194 e seguintes):
'1ª- O relacionamento entre leis manifesta-se a diferentes níveis, sendo que «a mais frisante diferença de funções entre actos legislativos ocorre em duas hipóteses distintas: entre leis de autorização legislativa e decretos-leis publicados no uso de autorização e entre leis de princípios ou bases gerais dos regimes jurídicos e decretos-leis em seu desenvolvimento» [...];
2ª- O Decreto-Lei nº 93/90, de 19 de Março padece de inconstitucionalidade orgânica ao restringir um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, e ao consubstanciar uma regulamentação de meios e formas de intervenção nos solos (v. artigo 168º/1/al. b) e 1) da Constituição, na redacção em vigor em 1990), sem que para tanto dispusesse da necessária lei de autorização legislativa que legitimasse o Governo a intervir no âmbito da reserva relativa de competências legislativas da Assembleia da República – v. art. 165º, nº 1, al. b) e 1) da CRP [...];
3ª- Não legislando ao abrigo de uma qualquer lei de autorização legislativa ou em referência à Lei de Bases do Ambiente – Lei nº 11/87 – o Decreto-Lei nº 93/90 padece de inconstitucionalidade formal, já que decretou a disciplina jurídica da Reserva Ecológica Nacional ao abrigo da al. a) do art. 201º da CRP (actual art.
198º), isto é, mediante um decreto-lei independente [...].
4ª- Registe-se, aliás, que este entendimento não é de modo algum posto em causa pela argumentação que se utilizou no Acórdão recorrido, segundo a qual a inconstitucionalidade não existiria pelo facto do DL nº 93/90 ter sido exarado pelo Governo em desenvolvimento das bases da lei do Ambiente, pois, a) legislar em desenvolvimento de Leis de Bases não pode significar uma dispensa do cumprimento das regras de repartição de competência da Assembleia da República constantes da Constituição, pois, é a própria Constituição que determina que nos casos em que exista essa reserva de competência é necessária lei de autorização legislativa que, em conformidade com o constante do artigo
168º/2 e 3 da Constituição, na redacção em vigor à data do DL nº 93/90, defina
«o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, a qual pode ser prorrogada», sendo certo que «as autorizações caducam com a demissão do Governo a que tiverem sido concedidas, com o termo da legislatura ou com a dissolução da Assembleia da República» (v. nº 4 do art. 168º da Constituição); b) contrariamente ao defendido no Acórdão do STA sub judice tem de se referir que o próprio legislador do DL nº 93/90 não quis legislar em desenvolvimento da Lei de Bases do Ambiente, pois, expressamente editou o DL 93/90 ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 201º da Constituição, na redacção em vigor em 1990 – decretos-leis em matérias não reservadas à Ass. da República – e não ao abrigo da alínea c) desse mesmo preceito – decretos-leis de desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos regimes contidos em leis que a eles se circunscrevam. c) Desse modo, não pode o intérprete entender que tal Decreto-Lei nº 93/90 foi editado pelo Governo em execução de uma Lei de Bases, quando é o próprio Governo que entendeu fazer tal Decreto-Lei por considerar que não se tratava de matéria da competência da Assembleia da República. d) Entender de modo diferente seria admitir que por via de uma Lei de Bases se ultrapassasse a necessidade constitucional de ter uma lei de autorização legislativa que claramente definisse «o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização» (v. art. 168º/2 cit.); seria admitir que por via de uma Lei de Bases a pressuposta autorização legislativa que o STA pretende ver na Lei de Bases, não caducaria com «a demissão do Governo a que tiverem sido concedidas, com o termo da legislatura ou com a dissolução da Assembleia da República» (v. art. 168º/4); seria admitir, em suma, uma violação das regras de competência da Ass. da República constantes do artigo 168º/1b) e l) e nºs 2, 3 e
4 da Constituição, na sua redacção à data da entrada em vigor do DL nº 93/90.
4ª- O Decreto-Lei nº 93/90, viola o disposto nos artigos 62º, 65º, nº 4 e 266º, nº 1 da CRP, ao delimitar as áreas de REN com a aplicação de regras que, ao invés de denunciarem respeito pelos direitos dos particulares e pela justa ponderação entre o interesse público e o interesse privado, antes revelam uma grande margem de arbitrariedade, sendo certo que contemplando o regime da REN uma forma de intervenção dos poderes públicos no regime dos solos por motivos de interesse público só o poderia fazer mediante a previsão da correspondente indemnização, como o exigia o disposto no artigo 83º e 168º/1/l) da Constituição na redacção em vigor em 1990, indemnização essa que o DL nº 93/90 não contempla, pelo que também por este motivo enferma de inconstitucionalidade;
5ª- Restringindo o direito de propriedade privada com recurso a este tipo de regras, o Decreto-Lei nº 93/90 padece de inconstitucionalidade material, na medida em que viola os princípios constitucionais tão importantes como o princípio da igualdade, da justiça e da proporcionalidade e o princípio da prossecução do interesse público e da boa administração [...].'
A entidade recorrida (o Secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território) foi notificada das alegações produzidas pelo recorrente, mas não respondeu (fls. 232).
II
A. Delimitação do objecto do recurso
6. No recurso em apreço, vem suscitada a questão da inconstitucionalidade orgânica, formal e material das normas constantes do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março. Este diploma, à data da interposição do recurso contencioso de anulação que deu origem aos presentes autos, já havia sido alterado pelo Decreto-Lei n.º 316/90, de 13 de Outubro, que deu nova redacção aos seus artigos 3º, 9º e 17º, bem como pelo Decreto-Lei n.º 213/92, de 12 de Outubro, que modificou o disposto nos seus artigos 3º, 4º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 13º, 14º, 17º e 21º. Posteriormente à data da interposição de tal recurso, foi ainda aprovado o Decreto-Lei n.º 79/95, de
20 de Abril, que introduziu alterações no seu artigo 3º. O recorrente não especifica, no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional e nas respectivas alegações, qual a redacção do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março, que haverá a considerar. Mas, no que toca à alegada inconstitucionalidade orgânica e formal, está obviamente apenas em causa, no presente recurso, o próprio Decreto-Lei n.º
93/90, de 19 de Março, já que tais vícios não são directamente assacados, pelo recorrente, aos subsequentes diplomas que o alteraram, e o Tribunal Constitucional não pode conhecer do que lhe não é pedido. Já no que diz respeito à alegada inconstitucionalidade material das normas do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março, cumpre saber qual a redacção de tal diploma que foi considerada na decisão recorrida, dado que o presente recurso de constitucionalidade só pode ter como objecto normas que tenham sido efectivamente aplicadas. Compulsando o texto da decisão recorrida, verifica-se que nela se tomou em consideração o Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março, na redacção do Decreto-Lei n.º 316/90, de 13 de Outubro. É o que resulta da leitura da seguinte passagem de fls. 171:
'[...] Está em causa uma operação de loteamento [...], a qual está sujeita a parecer obrigatório e vinculativo da CCRLVT [...] e ainda a autorização da mesma entidade pública por se tratar de terreno a integrar na delimitação da Reserva Ecológica Nacional (REN), aprovada pelo DL n.º 93/90, de 19 de Março [por lapso, escreveu-se 10 de Março] e alterado pelo DL n.º 316/90, de 13 de Outubro
(ibidem, art.ºs 3º, 4º e 17º), ao tempo em vigor.
[...]'.
É, pois, esta a redacção do diploma a ter em conta, na apreciação da questão de inconstitucionalidade material suscitada pelo recorrente.
7. A apreciação das várias questões colocadas pelo recorrente exige que se comece por apreender os traços mais relevantes, quer da Lei de Bases do Ambiente em vigor à data da publicação do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março, quer deste mesmo diploma. A Lei n.º 11/87, de 7 de Abril (Lei de Bases do Ambiente), foi aprovada pela Assembleia da República nos termos dos artigos 164º, alínea d), 168º, n.º 1, alínea g), e 169º, n.º 2, todos da Constituição (texto emergente da 1ª revisão constitucional). O artigo 164º, alínea d), da Constituição (texto emergente da 1ª revisão constitucional) estabelecia a competência da Assembleia da República para fazer leis sobre todas as matérias, salvo as reservadas pela Constituição ao Governo; o artigo 168º, n.º 1, alínea g) atribuía exclusiva competência à Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, para legislar sobre as bases do sistema de protecção da natureza, do equilíbrio ecológico e do património cultural; o artigo 169º, n.º 2, por fim, estabelecia que certos actos revestiam a forma de lei. De acordo com o artigo 27º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 11/87, de 7 de Abril, a reserva ecológica nacional constitui um dos instrumentos da política de ambiente e do ordenamento do território. Essa reserva não é, porém, definida nem desenvolvida na Lei. Dispõe, por seu turno, o artigo 37º, n.º 1, do mesmo diploma, que '[c]ompete ao Governo, de acordo com a presente lei [...], a adopção das medidas adequadas à aplicação dos instrumentos previstos na presente lei.'. E o n.º 2 deste preceito legal acrescenta que '[o] Governo e a administração regional e local articularão entre si a implementação das medidas necessárias à prossecução dos fins previstos na presente lei, no âmbito das respectivas competências'. Refira-se ainda que a Lei de Bases do Ambiente contém algumas proibições e prevê alguns condicionamentos destinados à salvaguarda do ambiente. Assim: as proibições de pôr em funcionamento certos empreendimentos que poluam o ar
(artigo 8º, n.º 3), de eliminar certa vegetação (artigo 9º, n.º 5), ou de explorar certos empreendimentos que poluam as águas (artigo 10º, n.º 5); e o condicionamento da utilização e ocupação do solo para fins urbanos e industriais e da implantação de equipamentos e infra-estruturas pela sua natureza, topografia e fertilidade (artigo 13º, n.º 5).
8. O Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março – aprovado, portanto, já depois da publicação da referida Lei de Bases do Ambiente –, reviu o regime jurídico da Reserva Ecológica Nacional (REN).
8.1. O regime jurídico da Reserva Ecológica Nacional havia sido primeiramente estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 321/83, de 5 de Julho, sendo que as normas dos seus artigos 2º, n.º 1, alínea c), e 3º, n.º 1, foram várias vezes julgadas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional, por violação do disposto no artigo 168º, n.º 1, alínea g), da Constituição, na redacção de 1982.
A mencionada norma do artigo 2º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 321/83, de
5 de Julho, integrava as arribas, incluindo uma faixa até 200 metros para o interior do território a partir do respectivo rebordo, na Reserva Ecológica Nacional. Por seu lado, a norma do n.º 1 do artigo 3º do mesmo diploma determinava que '[n]os solos da Reserva Ecológica Nacional são proibidas todas as acções que diminuam ou destruam as suas funções e potencialidades, nomeadamente vias de comunicação e acessos, construção e edifícios, aterros e escavações, destruição do coberto e vida animal'. Considerou o Tribunal Constitucional, nomeadamente no acórdão n.º 152/92, de 8 de Abril (Diário da República, II Série, n.º 172, de 28-7-1992), que:
'[...] as normas em causa integram as bases do sistema jurídico de protecção da natureza e equilíbrio ecológico.
[...] Ora, a competência para legislar sobre as bases do sistema de protecção da natureza e do equilíbrio ecológico só podia ser exercida pelo Governo mediante autorização legislativa da Assembleia da República [...]. Tal autorização legislativa não existiu no caso, e assim o Governo só tinha competência legislativa própria para fazer decretos-leis de desenvolvimento das bases gerais previamente estabelecidas pela Assembleia da República – artigo 201º, n.º 1, alínea c), da Constituição, na mesma versão. Na realidade, não só tal autorização não ocorreu como nem sequer existia na altura qualquer diploma específico sobre as bases da protecção da natureza e equilíbrio ecológico; a primeira codificação de tal matéria só viria a ser feita mais tarde pela Lei n.º 11/87, de 7 de Abril, que definiu «as bases da política de ambiente», nela inserindo, como instrumentos privilegiados, «a reserva agrícola nacional e a reserva ecológica nacional» – artigo 1º e 27º, n.º 1, alínea d), desta lei.
[...]
[...] o sistema jurídico anterior ao questionado Decreto-Lei n.º 321/83 já comportava normas sobre o ordenamento do território nas áreas a que se refere o artigo 2º, n.º 1, alínea c), do diploma.
[...] Todavia, nenhuma das referidas restrições [que eram as constantes do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro] aponta para a proibição da realização de obras ou construções, designadamente de vias de acesso, edificações, aterros ou escavações, ou destruição do coberto vegetal e vida animal, conforme passou a estabelecer-se nos artigos 2º, n.º 1, alínea c) e 3º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
321/83. Portanto, estas normas vieram, afinal, alterar totalmente o princípio básico decorrente das normas referidas do Decreto-Lei n.º 468/71, proibindo o que até então estava meramente sujeito a licença administrativa. Assim, e porque, como vimos, o Governo carecia de competência para as decretar sem a necessária autorização legislativa, as normas referidas do Decreto-Lei n.º
321/83 violam o disposto no artigo 168º, n.º 1, alínea g), da Constituição
(versão de 1982).'
Através do acórdão n.º 368/92, de 25 de Novembro (Diário da República, I Série-A, n.º 4, de 6-1-1993), o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação da alínea g) do n.º 1 do artigo 168º da Constituição, das referidas normas do Decreto-Lei n.º
321/83, de 5 de Julho. Nesse acórdão lê-se, entre o mais, o seguinte:
'[...] o tribunal, nos acórdãos fundamentadores do pedido em apreço, tendo em conta: Por um lado, a circunstância de a regulação ínsita nas normas sub specie ter introduzido no ordenamento jurídico preexistente um princípio básico que ali se não consagrava (qual seja o de proibir a realização de obras, construções, aterros, escavações, destruição do coberto vegetal ou da vida animal nas arribas, incluindo uma faixa até 200 m para o interior do território contados a partir do respectivo rebordo), desta sorte efectuando uma fundamental e verdadeira inovação; Por outro, que a matéria objecto das ditas normas faz parte de um sistema de protecção da natureza e do equilíbrio ecológico; e Ainda por um outro, que o diploma em que tais normas se encontram não foi emitido a coberto de autorização parlamentar; concluiu pela inconstitucionalidade orgânica dos preceitos em análise.
[...] Não se vislumbra que seja necessário aditar qualquer outra fundamentação à argumentação carreada nos mencionados arestos, argumentação essa que agora se reitera [...].'
Portanto, e em suma, o carácter inovatório das normas em análise, aliado à circunstância de versarem sobre matéria inserida num sistema de protecção da natureza e do equilíbrio ecológico, bem como à de figurarem num diploma que não havia sido emitido a coberto de autorização parlamentar, conduziram à declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dessas normas. As normas das alíneas d), b) e e) do n.º 1 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º
321/83, de 5 de Julho, foram também julgadas inconstitucionais por acórdãos subsequentes do Tribunal Constitucional (cfr. acórdãos n.º s 515/93, de 26 de Outubro, 203/95, de 20 de Abril, 218/99, de 21 de Abril, e 204/2000, de 4 de Abril), basicamente pelos fundamentos anteriores.
8.2. Retornando ao diploma em apreço no presente recurso – o Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março –, assinale-se, em primeiro lugar, que no respectivo preâmbulo se lê o seguinte:
'[...] Com o presente diploma, e no seguimento do disposto no artigo 27º da Lei de Bases do Ambiente – Lei n.º 11/87, de 7 de Abril –, pretende-se salvaguardar, de uma só vez, os valores ecológicos e o homem, não só na sua integridade física, como no fecundo enquadramento da sua actividade económica, social e cultural, conforme é realçado na Carta Europeia do Ordenamento do Território. Incumbindo ao Estado, de acordo com o previsto na própria Constituição, o ordenamento do espaço territorial de forma a construir paisagens biologicamente equilibradas, constituindo para o efeito organismos próprios, a criação, no
âmbito do Ministério do Planeamento e da Administração do Território, da Comissão da Reserva Ecológica Nacional resulta claramente do cumprimento necessário de um imperativo constitucional. Assim: Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 201º da Constituição, o Governo decreta o seguinte:
[...]'.
Portanto – e é este o primeiro aspecto a reter – o Decreto-Lei n.º
93/90, de 19 de Março, foi emitido ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo
201º da Constituição – aliás, também o foram os Decretos-Leis n.ºs 316/90, de 13 de Outubro, 213/92, de 12 de Outubro, e 79/95, de 20 de Abril, que o alteraram
–, alínea essa que, no texto emergente da revisão constitucional de 1989, determinava que competia ao Governo, no exercício de funções legislativas, fazer decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República. Não foi emitido ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 201º da Constituição que, também no texto dessa revisão, atribuía competência ao Governo, no exercício de funções legislativas, para fazer decretos-leis de desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevessem. De qualquer modo, o preâmbulo daquele Decreto-Lei refere expressamente o artigo
27º da Lei de Bases do Ambiente, a que o normativo aprovado pretendia dar seguimento. Sublinhe-se ainda que, à data da publicação do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março, o artigo 168º, n.º 1, da Constituição determinava, respectivamente nas suas alíneas b) e g), que a matéria dos direitos, liberdades e garantias e a das bases do sistema de protecção da natureza e do equilíbrio ecológico se inseriam na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República. Ora, a regulação do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março – na redacção do Decreto-Lei n.º 316/90, de 13 de Outubro –, pode, em traços gerais e para o que aqui releva, ser assim descrita: a. Definição da Reserva Ecológica Nacional como estrutura biofísica que pressupõe o condicionamento à utilização de certas áreas (artigo 1º); b. Caracterização das áreas abrangidas pela Reserva Ecológica Nacional
(artigo 2º e anexos I e III) e atribuição, a certas entidades administrativas, de competência para proceder à delimitação dessa Reserva (artigo 3º); c. Proibição do desenvolvimento de certas actividades, nomeadamente operações de loteamento e obras de urbanização, nas áreas incluídas na Reserva Ecológica Nacional, e atribuição às comissões de coordenação regional de competência para confirmar a possibilidade, excepcionalmente prevista no próprio diploma legal, de realizar certas actividades nas áreas incluídas na Reserva, bem como de competência para condicionar o exercício de tais actividades (artigo
4º); d. Condicionamento do licenciamento de certas actividades em terrenos do domínio público hídrico (artigo 5º); e. Inaplicabilidade do disposto no artigo 4º a certas áreas e operações
(artigo 6º); f. Regime dos recursos dos pareceres desfavoráveis emitidos ao abrigo do artigo 4º (artigo 7º); g. Competência e constituição da Comissão da Reserva Ecológica Nacional
(artigos 8º e 9º); h. Obrigatoriedade de demarcação, em todos os instrumentos de planeamento que definam ou determinem a ocupação física do solo, das áreas integradas na Reserva Ecológica Nacional e das áreas sujeitas ao regime transitório (artigo
10º); i. Competência para a fiscalização do cumprimento do diploma em causa
(artigo 11º); j. Tipificação de certas condutas como contra-ordenações, competência para a instrução dos processos contra-ordenacionais e aplicação de coimas, e destino do produto das coimas (artigos 12º e 13º); k. Competência para embargar, demolir obras e fazer cessar certas condutas
(artigo 14º); l. Consideração como nulos dos actos administrativos que infrinjam o disposto nos artigos 4º e 17º, e responsabilidade civil de certas entidades administrativas por prejuízos que advenham, para certos particulares, dessa nulidade (artigos 15º e 16º); m. Sujeição de certas áreas (as mencionadas nos anexos II e III), que ainda não tenham sido objecto da delimitação referida no artigo 3º, a um regime transitório, materializado na necessidade de aprovação, pela comissão de coordenação regional, das obras e empreendimentos mencionados no n.º 1 do artigo
4º, com possibilidade de recurso, para a Comissão da Reserva Ecológica Nacional, da decisão desfavorável (artigo 17º, n.º s 1 a 5). Possibilidade de avocação do processo por certos ministros, no caso de indeferimento do pedido de aprovação por esta Comissão (n.º 6); n. Previsão da vigência do regime transitório até à aprovação da portaria de delimitação da Reserva Ecológica Nacional prevista no n.º 1 do artigo 3º
(artigo 18º); o. Exercício transitório das competências da Comissão da Reserva Ecológica Nacional pela Direcção-Geral do Ordenamento do Território (artigo 19º); p. Revogação dos Decretos-Leis n.º s 321/83, de 5 de Julho, e 411/83, de 23 de Novembro (artigo 20º); q. Condicionamento da aplicação do normativo em causa na Madeira e nos Açores (artigo 21º).
9. Depois destas referências ao conteúdo do diploma em apreço no presente recurso, bem como ao dos diplomas conexos que o antecederam e seguiram, cumpre apreciar a questão colocada pelo recorrente. Mas não sem antes fazer uma precisão: é que, contrariamente ao pretendido pelo recorrente, não é possível, no presente recurso, apreciar a conformidade constitucional de todas as normas constantes do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março. E isto porque, como facilmente se depreende da leitura do próprio diploma em análise e, especialmente, do texto do acórdão recorrido, não foram aplicadas, na decisão recorrida, todas as normas do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março. Compulsando o texto do acórdão recorrido, verifica-se que nele apenas se faz referência aos artigos 3º, 4º, 17º (este último em conjugação com a alínea d) do anexo II) e 15º, todos do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março. E nem todas estas normas foram aplicadas na decisão recorrida, no sentido de constituírem o seu fundamento. Não foram, desde logo, aplicadas as normas do artigo 3º, dado que este preceito regula a delimitação da Reserva Ecológica Nacional e, à data da instauração do processo que deu origem aos presentes autos, tal delimitação ainda não tinha ocorrido, estando o terreno que o recorrente se propunha lotear sujeito a um regime transitório. Como se lê no texto do acórdão recorrido (cfr. fls. 171) tratava-se apenas de 'terreno a integrar na delimitação da Reserva Ecológica Nacional (REN)'. Também as normas dos n.ºs 2 a 7 do artigo 4º não foram aplicadas, dado que pressupõem tal delimitação da Reserva Ecológica Nacional. Finalmente, não se vê como possa ter sido aplicada a norma do artigo 15º, que considera nulos e de nenhum efeito os actos administrativos que violem os artigos 4º e 17º, dado que a decisão recorrida não versou sobre tal hipotética violação (nem ao Tribunal Constitucional compete, como é óbvio, sobre ela se debruçar). Em suma, a decisão recorrida apenas aplicou as normas do artigo 17º, n.º s 1 (em conjugação com o n.º 1 do artigo 4º e com a alínea d) do anexo II) a 6 do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março, normas essas que, em certas áreas ainda não delimitadas nos termos do artigo 3º (isto é, ainda não definitivamente incluídas ou excluídas da Reserva Ecológica Nacional), sujeitam a aprovação certas obras e empreendimentos e regulam o procedimento tendente a tal aprovação. As restantes normas não foram aplicadas. Quer por serem consumidas pelas normas apontadas (caso da norma do artigo 1º, ou da norma do artigo 8º, alínea d)), quer por pressuporem uma delimitação da REN que ainda não havia ocorrido ao tempo da instauração do presente processo (caso das normas dos artigos 2º a 4º,
6º, 7º, 8º, alíneas a, b) e c)), quer por manifestamente nenhuma repercussão terem no caso dos autos (caso da norma do artigo 5º, que regula o domínio público hídrico, ou das normas do artigo 8º, alíneas e) e f), que regulam certas competências genéricas da Comissão da REN, ou ainda da norma do artigo 9º, que rege sobre a sua constituição). Afigura-se, finalmente, óbvio que os preceitos relativos a demarcação obrigatória em instrumentos de planeamento, fiscalização do cumprimento do diploma, contra-ordenações e correspondentes processos, embargos e demolições, responsabilidade civil da Administração, vigência do regime transitório, direito transitório e legislação revogada, nenhuma relevância tiveram na resolução do caso dos autos. Assim delimitado o objecto do presente recurso – a apreciação da conformidade constitucional das normas do artigo 17º, n.º s 1 (em conjugação com o n.º 1 do artigo 4º e com a alínea d) do anexo II) a 6 do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março –, cumpre dele conhecer.
B. Apreciação das questões de constitucionalidade suscitadas
10. Cabe analisar, em primeiro lugar, se as normas do artigo 17º, n.º s 1
(em conjugação com o n.º 1 do artigo 4º e com a alínea d) do anexo II) a 6 do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março, padecem de inconstitucionalidade orgânica, por, segundo o recorrente (cfr. conclusões 1ª, 2ª e 4ª, a) e d) das alegações), dizerem respeito a matérias da competência relativa da Assembleia da República: direitos, liberdades e garantias e meios e formas de intervenção nos solos por motivos de interesse público (artigo 168º, n.º 1, alíneas b) e l), da Constituição, na versão emergente da 2ª revisão, que é a de 1989). As normas em apreciação estabelecem, como se viu, condicionamentos às operações de loteamento, obras de urbanização, construção de edifícios, obras hidráulicas, vias de comunicação, aterros, escavações e destruição do coberto vegetal, na medida em que sujeitam tais actividades à aprovação de certas entidades administrativas. Por outras palavras, tais actividades não são proibidas, contrariamente ao que sucederia se se desenvolvessem numa área incluída na Reserva Ecológica Nacional (cfr. artigo 4º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 93/90, de
19 de Março), mas são simplesmente condicionadas, já que dependem de aprovação. Será que tais condicionamentos consubstanciam uma restrição do conteúdo do direito de propriedade de certos imóveis, como pretende o recorrente? Uma resposta afirmativa pressuporia que o direito de propriedade de um imóvel abrange naturalmente a faculdade de lotear ou construir, para só referir algumas das operações condicionadas pelas normas em apreço. Pressuporia, em suma, que o titular de um direito de propriedade sobre um imóvel tem, pelo facto de ser titular desse direito, tal faculdade, consubstanciando a abolição de tal faculdade uma restrição do direito. A este propósito, cumpre recordar o que se disse no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 329/99, de 2 de Junho (Diário da República, II Série, n.º
167, de 20 de Julho de 1999, pág. 10576), em que estava em causa a apreciação da constitucionalidade das normas constantes do Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro (diploma que estabelece o regime de caducidade dos pedidos e dos actos de licenciamento de obras, loteamento e empreendimentos turísticos emitidos anteriormente à data da entrada em vigor de plano regional de ordenamento do território):
'[...]
4. As questões de inconstitucionalidade orgânica:
[...]
4.2. As normas sub iudicio e o direito de propriedade: A recorrente sustenta também que, tendo o Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, sido editado sem autorização legislativa, as normas sub iudicio são organicamente inconstitucionais, uma vez que versam sobre o direito de propriedade – recte, sobre uma faculdade nele incluída (o ius aedificandi) –, que é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, inscrevendo-se, por isso, na reserva parlamentar constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 168º da Constituição, na versão de 1989 [ cf., hoje, o artigo 165º, n.º 1, alínea b)] . A recorrente não tem, porém, razão. Não a tem, quando se entenda, com Fernando Alves Correia (Estudos cit., páginas
51 e 52), que o ius aedificandi (mais propriamente ainda, o direito de urbanizar, lotear e edificar) não se inclui no direito de propriedade privada,
«sendo antes o resultado de uma atribuição jurídico-pública decorrente do ordenamento jurídico urbanístico, designadamente dos planos» – ou seja, «um poder que acresce à esfera jurídica do proprietário, nos termos e nas condições definidas pelas normas jurídico-urbanísticas» (cf., também do mesmo autor, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1990, páginas 372 a 383). E isso, apesar de o direito de propriedade ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias [ cf., neste sentido, acórdãos nºs 404/87 e
257/92 (publicados no Diário da República, II série, de 21 de Dezembro de 1987 e
18 de Junho de 1993);o acórdão n.º e 431/94 (publicado no Diário da República, I série-A, de 21 de Junho de 1994); e ainda os acórdãos nºs 1/84 e 14/84
(publicados no Diário da República, II série, de 26 de Abril de 1984, o primeiro, e de 10 de Maio de 1984, o segundo)] e gozar, consequentemente – ex vi do disposto no artigo 17º da Constituição –, do respectivo regime naquilo que nele reveste essa natureza análoga. De facto, não sendo o ius aedificandi inerente ao direito de propriedade do solo, o Governo, ao editar o Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro - e, assim, ao sujeitar a verificação de conformidade as licenças de loteamento devidamente tituladas, designadamente por alvará, emitidas anteriormente à data da entrada em vigor do respectivo plano regional de ordenamento do território, e ao determinar a «caducidade» das que não forem confirmadas –, não editou normas sobre o direito de propriedade. Mas, sendo assim, é obvio que o Governo, com a edição do Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, não invadiu a reserva parlamentar atinente aos direitos, liberdades e garantias. Mas, mesmo quem entenda que o ius aedificandi constitui parte integrante do direito de propriedade privada, por ser uma das faculdades em que tal direito se analisa, acontecendo apenas que o seu exercício está dependente de uma autorização da Administração [ cf., neste sentido, entre outros, Diogo Freitas do Amaral («Apreciação da Dissertação de Doutoramento do Licenciado Fernando Alves Correia», in Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, 1991, páginas 99 a
101)] , não tem forçosamente que concluir, como fazem alguns autores [ cf. Diogo Freitas do Amaral e Paulo Otero (Direito do Ordenamento do Território e Constituição, Coimbra, 1998, páginas 29 e 30); e J.M. Sérvulo Correia e J. Bacelar Gouveia (Direito do Ordenamento cit., página 151)] , que toda a normação que contenha alterações ao ius aedificandi (e, concretamente, a que se contém no mencionado Decreto-Lei n.º 351/93) haja de ser produzida (ou autorizada) pela Assembleia da República.
É que, apesar de o direito de propriedade privada ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, nem toda a legislação que lhe diga respeito se inscreve na reserva parlamentar atinente a esses direitos, liberdades e garantias. Desta reserva fazem apenas parte as normas relativas à dimensão do direito de propriedade que tiver essa natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Como, embora a outro propósito, se sublinhou no acórdão n.º 373/91 (publicado no Diário da República, I série-A, de 7 de Novembro de
1991), cabem na reserva legislativa parlamentar «as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos ‘direitos análogos’, por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a actuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias». Ora, no que concerne ao direito de propriedade, dessa dimensão essencial que tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, faz, seguramente, parte o direito de cada um a não ser privado da sua propriedade, salvo por razões de utilidade pública – e, ainda assim, tão-só mediante o pagamento de justa indemnização (artigo 62º, nºs 1 e 2, da Constituição). Já, porém, se não incluem nessa dimensão essencial os direitos de urbanizar, lotear e edificar, pois, ainda quando estes direitos assumam a natureza de faculdades inerentes ao direito de propriedade do solo, não se trata de faculdades que façam sempre parte da essência do direito de propriedade, tal como ele é garantido pela Constituição: é que essas faculdades, salvo, porventura, quando esteja em causa a salvaguarda do direito a habitação própria, já não são essenciais à realização do Homem como pessoa. E, assim, como só pode construir-se ali onde os planos urbanísticos o consentirem; e o território nacional tende a estar, todo ele, por imposição constitucional, integralmente planificado [cf. artigos 9º, alínea e),
65º, nº 4, e 66º, nº 2, alínea b)]; o direito de edificar, mesmo entendendo-se que é uma faculdade inerente ao direito de propriedade, para além de ter que ser exercido nos termos desses planos, acaba, verdadeiramente, por só existir nos solos que estes qualifiquem como solos urbanos. Atenta a função social da propriedade privada e os relevantes interesses públicos que confluem na decisão de quais sejam os solos urbanizáveis, o direito de edificar vem, assim, a ser inteiramente modelado pelos planos urbanísticos. Fernando Alves Correia fala do direito de propriedade urbana como «um direito planificado»; e afirma que os planos urbanísticos são instrumentos que definem
«o conteúdo e limites do direito de propriedade do solo», sem que, ao menos em regra, tenham natureza expropriativa (Estudos cit., páginas 47 e 50). A conclusão a que acaba de chegar-se não é posta em crise pelo facto de a licença em causa nos autos já ter sido concedida no momento da edição das normas sub iudicio – e de, assim, se estar perante uma ablação de um direito (no caso, do direito de lotear) que, uma vez validamente concedido, passou a integrar a esfera patrimonial (é dizer, a propriedade) do titular da licença. De facto, a ablação desse direito, sendo, embora, susceptível de originar uma obrigação de indemnizar, não tem a virtualidade de transmudar a essência do direito de propriedade, por forma a fazer incluir nela faculdades que a garantia constitucional não cobre (recte, as faculdades de lotear, urbanizar e construir).
[...].
Portanto, e aplicando a doutrina do acórdão acabado de mencionar: quem entenda que o ius aedificandi (mais propriamente ainda, o direito de urbanizar, lotear e edificar) não se inclui no direito de propriedade privada, há-de concluir que o Governo, ao editar as normas em apreciação no presente recurso, não invadiu a reserva parlamentar estabelecida na alínea b) do n.º 1 do artigo 168º da Constituição (versão de 1989), dado que não editou normas sobre o direito de propriedade privada; mas ainda que se entenda que os direitos de urbanizar, lotear e edificar assumem a natureza de faculdades inerentes ao direito de propriedade do solo, há que reconhecer que não estão em causa faculdades que façam sempre parte da essência do direito de propriedade, tal como ele é garantido pela Constituição, pelo que o Governo, ao editar as normas em apreciação no presente recurso, não invadiu a referida reserva parlamentar. Com efeito, tal reserva parlamentar abrange apenas 'as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos ‘direitos análogos’, por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a actuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias'. Refira-se, por último, que em acórdãos ainda mais recentes o Tribunal Constitucional defendeu a orientação a que se aderiu (veja-se a fundamentação constante do acórdão n.º 517/99, de 22 de Setembro, publicado no Diário da República, II Série, n.º 263, de 11 de Novembro de 1999, pág. 17054, bem como do acórdão n.º 602/99, de 9 de Novembro, inédito). Relativamente à alegada inconstitucionalidade orgânica decorrente de as normas em referência consubstanciarem uma regulamentação de meios e formas de intervenção nos solos por motivo de interesse público (cfr. artigo 168º, n.º 1, alínea l), da Constituição, na versão de 1989), é evidente que o recorrente não tem razão. Na verdade, se se considerasse que a regulação da reserva ecológica nacional necessariamente consubstancia um meio ou forma de intervenção nos solos, perderia sentido a atribuição, à Assembleia da República, de competência reservada para legislar apenas sobre as bases do sistema de protecção da natureza e do equilíbrio ecológico (cfr. alínea g) daquele mesmo artigo). Por outras palavras, todo o regime da protecção da natureza e do equilíbrio ecológico deveria, já que forçosamente implica uma 'intervenção nos solos', no sentido utilizado pelo recorrente, cair no âmbito da reserva relativa de competência da Assembleia da República. Portanto, e sob pena de a referência às 'bases', constante da mencionada alínea g) do n.º 1 do artigo 168º perder qualquer conteúdo útil, é manifesto que a expressão 'meios e formas de intervenção nos solos' não pode significar a regulação dos instrumentos de protecção da natureza e do equilíbrio ecológico. Como assinalam Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª ed. revista, Coimbra Editora, 1993, pág. 674), a alínea l) do n.º 1 do artigo 168º deve ser relacionada com o artigo 83º, relativo aos requisitos de apropriação colectiva, sendo o seu âmbito idêntico.
11. Cabe agora analisar uma segunda questão. A circunstância de as normas em análise terem sido expressamente emitidas ao abrigo de um preceito constitucional que, ao tempo, dispunha sobre a competência legislativa do Governo em matérias não reservadas à Assembleia da República, aliada àqueloutra de apenas no preâmbulo do diploma do Governo se fazer referência à Lei de Bases do Ambiente, redundará na respectiva inconstitucionalidade formal (cfr. conclusões 3ª e 4ª, b) e c) das alegações do recorrente)? Como é óbvio, não interessa agora analisar esta questão sob o ponto de vista da falta de referência, no diploma do Governo, a uma qualquer lei de autorização legislativa (cfr., ainda, conclusão 3ª das alegações do recorrente), já que, como se explicou, as normas em apreço no presente recurso não se relacionam com as matérias a que aludem as alíneas b) e l) do n.º 1 do artigo 168º da Constituição (versão de 1989). Apenas cumpre saber se o Governo, ao emitir tal diploma, devia ter feito uma referência à Lei de Bases do Ambiente diversa daquela que fez, e se essa irregularidade origina inconstitucionalidade formal das normas constantes de tal diploma. A Constituição (versão de 1989, em vigor à data da aprovação do Decreto-Lei do Governo em causa) nada determinava sobre a necessidade de o Governo, ao legislar sobre matérias da reserva relativa da Assembleia da República ou ao desenvolver bases gerais de regimes jurídicos, expressamente invocar a alínea do n.º 1 do artigo 201º da Constituição ao abrigo da qual exercia tal competência legislativa. Apenas no n.º 3 do artigo 201º se exigia que, aquando do uso das competências legislativas aí mencionadas, o Governo indicasse a lei de autorização legislativa ou a lei de bases ao abrigo da qual aprovava um determinado diploma. Ora, se a Constituição não exigia que o Governo indicasse a alínea do preceito constitucional ao abrigo da qual exercia determinada competência, não pode vislumbrar-se qualquer vício susceptível de gerar inconstitucionalidade formal na circunstância de o Governo errar na indicação da alínea ao abrigo da qual legislava. Apenas podia configurar tal vício a omissão de indicação do diploma da Assembleia da República à sombra do qual o Governo exercia funções legislativas: a partir do momento em que, por exemplo, o Governo desenvolvia as bases gerais de um regime jurídico, era imperioso mencioná-lo no diploma. Em conclusão: não gera inconstitucionalidade formal a alegada 'errada indicação' da alínea ao abrigo da qual o Governo exerceu a sua competência legislativa, aquando da aprovação do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março, redundando tal vício em mera irregularidade. Apenas cabe perguntar se a exigência contida no n.º 3 do artigo 201º pode considerar-se satisfeita, quando o Governo apenas no preâmbulo do diploma por si aprovado indica a lei de bases (no caso, a Lei de Bases do Ambiente). E a resposta a esta questão deve ser afirmativa. O n.º 3 do artigo 201º da Constituição não exigia que a invocação da lei de bases fosse feita num local preciso do diploma aprovado pelo Governo. Bastava que essa invocação fosse expressa, o que certamente ocorreu. Diz-se, na verdade, no preâmbulo do diploma:
'[c]om o presente diploma, e no seguimento do disposto no artigo 27º da Lei de Bases do Ambiente – Lei n.º 11/87, de 7 de Abril – [...]'. Resolvida a questão da inconstitucionalidade formal que, pelas razões expostas, se não aceita, há que passar às restantes questões suscitadas pelo recorrente.
12. Padecerão as normas em apreço de inconstitucionalidade material? Afirma o recorrente (cfr. conclusões 4ª e 5ª, de fls. 230-231) que tais normas violam o disposto nos artigos 62º, 65º, n.º 4, e 266º, n.º 1, da Constituição
(versão de 1989). Na actual versão da Constituição, mantém-se, no essencial, o teor destes preceitos. O artigo 62º tutelava e tutela o direito de propriedade privada; o artigo 65º, n.º 4, dispunha que '[o] Estado e as autarquias locais exercerão efectivo controlo do parque imobiliário, procederão às expropriações dos solos urbanos que se revelem necessárias e definirão o respectivo direito de utilização' e, actualmente, dispõe que '[o] Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais definem as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo, e procedem às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística'; por fim, o artigo 266º, n.º 1, determinava e determina que '[a] Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos'. O recorrente apela ainda aos princípios da igualdade, justiça, proporcionalidade e prossecução do interesse público e boa administração. Para decidir a questão da inconstitucionalidade material das normas ora em causa, é importante recordar o que se disse no já citado acórdão n.º 329/99, de
2 de Junho:
'[...]
5. As questões de inconstitucionalidade material:
5.1. As normas sub iudicio e o direito de propriedade:
5.1.1. A recorrente sustenta que as normas sub iudicio são ainda inconstitucionais, por violação do artigo 18º, n.º 3, da Constituição, na medida em que, impondo «a confirmação da compatibilidade de actos constitutivos de direitos praticados em data anterior à publicação do PROT e do próprio Decreto-Lei n.º 351/93», e encurtando «o prazo de caducidade daqueles actos»,
«estabelecem restrições retroactivas em matérias incluídas nos direitos fundamentais de propriedade privada, iniciativa económica privada e ius aedificandi». Também neste ponto falece razão à recorrente. De facto, quando se entenda que o ius aedificandi não faz, sequer, parte integrante do direito de propriedade, por não ser uma das faculdades em que ele se analisa, a proibição de construir num determinado solo, em que antes a edificação era possível, não se traduz nunca em qualquer compressão ou restrição de tal direito. Mas, mesmo quando se entenda que o direito de construir (e, obviamente, o de lotear e urbanizar) é uma dimensão do direito de propriedade, as proibições de construção decorrentes dos planos urbanísticos (tal como as impostas pela REN, pela RAN ou pelo facto de determinada área ser qualificada como protegida) – e, naturalmente, as limitações e condicionamentos impostos ao direito de edificar por esses instrumentos de gestão dos solos – resultam da necessidade de resolver as situações de conflito entre o direito de propriedade e as exigências de ordenamento do território. E os conflitos de direitos ou bens jurídicos resolvem-se, harmonizando esses direitos ou bens jurídicos em toda a medida em que tal seja possível; ou, quando o não for, fazendo que uns prevaleçam sobre outros, que, desse modo, são, em parte, sacrificados. Significa isto que a especial situação da propriedade – seja a decorrente da sua própria natureza ou, antes, a que se liga à sua inserção na paisagem – importa uma vinculação também especial (uma vinculação situacional), que mais não é do que uma manifestação da hipoteca social que onera a propriedade privada do solo. E, por isso, essa proibição, sendo, como é, imposta pela própria natureza intrínseca ou pela situação da propriedade, não pode ser havida como inconstitucional. Claro é que isto não dispensa o legislador de criar instrumentos ou mecanismos de perequação das mais valias, de modo a garantir o respeito da justiça material, a qual só se observará, se os proprietários ou titulares de outros direitos reais dos terrenos abrangidos pelos planos urbanísticos forem tratados com igualdade. Por isso, aqueles instrumentos ou mecanismos hão-de corrigir os efeitos desigualitários criados pelos planos urbanísticos. De contrário, eles não se libertarão da «sombra desqualificante da desigualdade» que sobre eles pesa (cf. Fernando Alves Correia, in Problemas Actuais cit., página 19). As normas sub iudicio não violam, assim, neste ponto, o artigo 18º, n.º 3, conjugado com o artigo 62º, n.º 1, da Constituição.
[...]
5.2. As normas sub iudicio e o dever de indemnizar: A recorrente sustenta ainda que, como não prevêem «a atribuição de qualquer indemnização aos lesados pela prática de acto ablativo de não confirmação da compatibilidade de actos constitutivos de direitos perfeitamente válidos e eficazes à data da sua prolação, nem pela caducidade resultante dos novos prazos estabelecidos para o exercício dos direitos emergentes daqueles actos» – acto de não confirmação que pode constituir «verdadeiro acto expropriativo do direito de construir concretizado através de licenças urbanísticas válidas e eficazes» – as normas do Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, «enfermam de inconstitucionalidade material por violação dos princípios da justa indemnização, igualdade e proporcionalidade» (artigos 13º, 18º, 62º e 266º da Constituição). Vejamos, então: Disse-se atrás que a especial situação da propriedade – seja a decorrente da sua própria natureza ou, antes, a que se liga à sua inserção na paisagem – importa uma vinculação também especial (uma vinculação situacional), que mais não é do que uma manifestação da hipoteca social que onera a propriedade privada do solo. Por isso, a proibição de construir decorrente da natureza intrínseca da propriedade ou da sua especial situação não dá, em princípio, direito a indemnização. Mas já assim não será – sublinha Fernando Alves Correia, Estudos de Direito do Urbanismo citado, páginas 47 e notas 10 e 11, 68, 112 e 120 – quando essa proibição implicar um dano de gravidade e intensidade tais que torne injusta a sua não equiparação, à expropriação, para o efeito de dever ser paga uma indemnização.
[...].'
O trecho do acórdão acabado de transcrever transmite-nos as seguintes ideias centrais, perfeitamente pertinentes para a questão ora em análise: quando se entenda que o ius aedificandi não faz, sequer, parte integrante do direito de propriedade, a proibição de construir num determinado solo não se traduz nunca em qualquer compressão ou restrição de tal direito; mesmo quando se entenda que o direito de construir (e, obviamente, o de lotear e urbanizar) é uma dimensão do direito de propriedade, as proibições de construção impostas pela Reserva Ecológica Nacional e, naturalmente, as limitações e condicionamentos por ela impostos ao direito de edificar, resultam da necessidade de resolver as situações de conflito entre o direito de propriedade e as exigências de protecção da natureza e do equilíbrio ecológico, sendo impostas pela própria natureza intrínseca ou pela situação da propriedade e, portanto, não podendo ser havidas como inconstitucionais; a proibição de construir (e, obviamente, a de lotear e urbanizar) decorrente da natureza intrínseca da propriedade ou da sua especial situação não dá, em princípio, direito a indemnização, só assim não sendo quando a proibição implicar um dano de gravidade e intensidade tais que torne injusta a sua não equiparação à expropriação, para o efeito de dever ser paga uma indemnização. Aplicando estas ideias à questão a apreciar, temos que a sujeição a aprovação das operações de loteamento em certas áreas sujeitas ao regime transitório da Reserva Ecológica Nacional, se se entender que não traduz qualquer restrição do direito de propriedade, nem sequer coloca o problema da ofensa dos preceitos e princípios constitucionais apontados pelo recorrente; ainda que se entenda que tal restrição ocorre, ela seria perfeitamente justificada pela hipoteca social que onera a propriedade privada do solo e, como tal, conforme com a tutela constitucional da propriedade privada e com os princípios da igualdade, justiça, proporcionalidade e prossecução do interesse público e boa administração (este
último também aflorado no artigo 266º, n.º 1, da Constituição), contrariamente ao sustentado pelo recorrente. Relativamente à norma do n.º 4 do artigo 65º da Constituição (artigo que, na redacção emergente da 2ª revisão constitucional, tinha como epígrafe 'direito à habitação' e que, actualmente, tem como epígrafe 'habitação e urbanismo'), cuja violação o recorrente também invoca, é patente a sua falta de conexão com o assunto em debate. Na verdade, as normas em apreciação no presente recurso não põem em causa – porque pura e simplesmente não é esse o seu objecto – a competência do Estado e outros entes públicos para definir regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, ou para proceder à expropriação de determinados solos. Finalmente, a circunstância de as normas em apreço não preverem (talvez porque pura e simplesmente ao diploma em que se inserem não competisse dispor sobre o assunto) a atribuição de indemnização pela não aprovação de pedidos de loteamento não tem qualquer relevo na apreciação da questão ora em análise. Desde logo, porque nem tal indemnização esteve em discussão nos presentes autos, nem a decisão recorrida se pronunciou sobre ela: como tal, nunca no presente recurso se poderia aferir a conformidade constitucional de tais normas no sentido de não conferirem indemnização pela não aprovação de um projecto de loteamento.
III
13. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 5 de Dezembro de 2001 Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa