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Processo n.º 804/12
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
Relatório
1. Nos presentes autos foi proferida a Decisão Sumária n.º 577/2012, pela qual se determinou o não conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto por A. ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alíneas b) e g), da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, adiante referida como “LTC”), e que tinha por objeto seis questões de inconstitucionalidade. Notificado daquela Decisão, vem agora o recorrente deduzir reclamação, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, relativamente a uma das questões de inconstitucionalidade suscitadas com base na mencionada alínea g), e objeto de apreciação e decisão nos termos que a seguir se transcrevem:
« 5. Recurso interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea g), da LTC
As impugnações previstas no artigo 70.º, n.º 1, alínea g), da LTC têm por objeto as decisões dos tribunais que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal Constitucional. O conhecimento destes recursos pressupõe que a norma ou normas em questão tenha(m) sido aplicada(s) pelo tribunal recorrido na mesma dimensão que foi objeto de anterior juízo de inconstitucionalidade (ou ilegalidade). Não é, todavia, o que sucede no caso em apreço.
[…]
5.2. Quanto à segunda questão de constitucionalidade
Por fim, o recorrente impugna a interpretação do artigo 358.º do CPP, no sentido de “se entender como alteração de facto (não substancial) a consideração na sentença condenatória de factos atinentes aos modos de execução dos crimes de falsificação e de burla qualificada (B.) que embora pudessem constar dos meios de prova junto aos autos ou até do pedido civil do ofendido, não estavam especificamente descritos ou descriminados [sic] na acusação” com fundamento no Acórdão n.º 674/99, publicado no Diário da República, II Série, de 25 de fevereiro de 2000. Neste aresto, foi emitido juízo de inconstitucionalidade quanto às normas contidas nos artigos 358.º e 359.º do CPP, quando interpretadas no sentido de se não entender como alteração dos factos – substancial ou não substancial – a consideração, na sentença condenatória, de factos atinentes ao modo de execução do crime, que, embora constantes ou decorrentes dos meios de prova juntos aos autos, para os quais a acusação e a pronúncia expressamente remetiam, no entanto aí se não encontravam especificadamente enunciados, descritos ou discriminados.
No entanto, o tribunal recorrido não aplicou o artigo 358.º, n.º 1, do CPP neste sentido, mas antes no de que a condenação não assentou em factos que não constavam da acusação, como resulta expressamente do seguinte trecho: “(…) os factos alegadamente aditados não constavam efetivamente da acusação porque, como expressamente se regista – fls. 4592 – se trata de factos alegados no pedido de indemnização civil, sendo certo que não foram esses factos que permitiram qualificar qualquer dos tipos legais de crime de burla por que foi condenado. Na verdade, essa era já a qualificação jurídica feita na acusação“ (fls. 5202, verso) Pelo que, também quanto a esta questão, não pode o recurso ser conhecido por falta de identidade entre o objeto julgado inconstitucional pelo acórdão-fundamento e o sentido normativo efetivamente aplicado pela decisão recorrida.»
2. O recorrente discorda deste entendimento, invocando o seguinte na sua reclamação (cfr. fls. 5322 a 5327 dos autos):
« 1. O objeto desta reclamação reporta-se apenas à questão da inconstitucionalidade que foi apreciada no ponto 5.2 da decisão sumária e que havia sido levantada pelo recorrente na al. b) do ponto II do recurso interposto para esse Tribunal.
2. Inconstitucionalidade, essa, que se prende, conforme alegado no recurso interposto, com a questão de se saber se a interpretação do artigo 358º do CPP, quando aplicada no sentido de não se considerar como alteração substancial, a consideração no acórdão condenatório de factos atinentes à execução dos crimes, que não se encontravam descritos e descriminados na acusação, é ou não inconstitucional, independentemente de resultar numa modificação ou aumento da incriminação inicial.
3. A este respeito já esse Douto tribunal no Ac. 674/99 se pronunciou, declarando que é inconstitucional a interpretação do artigo 358º do CPP, na dimensão em que não configura alteração simples, e como tal sujeita ao formalismo plasmado na lei, a consideração no acórdão de factos atinentes à execução do crime que não constavam expressamente da acusação, ainda que constassem de outros elementos juntos aos autos, independentemente de tal consideração conduzir a uma modificação (aumento) da incriminação inicial ou alteração da qualificação jurídica.
4. O recorrente alegou tal inconstitucionalidade, da interpretação da referida norma, quanto aos crimes de falsificação e crime de burla, pelos quais foi condenado.
5. Relativamente aos crimes de falsificação, a acusação imputa a seguinte factualidade:
Quanto à falsificação do BI de C., cfr. art. 13º e 14º da acusação: “ E assim, no decurso de 2002, de modo e de indivíduo não identificado obteve o A. documentos sonegados aos titulares, nomeadamente (…) BI nº … emitido em nome de C. (…) e em data indeterminada de 2002, em local não apurado, retirou a fotografia aposta no BI …, no local da qual colou a sua fotografia.”
Quanto à adulteração do cheque da “D.”, a acusação imputava ao arguido a seguinte factualidade, cfr. art. 73º da acusação: “Na posse do cheque, em local indeterminado, e em data não apurada, o arguido A., no início do montante constante do cheque, acrescenta o número 38, passando assim o valor do cheque para €38.673,38”
6. Sobre estes factos o Tribunal de 1º Instância, deu respetivamente como provada a seguinte factualidade:
“Em data indeterminada do ano de 2002, em local não apurado, o arguido A., ou alguém a seu pedido, retirou a fotografia aposta no BI …., no local da qual colocou a fotografia daquele”.
“Na posse do cheque, em local indeterminado e em data não apurada, o arguido A., ou alguém a seu pedido, acrescentou o número 38, no início do montante constante do cheque, passando assim, o valor do cheque para €38.673,38.”
7. Ora, tal como se pode ler na acusação o arguido vinha acusado de ter sido ele próprio a praticar tais factos, tendo toda a sua defesa sido construída com base em tal premissa.
8. Como o Tribunal de 1ª Instância não conseguiu provar a sua intervenção pessoal alterou o modo de execução do crime, acrescentando a possibilidade destes terem sido cometidos por um 3º, com o conhecimento do arguido e com este conluiado.
9. No entanto, e atendendo ao Acórdão do TC, já referido, se o tribunal pretendia alterar os factos atinentes à execução dos crimes, deveria ter cumprido o formalismo exigido pela Lei, informado de tal o arguido, independentemente de tal alteração não imputar novos crimes ao arguido ou alterar a qualificação jurídica inicial.
10. Estas questões foram devidamente levantadas no seu recurso interposto para o TRL – art. 202º, 205º e 206º das conclusões – alegando em suma, que a norma do artigo 358º do CPP, quando empregue com a interpretação supra exposta já tinha sido julgada inconstitucional por esse douto tribunal no Ac. 674/99.
11. O TRL, decidiu relativamente a esta questão suscitada pelo arguido, não haver lugar à aplicação do artigo 358º, porque na prática esta nova incriminação constituía um minus em relação aquela que constava da pronúncia.
12. O Tribunal Constitucional, perante esta mesma questão levantada no recurso do recorrente, no ponto 5.2 não apreciou a mesma, tendo somente apreciado relativamente ao crime de burla, apesar da mesma se encontrar suscitada no ponto II, al. b) do recurso interposto para esse Douto Tribunal.
13. O arguido vinha também acusado por um crime de burla na forma qualificada, p.p pelos artigos 217º e 218º, nº2, al.a) do CP, descritos na acusação nos art. 1º a 68º e 84º a 103º, em que a acusação refere que os B. sofreram um prejuízo patrimonial igual ao valor total dos pagamentos por si efetuados aos arguidos, pagamentos, esses, descritos no art.50º da acusação e que perfazem um total de €13.744,13.
14. O Tribunal de 1ª Instância face à questão levantada da errada qualificação jurídica, atendendo ao valor do prejuízo, plasmada na acusação, pelo arguido na sua contestação, resolveu esta problemática, considerando que o despacho acusatório procedeu a um correto enquadramento jurídico do crime de burla, atendendo ao prejuízo total causado ao ofendido, prejuízo esse, que se encontrava descrito no pedido de indemnização cível e não na acusação, no valor de €35.400,48.
15. Na realidade os factos atinentes à execução deste crime que vinham descritos na acusação e que se encontram no art.50º da mesma e que foram dados como provados no acórdão somente referem um prejuízo máximo de €13.744,13.
16. No entanto, o tribunal de 1ª Instância conseguiu dar como provado o prejuízo patrimonial de €35.400,48 e assim manter a qualificação jurídica inicial através da introdução de factos provados que não constavam da acusação, mas sim do pedido cível do ofendido, cfr. pontos 1.93, 1.99, 11.101, 1.103, 1.105, 1.107, 1.113, 1.115 e 1.119.
17. Na verdade, esses factos (pagamentos) não constavam da acusação ou pronúncia, não vinham aí descritos ou descriminados, nem sequer foram imputados ao arguido.
18. Como resulta do exposto, foi o arguido condenado num crime de burla qualificada p.p pelos art. 217º e 218º, nº2, al. a) do CP, tendo como factos atinentes ao modo de execução do crime, factos que não constavam da acusação, nem aí se encontravam descriminados tendo sido estes que permitiram ao tribunal em sede de acórdão validar e manter a qualificação da incriminação.
19. Ora, se o tribunal pretendia aditar factos novos quanto à execução do crime constantes no pedido de indemnização cível do ofendido, deveria ter cumprido o formalismo exigido pela lei, nomeadamente no artigo 358º do CPP.
20. Tal questão foi devidamente levantada em sede de recurso para o TRL que se pronunciou, afirmando que na realidade, tais factos novos atinentes à execução do crime foram aditados, na medida em que não constavam da acusação ou pronúncia, mas sim do pedido cível, mas que não foram usados para qualificar o crime de burla imputado ao arguido.
21. Da mesma forma, suscitou o arguido essa questão junto desse Tribunal, tendo a mesma sido decidida no ponto 5.2 da decisão sumária,
22. Em suma, o objeto do recurso interposto pelo arguido para o TC e que consta no ponto II da al. b), devidamente apreciado no ponto 5.2 da decisão reclamada seria a de saber se efetivamente ao apreciar e decidir sobre as questões supra expostas, já anteriormente levantadas para o TRL, o mesmo teria feito ou não uma interpretação da norma contida no artigo 358º do CPP, ou aplicado a mesma, com um sentido já anteriormente julgado inconstitucional por esse TC no seu AC. 674/99.
23. Esse acórdão refere expressamente: “Julga inconstitucionais as normas contidas nos artigos 358º e 359º do CPP, quando interpretadas no sentido de se não entender como alteração dos factos – substancial ou não substancial – a consideração, na sentença condenatória, de factos atinentes ao modo de execução do crime, que, embora constantes ou decorrentes dos meios de prova juntos aos autos, para os quais a acusação e a pronúncia expressamente remetiam, no entanto aí se não encontravam especificamente enunciados, descritos ou descriminados, por violação das garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório assegurados no artigo nº 32º, nºs 1 e 5 da CRP.”
24. Ora, se o recurso para esse TC do arguido levantou a questão quanto ao facto de ter sido condenado quer no crime de falsificação quer no crime de burla por factos atinentes ao modo de execução dos referidos crimes que não constavam da acusação, independentemente da alteração jurídica dos crimes, o que este pretendeu ver esclarecido foi se o TRL na sua interpretação e aplicação do artigo 358º seguiu entendimento já considerado inconstitucional pelo referido acórdão 674/99.
25. No ponto 5.2 da decisão reclamada a questão supra exposta quanto ao crime de falsificação não é apreciada sendo somente quanto ao crime de burla, mas de forma, no entender do reclamante, diferente da levantada por este.
26. O TC refere que não assiste razão ao recorrente porque a qualificação jurídica do crime de burla não assentou em factos novos, pois já constava da pronúncia.
27. No entanto, a questão levantada pelo reclamante não diz respeito à qualificação, mas antes aos factos atinentes ao modo de execução do crime.
28. E a este respeito já se pronunciou o TC, Ac. 674/99, afirmando: “ qualquer alteração não substancial da acusação, isto é, qualquer modificação da base factual do processo que não padeça efeitos iguais aos expressos na al. f) do art. nº1º do CPP, ainda que irrelevante do ponto de vista jurídico substantivo, mas que implique com o exercício de uma defesa eficaz pode e deve, hoje, ser levado em conta, apenas se tendo que cumprir o ritual do artigo 358º”.
29. Assim, não restam dúvidas na opinião do reclamante que se o TRL apreciou as questões levantadas no recurso do arguido, teve que o fazer à luz de tal preceito normativo.
30. Desta forma, entende o reclamante que a decisão sumária – ponto 5.2 - não apreciou a questão levantada pelo arguido no seu recurso com a dimensão normativa que este lhe conferiu e acima explanou, quanto ao crime de burla, tendo ainda sido omissa quanto ao crime de falsificação.»
3. O Ministério Público apresentou resposta, no sentido do indeferimento da reclamação (fls. 5332 a 5336 dos autos).
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
4. Na sua reclamação o recorrente move duas ordens de críticas à Decisão Sumária n.º 577/2012: não apreciação das questões por si suscitadas com referência aos crimes de falsificação (cfr. os n.os 5 a 12 e 25 da reclamação); no tocante ao crime de burla, não consideração do aspeto por si tido por relevante, ou seja, a incidência da alteração dos factos atinentes ao “modo de execução do crime”, e não, como fez a Decisão Sumária reclamada, relativamente à “qualificação do crime” (cfr. os n.os 13 a 21 e 25 a 27 da reclamação). Porém, sem razão. Com efeito, o recorrente, ora reclamante, abstrai do que efetivamente foi apreciado e decidido na aludida Decisão: a verificação dos pressupostos essenciais do recurso de constitucionalidade, de modo a tornar possível uma pronúncia sobre o respetivo mérito, mas não só; por se ter entendido haver uma questão simples, para os efeitos previstos no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, relativamente a uma das questões foi negado provimento ao recurso.
5. No que se refere à matéria atinente aos crimes de falsificação, a mesma ficou prejudicada pelo decidido no n.º 4.2 da Decisão Sumária reclamada, o qual não foi objeto de reclamação. Nessa oportunidade, foi decidido o seguinte:
« 4.2. Quanto à segunda questão de constitucionalidade
A segunda questão suscitada engloba as normas constantes dos artigos 358.º e 379.º, n.º 1, alínea b) do CPP, interpretadas novamente numa dúplice dimensão.
Em primeiro lugar, no sentido de não se entender como «alteração de factos (não substancial) a consideração na sentença condenatória dos seguintes factos atinentes à execução no crime de falsificação de documentos: – [a] falsificação da assinatura do c-oarguido Paulo Correia em cheque dos autos; – [a] comissão em coautoria com alguém não apurado dos factos provados nos pontos 1.8 e 1.56 do acórdão de 1.ª instância; [e] do crime de burla qualificada (ofendido B.: – [t]odos os factos provados nos pontos 1.93, 1.99, 1.101, 1.103, 1.105, 1.113, 1.115 e 1.119 do acórdão de 1.ª instância. Factos esses que embora constantes ou decorrentes de meios de prova junto aos autos ou do pedido civil do ofendido (B.), não vinham especificamente descritos ou descriminados na acusação.» Em segundo lugar, na dimensão segundo a qual, «vindo o arguido acusado pela prática de 8 crimes de falsificação de documento, se possa proceder de forma surpresa na sentença condenatória à convolação dos mesmos num só crime, sem se comunicar previamente à defesa a possibilidade dessa ocorrência, sem se lhe conceder prazo para se defender da mesma e sem se considerar que tal modificação seja uma alteração na qualificação jurídica.» O recorrente invoca como parâmetros as garantias de defesa do arguido e os princípios do acusatório e do contraditório, nos termos do artigo 32.º, n.ºs 1 e 5 da Constituição.
4.2.1. Relativamente à primeira dimensão desta questão, é fácil de constatar que a mesma não tem um objeto apto a integrar um recurso de constitucionalidade. Como já se referiu, o recurso interposto visa a apreciação de normas ou questões normativas. Ora, o que o recorrente pretende sindicar, sob a capa de uma alegada interpretação de normas, é o juízo decisório que, face a certos factos, deu como verificada uma alteração não substancial dos factos. Mas o escrutínio desta questão implicaria que o Tribunal entrasse no controlo da correção da decisão recorrida propriamente dita, o que escapa por completo às suas competências as quais se restringem à fiscalização da constitucionalidade de normas. De resto, no artigo 202.º das conclusões da motivação do recurso (fls. 4809 e 4810) nem sequer é mencionado qualquer parâmetro de constitucionalidade, nomeadamente aqueles que são referidos no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade.
4.2.2. Quanto à segunda dimensão, verifica-se, desde logo, e uma vez mais, que nos artigos 28.º a 31.º da motivação do recurso (fls. 4761-4762) – a peça processual em que foi suscitada a questão em apreço – o recorrente se limita a arguir a nulidade da sentença de primeira instância, sem suscitar qualquer questão de constitucionalidade normativa. Vale, assim, por identidade de razão, o fundamento de não admissão referido supra em 4.2.1.
Por outro lado – e este constituiria um fundamento autónomo para a prolação da presente decisão – entendeu o tribunal recorrido que a alteração da qualificação jurídica, traduzindo-se, em concreto, em situação em que, vindo o arguido acusado da prática de oito crimes de falsificação e sendo condenado apenas pela prática de um, o que sucedeu foi que se teve em consideração apenas a existência de um crime e não de uma pluralidade de crimes. Assim sendo, continuou o mesmo tribunal, não se verifica uma alteração (substancial ou não) dos factos da pronúncia, uma vez que os factos considerados provados representam um minus relativamente àqueles outros, convocando, nesse sentido, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 72/2005. Aliás, o ora recorrente, quando aflora esta questão no recurso para a Relação, reconheceu expressamente esta mesma fundamentação - que veio posteriormente a ser adotada para negar, nesta parte, provimento ao recurso - quando disse o seguinte: «[é] verdade que a alteração na qualificação jurídica corresponde a um “minus” em relação aos crimes por que o arguido foi pronunciado; pois passou de 8 a 1 mas ainda assim deveria o tribunal ter cumprido o disposto nos n.ºs 1 e 3 do art. 358.º do CPP (…)» (artigo 32.º da motivação, fls. 4762).
Como bem salientou a decisão recorrida, o Tribunal Constitucional apreciou já o artigo 358.º, n.º 1 do CPP na dimensão que considera não constituírem alteração não substancial dos factos relevante as situações em que os factos em que assenta a condenação integrem o mesmo tipo legal de crime e que representam um minus em relação ao que constava da pronúncia, designadamente no referido Acórdão n.º 72/2005, disponível em www.tribunalconstitucional.pt. É para essa jurisprudência que agora se remete, a qual é inteiramente aplicável, negando-se, nesta parte, provimento ao recurso pelo facto de a questão se apresentar como questão simples, para os efeitos previstos no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.»
Este entendimento é de manter.
Acresce que o recorrente acaba por reconhecer expressamente que o critério normativo aplicado pelo Tribunal da Relação de Lisboa nada tem que ver com o critério normativo sindicado pelo recorrente.
Com efeito, o recorrente afirma no n.º 11 da sua reclamação: “o TRL decidiu relativamente a esta questão [ - a alteração dos factos atinentes à execução dos crimes -] suscitada pelo arguido, não haver lugar à aplicação do artigo 358.º, porque na prática esta nova incriminação constituía um minus em relação aquela que constava da pronúncia”.
Exatamente: assim foi decidido pelo tribunal recorrido e confirmado na decisão reclamada, em aplicação da jurisprudência afirmada no Acórdão n.º 72/2005 deste Tribunal.
Consequentemente, a questão já não tinha de voltar a ser apreciada – como não foi – no n.º 5.2 da Decisão Sumária reclamada, agora a pretexto do pretenso desrespeito de uma outra decisão do Tribunal Constitucional. Não se verifica, portanto, a invocada omissão.
6. No que se refere especificamente ao n.º 5.2 da mesma Decisão, nomeadamente à questão de saber se aí foi apreciada, ou não, a dimensão normativa que o recorrente pretendia quanto ao crime de burla, o problema é diferente e radica – parece - na errada interpretação que o recorrente faz da decisão recorrida: esta não aplicou o critério normativo julgado inconstitucional por este Tribunal no seu Acórdão n.º 674/99 – a dimensão interpretativa dos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal de não entender como alteração dos factos – substancial ou não substancial – a consideração, na sentença condenatória, de factos atinentes ao modo de execução do crime, que, embora constantes ou decorrentes dos meios de prova juntos aos autos, para os quais a acusação e a pronúncia expressamente remetiam, no entanto aí se não encontravam especificadamente enunciados, descritos ou discriminados.
Com efeito, o tribunal recorrido foi inequívoco ao afirmar (cfr. fls. 5202, verso, e 5203 dos autos):
« A decisão de facto plasmada na decisão impugnada traduz uma reprodução, ordenada, sistematizada, e minudenciada, dos factos que constavam da acusação, com exclusão daqueles que vieram a ser dados como não provados (como acontece, v.g., com os factos descritos nos arts. 57º, 58º,e 59º da acusação, dados com não provados nos pontos 2.21, 2.22 e 2.23 do Acórdão). Por sua vez, os factos alegadamente aditados não constavam efetivamente da acusação porque, como expressamente se regista – fls. 4592 – se trata de factos alegados no pedido de indemnização civil, sendo certo que não foram esses factos que permitiram qualificar qualquer dos tipos legais de crime de burla, por que foi condenado. Na verdade, essa era já a qualificação jurídica feita na acusação.
O arguido/recorrente traz a terreiro, quanto a este quid, as considerações vertidas na decisão impugnada, em sede de fundamentação da decisão de facto.
Quanto a este aspeto necessário se torna ter presente que uma coisa é a matéria de facto realmente dada como provada – e que é a que consta dos pontos 1.1. a 1.230 e se mostra harmónica com o objeto do processo na sua delimitação operada pela acusação -, outra coisa, bem diversa – é a motivação da matéria de facto dada como provada e não provada.
Quanto a nós, salvo o devido respeito por opinião em contrário, parece-nos que o arguido/recorrente mistura uma realidade com a outra, almejando tirar conclusões da matéria de facto não provada, que visa ver modelada nos factos provados, sem que isso dimane da decisão proferida.
Por tudo isto, naufraga este segmento do recurso.»
O reclamante poderá discordar deste entendimento, mas foi esta a ratio decidendi do acórdão recorrido, e não a interpretação normativa por si apresentada.
Pelo que, e conforme decidido na Decisão Sumária reclamada, não podia – e não pode - o recurso ser conhecido por falta de identidade entre o objeto julgado inconstitucional pelo acórdão-fundamento e o sentido normativo efetivamente aplicado pela decisão recorrida.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão sumária proferida.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, considerando os critérios seguidos pelo Tribunal e a dimensão do impulso desenvolvido pelo recorrente (cfr. o artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro).
Lisboa, 31 de janeiro de 2013. – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura - Joaquim de Sousa Ribeiro