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Processo n.º 917/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
1.1. A., SA, e B., SA, interpuseram recurso
para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º
da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra o acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça, de 6 de Outubro de 2005, que, além do mais, julgou
improcedente recurso de revista por elas interposto do acórdão do Tribunal da
Relação de Lisboa, de 7 de Outubro de 2004, na parte em que concedera parcial
provimento à apelação do autor C. e declarara nulo o contrato, datado de 29 de
Dezembro de 1989, de aquisição pela A., SA, à D., SGPS, de um lote de 4500
acções da B., SA.
De acordo com o respectivo requerimento de
interposição, as recorrentes pretendem que o Tribunal Constitucional aprecie a
inconstitucionalidade – por violação do direito de defesa e do direito a um
processo equitativo, consagrados no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da
República Portuguesa (CRP), bem como dos princípios da segurança e certeza
jurídica, plasmados no artigo 2.º da CRP – da norma do artigo 343.º, n.º 1, do
Código Civil, na interpretação que lhe teria sido dada no acórdão recorrido,
“isto é, com o sentido de que, numa acção de simples apreciação em que o autor
pede a declaração de nulidade de um contrato de aquisição de acções e dos actos
que um dos réus praticou invocando a qualidade de accionista do outro réu, seria
aos réus que competiria provar não só a existência de tal contrato, mas também
que este não padeceu de nenhum vício, e, concretamente, dos que lhe são
imputados pelo autor”, questão de inconstitucionalidade esta que teria sido
suscitada pelas recorrentes “na sua alegação de recurso de revista e foi objecto
da conclusão 8.ª dessa mesma alegação”.
1.2. O presente recurso emerge de acção
declarativa de simples apreciação, intentada por C. contra as ora recorrentes,
pedindo: a) se declare nulo o contrato com data de 29 de Dezembro de 1989,
assinado por E. em nome da A., tendo por objecto a aquisição de 4500 acções da
B., SA; b) caso assim se não entenda, se declare ineficaz para a sociedade A. a
aquisição de bens feita ao accionista fundador, D. SGPS; c) por efeito da
declaração de nulidade ou ineficácia, sejam nulos todos os actos que os
administradores da A. praticaram tendo como pressuposto a qualidade de
accionista da B.; d) sejam declaradas nulas e havidas como inexistentes as
assembleias gerais da B., SA, cujo quorum constitutivo foi inquinado pela
presença da A., enquanto detentora de mais de 90% do respectivo capital social
ou de igual percentagem de votos.
Como fundamento da sua pretensão, o autor
alegou, em síntese, o seguinte: 1) No capital social da A., sociedade anónima,
tem o autor 403 acções ao portador de valor nominal de 1000$00 cada; 2) A A.,
invocando‑se detentora de mais de 90% do capital social da B., nela colocou
recursos financeiros que, em 31 de Dezembro de 1991, ultrapassavam 2 000 000
contos, o que põe em risco a integridade patrimonial da A.; 3) Tudo assentou
numa pretensa aquisição de um lote de 4500 acções da B., à D. SGPS,
correspondente a 90% do respectivo capital social; 4) A B. foi constituída pela
D. com um capital social de 5 000 000$00, visando o lançamento de um jornal
diário; 4) Além da D., são accionistas fundadores da B., E. e F.; 5) Os
accionistas da A. dão‑se conta, em 1990, de que a sociedade se havia convertido
na fonte financiadora da B., para aí transferindo os seus recursos, sem nunca
haverem deliberado qualquer autorização para o efeito; 6) As acções da B.
encontram‑se sujeitas a registo nos termos do artigo 13.º do Decreto‑Lei n.º
85‑C/75, de 26 de Fevereiro, e as próprias acções da A.teriam de passar a ser
nominativas – artigo 7.º, n.º 10, do Decreto‑Lei n.º 85‑C/75; 7) Em 7 de Março
de 1990, não constava na Direcção‑Geral da Comunicação Social que a A.fosse
accionista da B.; 8) A administração da A., interpelada em assembleia geral,
sempre ocultou aos seus accionistas o modo como se constituíra accionista da
B.; 9) O contrato de aquisição das 4500 acções da B. é firmado apenas com uma
assinatura, quando, por força dos estatutos, a sociedade só se obriga com duas
assinaturas; 10) Tal contrato não foi precedido de deliberação válida do
Conselho de Administração da A.; 11) Em 1989, a A. adquiriu à D. 29 500 contos
de acções e obrigações, sem prévia autorização da assembleia geral de
accionistas; 12) Tais aquisições não foram feitas em bolsas; 13) A A. tinha
aumentado o seu capital de 200 000 para 300 000 contos; 14) O contravalor dos
bens adquiridos à D. só em 1989 ultrapassou os 2% do capital social que a lei
prevê como limite; 15) A aquisição das 4500 acções da B. tendia ao domínio
total, nos termos do artigo 490.º do CSC, e sujeito ao direito potestativo de
cada um dos accionistas livres de exigir que a sociedade dominante lhe fizesse
uma oferta de aquisição, nos termos do n.º 5 daquele artigo; 16) O contrato de
aquisição das 4500 acções não é vinculativo para a A., porque firmado apenas
pelo Eng. E.; 17) Quando, em 12 de Abril de 1990, a B. requer o segundo registo
de acções, o Eng. E. deixara de ser accionista da B., que teria alienado a sua
posição a favor de D., como forma de atingir o lote das 4500 acções; 18) Essa
transmissão estava sujeita a deliberação do Conselho de Administração da A., em
que ele não podia votar, e ao parecer do Conselho Fiscal, o que não foi feito.
1.3. Tendo a acção sido julgada improcedente
e os réus sido absolvidos do pedido, o autor deduziu recurso de apelação para o
Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 7 de Outubro de 2004, lhe
concedeu parcial provimento, declarando nulo o contrato de aquisição de acções
celebrado entre a A. e a D., por falta de observância das formalidades ad
substantiam para a transmissão das acções, e reconhecendo que, caso não fosse
nulo, o contrato seria ineficaz, nos termos do artigo 29.º, n.º 5, do CSC, por
ser estranho ao objecto da 1.ª ré. Foram, no entanto, desatendidas, entre
outras, as pretensões do autor apelante no sentido: (i) da nulidade do pacto
social da B. na parte em que prevê que o capital social podia ser constituído
por acções nominativas ou ao portador; (ii) da inexistência jurídica dos
títulos; (iii) da nulidade do contrato de transmissão de acções por nele ter
participado o administrador de uma das sociedades, em violação do disposto no
artigo 397.º, n.º 2, do CSC; (iv) da falta de intervenção do número de
administradores exigido; (v) da nulidade dos contratos de suprimento; e (vi) da
nulidade das assembleias gerais em que a A. participou na qualidade de
accionista da B..
Para alcançar esta decisão, desenvolveu o
Tribunal da Relação de Lisboa a seguinte argumentação:
“c) Natureza da acção.
Intentou o autor a acção como de «simples apreciação
negativa». Até à prolação da sentença, não tomou o Tribunal posição expressa
quanto à invocada natureza. Em sede de sentença, começou o tribunal por
qualificar a acção como de «simples apreciação positiva».
Dispõe o artigo 4.º, n.º 2, do CPC que as acções declarativas
podem ser de simples apreciação. As de simples apreciação têm por fim obter
unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um
facto. Temos pois acções de simples apreciação «positiva» e «negativa». Como
refere Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 21), «A
questão (da admissibilidade da acções de simples apreciação) está resolvida.
Pode propor‑se uma acção de simples apreciação quer sob a forma positiva (acção
destinada a fazer declarar a existência de um direito ou de um facto) quer sob a
forma negativa (acção proposta para se obter a declaração da inexistência de um
direito ou de um facto). (...) O que caracteriza a acção de simples apreciação
e a distingue da acção de condenação é a ausência de lesão ou violação do
direito. A acção de condenação pressupõe um facto ilícito, isto é, que o direito
já foi violado; a acção de simples apreciação é anterior à violação do direito
ou tudo se passa como se o fosse. (...) Na acção de simples apreciação não se
exige do réu prestação alguma, porque não se lhe imputa a falta de cumprimento
de qualquer obrigação. O autor tem simplesmente em vista pôr termo a uma
incerteza que o prejudica: incerteza sobre a existência de um direito ou de um
facto».
Do que fica dito resulta que se relativamente às acções de
simples apreciação (positiva ou negativa) o que se pretende é pôr termo a uma
situação de incerteza, susceptível de o prejudicar («O que dá origem à acção é o
facto de o réu se arrogar determinada pretensão» – Alberto dos Reis, Código de
Processo Civil Anotado, vol. III, pág. 289), será em função do pedido que se
aferirá se a acção de simples apreciação é «positiva» ou negativa». Isso mesmo
refere Anselmo de Castro (Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, pág.
115, edição de 1981), quando diz: «O que interessa, porém, para a sua
classificação como negativa ou positiva, é o teor do pedido, a providência que o
autor requer – e não a que o tribunal venha a decretar. O titular de um direito
lançará mão de uma acção de declaração positiva quando, estando na posse dele,
se levantem dúvidas acerca da existência ou conteúdo preciso do seu direito».
No caso presente, o autor demanda as rés, impugnando a
qualidade de accionista no capital social da B. da 1.ª ré. O pedido formulado
consiste na declaração de nulidade do contrato de aquisição de acções, bem como
dos actos que esta praticou, invocando aquela qualidade (de accionista da B.). O
que o autor pretende consiste, no essencial, na negação da qualidade de
accionista no capital da B., que a 1.ª ré se arroga. Está‑se, pois, perante
acção de «simples apreciação negativa».
O apelante suscita a questão, atento o regime do «ónus da
prova», consagrado na lei. Dispõe o artigo 343.º do CC que nas acções de
simples apreciação negativa compete ao réu a prova dos factos constitutivos do
direito que se arroga. No entender do apelante, o ónus da prova recairá sobre as
rés, pelo que o non liquet reverterá em desfavor das rés. «(O ónus da prova)
traduz‑se, para a parte a quem compete, no encargo de fornecer a prova do facto
visado, incorrendo nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o
facto contrário, quando omitiu ou não logrou realizar essa prova; ou na
necessidade de, em todo o caso, sofrer tais consequências se os autos não
contiverem prova bastante desse facto (trazida ou não pela mesma parte)»
(Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 197).
A questão do ónus da prova, apesar do preceito citado, exige
uma cuidada interpretação, não sendo correcto atender‑se unicamente à posição
das partes na acção (autor e réu).
Em termos gerais, o ónus da prova recai sobre quem invoca um
direito – artigo 342.º do CC. «Quem invoca ou ostenta um direito tem de provar
os respectivos factos constitutivos e apenas eles. Provados estes, cumpre à
outra parte provar os factos impeditivos ou extintivos do direito que se lhe
contraponham. Quer isto dizer que o ónus da prova aparece sempre como inerente
à própria norma jurídica a aplicar» (Anselmo de Castro, Direito Processual Civil
Declaratório, vol. III, pág. 353). Refere ainda o mestre citado (obra citada,
pág. 351): «Se ao autor fosse imposto a prova de todos os factos
fundamentadores exigidos pela norma criadora do Direito – factos constitutivos
– e a mais deles a da inexistência de qualquer facto que invalidasse ou tornasse
ineficaz o direito, ou o modificasse ou extinguisse – factos impeditivos,
modificativos ou extintivos –, isto é, se se lhe impusesse a prova do que o seu
direito não só nascera, como subsistia, não poderia o autor conseguir na maioria
dos casos a efectivação da sua pretensão, impossibilitando‑se assim a realização
do direito objectivo».
É este princípio geral que está subjacente também à previsão
do artigo 343.º do CC, e não, como refere alguma doutrina, a maior ou menor
dificuldade da prova do facto negativo. Com efeito, quem invoca um direito
perante o tribunal é por via de regra o autor. Ora, no caso da acção de simples
apreciação negativa, quem se arroga um direito é o réu. Do autor citado
extrai‑se o seguinte (pág. 354): «A razão persiste a mesma: ser então o réu que
invoca o direito e a esse título lhe competir, conforme a regra, a prova dos
respectivos factos constitutivos e não a razão de ser demasiado oneroso e
difícil para o autor ter de fazer a prova negativa de todos os possíveis factos
constitutivos do direito a que o réu se arroga». Ao réu incumbirá, pois, a prova
dos factos constitutivos do direito que se arroga, enquanto que ao autor se
impõe a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito.
«A posição que tomamos sobre o problema é a de Rosenberg, e que é agora a
consignada na lei (...). Assim, enquanto para Rosenberg (...) são impeditivas
(logo constitutivas de excepção) as normas que determinam a invalidade do
negócio, e é à parte da relação jurídica material que quiser aproveitar‑se
delas que compete a prova dos respectivos factos, seja réu ou autor na acção
(...)» (obra citada, págs. 355/357).
Revertendo ao caso concreto, temos que o direito invocado pela
1.ª ré e que justifica a pretensão do autor é a «qualidade de accionista» no
capital social da 2.ª ré, por via de um contrato de aquisição de acções, entre
estas celebrado. Sobre as rés recai pois a prova dos factos constitutivos do
seu direito, (existência do referido contrato e qualidade daí resultante),
enquanto que sobre o autor recai o ónus de alegação e prova dos factos
impeditivos, modificativos ou extintivos (vícios do referido contrato), como já
se referiu, e não, como pretende o apelante, remeter-se à situação de nada ter
que provar, lançando esse ónus sobre as rés.
d) O contrato.
Do factualismo assente resulta que a A. terá firmado, com a D.
SGPS, com data de 29 de Dezembro de 1989, um contrato de aquisição de 4500
acções da B. de que aquela sociedade seria detentora» (3). É por via deste
contrato que a A. passa a actuar como accionista da B., sendo que, no entender
do apelante, o mesmo enferma de nulidade.
I – Natureza das acções objecto do referido contrato
(nominativas ou ao portador).
A fl. 40 encontra‑se cópia do referido contrato, e do mesmo
consta, entre outras coisas, o seguinte: «A 1.ª contraente é possuidora de 4500
acções com o valor nominal de mil escudos, representativas do capital social da
sociedade denominada B., SA ... com o capital social de 5 000 000$00»; «Pelo
presente contrato vende as referidas acções, livres de quaisquer ónus ou
encargos, à 2.ª contraente».
Não se refere no contrato qual o tipo de acções em causa.
Sustenta o apelante que as acções terão obrigatoriamente que ser «nominativas»,
por força do disposto no n.º 10 do artigo 7.º do Decreto‑Lei n.º 85-C/75, de 26
de Fevereiro (Lei de Imprensa – em vigor à altura).
O preceito referido (artigo 7.º, n.º 10, do Decreto‑Lei n.º
85‑C/75) dispunha que «No caso de a publicação periódica pertencer a uma
sociedade anónima, todas as acções terão de ser nominativas, o mesmo se
observando quanto às sociedades anónimas que sejam sócias daquela que é
proprietária da publicação».
Quer a B., quer a A. constituíram‑se sob a forma de
sociedades comerciais anónimas, conforme resulta dos seus estatutos (fls. 33,
96 e 137). A escritura de constituição data, respectivamente, de 31 de Outubro
de 1989 e 16 de Julho de 1986. No pacto social inicial da B., consta como
objecto «a actividade de redacção, composição e edição de publicações
periódicas, exploração de estações e estúdios de rádio e televisão,
compreendendo a preparação e comercialização e difusão para o público de
programas áudio‑visuais e a prestação de serviços de televisão em circuito
fechado e retransmissão de rádio e televisão» (35). Consta ainda dos seus
estatutos que «as acções serão nominativas ou ao portador, reciprocamente
convertíveis» (41). Por alteração dos estatutos da B., datada de 2 de Novembro
de 1990, o artigo 6.º passou a ter a seguinte redacção: «Todas as acções serão
obrigatoriamente nominativas» (69).
O preceito citado (artigo 7.º, n.º 10, do Decreto‑Lei n.º
85‑C/75) materializa o princípio de exigência de «transparência», no domínio
das publicações periódicas, por forma a poder saber‑se em qualquer momento quem
são os seus proprietários. Pressuposto é que se seja de facto «proprietário de
publicação periódica».
Ora a B., quando se constituiu, não era proprietária de
nenhuma «publicação periódica», sendo aliás o seu objecto mais amplo. A
publicação do jornal B. só veio a ocorrer em Março de 1990 (facto relativamente
ao qual há acordo das partes). Só a partir dessa altura é que, por imposição
legal, as suas acções deveriam ser «nominativas», o que poderia ocorrer, por
alteração dos seus «estatutos», ou conversão, nos casos em que isso (como era o
caso) é permitido pelos estatutos (artigo 300.º do CSC). A «Lei de Imprensa» não
comina com a nulidade a convenção estatutária, de sociedade anónima, que
estabeleça outro regime para as suas acções, sujeitando tal actuação ao
pagamento de multa (artigo 33.º, n.º 2, do Decreto‑Lei n.º 85‑C/75).
De qualquer forma, aquando da outorga do contrato em causa (29
de Novembro de 1989), não sendo a B. titular de qualquer publicação periódica,
não se lhe impunha que o seu capital social fosse constituído por acções
nominativas.
Não merece, pois, nesta parte qualquer reparo a sentença sob
recurso, não enfermando o pacto social (então vigente), na parte em que prevê
que o capital social possa ser constituído por acções nominativas ou ao
portador, de qualquer nulidade.
II – Inexistência jurídica dos títulos (acções).
Pretende o apelante que, atento o «ónus de prova» e a matéria
não provada, se considere que, à data do contrato em causa, os títulos não
existiam ainda, o que, no seu entender, sanciona com a nulidade o mesmo
contrato.
Para o efeito, argumenta que tendo os apelados alegado (35 da
contestação) que «a D., em 29 de Dezembro de 1989, procedeu à entrega à 1.ª ré
dos títulos ao portador, representativos de 4500 acções da B.», facto que foi
levado ao questionário e que mereceu a resposta de «não provado», ter‑se‑á que
concluir que os referidos títulos não existiam, nos termos do artigo 346.º do
CC.
Como já se referiu supra, aquando da apreciação da «natureza
da acção», o non liquet traduz‑se, para a parte a quem cabe o ónus da prova, em
ter‑se como líquido o facto contrário (Manuel de Andrade, Noções Elementares de
Processo Civil, pág., 179).
Formulou o tribunal os seguintes quesitos: (15) «Ora a D., em
Dezembro de 1989, procedeu à entrega à 1.ª ré dos títulos, ao portador,
representativos de 4500 acções da B.»; (17) «A partir de Dezembro de 1989, a
1.ª ré deteve sempre fisicamente, até hoje, as referidas 4500, na sequência da
entrega efectuada pela vendedora D.». A estes quesitos respondeu o Tribunal
«não provado». Deverá pois ter‑se como líquido o facto contrário, ou seja: «A
D., em Dezembro de 1989, não procedeu à entrega à 1.ª ré dos títulos, ao
portador, representativos de 4500 acções da B.»; «A partir de Dezembro de 1989,
a 1.ª ré não deteve sempre fisicamente, até hoje, as referidas 4500 acções».
De tais factos não pode concluir‑se que os títulos «não
existissem», como pretende o apelante.
Nesta parte, pretende o apelante servir‑se de documento que
juntou (fls. 1268 e 1269) em 6 de Maio de 2002, em momento posterior à junção
das alegações de direito e muito posterior ao encerramento da discussão da
causa. As partes alegaram de facto em 26 de Fevereiro de 2002 (fl. 1160). O
tribunal respondeu à matéria de facto em 10 de Abril de 2002 (fl. 1184 e
seguintes).
Nas suas alegações de recurso, vêm as apeladas (fl. 1341)
alegar que: o referido documento não se mostra admitido nos autos; foi pedido o
seu desentranhamento; na sentença nada se disse quanto a esse requerimento; a
sua junção não é admissível, face ao disposto no artigo 523.º do CPC; ocorre
nulidade por omissão de pronúncia.
Nos termos do artigo 523.º do CPC, os documentos destinados a
fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o
articulado em que se alegam os factos correspondentes. Se não forem
apresentados com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados
até ao encerramento da discussão em 1.ª instância. Depois do encerramento da
discussão (artigo 524.º do CPC) só são admitidos, no caso de recurso, os
documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento. Os
documentos destinados a provar factos posteriores aos articulados, ou cuja
apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior,
podem ser oferecidos em qualquer estado do processo.
«O encerramento da discussão em 1.ª instância tem lugar quando
terminam os debates sobre a matéria de facto (artigo 652.º, n.º 3, alínea e),
do CPC), constituindo um importante momento preclusivo, após o qual deixa de
ser, em princípio, possível a prática de qualquer acto de alegação ou prova dos
factos da causa...» (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol.
II, pág. 424).
No caso presente, não ocorre nenhum dos fundamentos referidos
no artigo 524.º do CPC, pelo que a junção do documento em causa, que nem se
mostra admitido nos autos, não pode ser aproveitado para prova dos factos
alegados pelo apelante.
A não existência (por não terem sido emitidos) e a não entrega
dos títulos é susceptível de gerar a nulidade do contrato?
Como refere Jorge Manuel Coutinho de Abreu (Curso de Direito
Comercial, vol. II, edição de 2002, pág. 365), «olhando somente para o artigo
304.º, n.º 6, do CSC – os títulos provisórios ou definitivos (de acções) não
podem ser emitidos ou negociados antes da inscrição definitiva do contrato de
sociedade (...) no registo comercial – dir‑se‑á que não. Todavia, o artigo
304.º, n.º 6, refere‑se somente à negociação de acções tituladas (provisória ou
definitivamente) – e sabemos já que as acções‑participações sociais (e partes
do capital) existem antes e independentemente das acções‑títulos (e das acções
escriturais). Por outro lado, resposta afirmativa à pergunta inicial não pode
deixar de ser vista no artigo 37.º, n.º 2, do CSC: no período compreendido entre
a celebração da escritura e o registo definitivo do contrato de sociedade, ‘seja
qual for o tipo de sociedade visado pelos contraentes, a transmissão por acto
entre vivos das participações sociais’ requer ‘sempre o consentimento unânime
dos sócios’. É igualmente possível a transmissão de acções (ainda não
escriturais ou tituladas) antes de o acto constituinte da sociedade estar
formalizado em escritura pública (e antes do registo), exigindo‑se também nestes
casos o consentimento de todos os sócios (artigo 36.º, n.º 2, do CSC, remetendo
para o artigo 995.º, n.º 1, do CC; artigo 37.º, n.º 2, do CSC) será aplicável
analogicamente quando a transmissão se faça entre sócios». Refere ainda o mestre
citado (pág. 368): «Antes da emissão e entrega das acções tituladas (provisória
ou definitivamente) ou da emissão e registo individualizado das acções
escriturais, há‑de ser possível transmitir acções (não tituladas nem
escrituradas). Como se processa a transmissão entre vivos? (...) Perante a
lacuna da lei, deve socorrer‑se preferencialmente à disciplina prevista no CSC
para a cessão de quotas e de acções (na medida em que existe analogia – artigo
2.º). Assim, se o estatuto social limitar a transmissão das acções,
subordinando‑a ao consentimento da sociedade ou a outros requisitos, ela não
produzirá efeitos para com a sociedade enquanto se não verificarem esses
requisitos (artigos 328.º, n.º 2, e 228.º, n.º 2) – mas será livre se o
estatuto não fixar tais limitações (artigo 328.º, n.º 1); havendo ou não
limitações, a comunicação à sociedade, por escrito, da transmissão ou o
reconhecimento social (expresso ou tácito) da mesma são também requisitos de
eficácia da transmissão das acções para com a sociedade (artigo 228.º, n.º 3); a
cessão de acções deve constar de escritura pública (artigo 228.º, n.º 1)».
Como se viu, não pode concluir‑se no caso presente pela
inexistência dos títulos, mas também esse facto não seria impeditivo da
transmissão das acções, por acto entre vivos, nas circunstâncias e com as
formalidades aí referidas, o que não aconteceu. Com efeito, não lançaram mão os
outorgantes da figura de cessão da sua posição social, nem se mostra observada
para o efeito a forma.
Concluiu‑se na sentença que se ficou sem saber se as acções
eram «ao portador» ou «nominativas». Já se viu que não era no caso presente
obrigatório (por imposição legal) que as acções fossem «nominativas».
Em termos gerais, as acções tituladas ao portador
transmitem‑se, por acto entre vivos, com a entrega do título (artigos 327.º do
CSC e 101.º do CVM). As acções «nominativas» (artigos 326.º do CSC e 102.º do
CVM) transmitem‑se por declaração de transmissão, escrita no título, e pelo
pertence lavrado no mesmo e averbamento no livro de acções. E se a entrega ou a
declaração de transmissão não ocorrer? Voltamos a citar Jorge Manuel Coutinho
de Abreu (obra citada, pág. 371): «A doutrina portuguesa que tem curado da
transmissão das acções tituladas (ao portador, sobretudo) contesta aquele
resultado. A propriedade dos títulos transmitir‑se‑ia (entre vivos) por mero
acordo de vontade, por contrato consensual entre cedente e cessionário (artigo
408.º, n.º 1, do CC); a entrega (das acções ao portador), assim como as
formalidades previstas para as acções nominativas, seriam tão‑só requisitos de
legitimação do adquirente para o exercício dos direitos sociais».
Este entendimento era seguido sobretudo no domínio do Código
Comercial anterior, com o apoio do artigo 168.º, n.º 1. Foi o entendimento
seguido pelo STJ no acórdão de 16 de Junho de 1972 (BMJ, n.º 218, pág. 278), com
anotação favorável de Vaz Serra (Boletim, trabalhos preparatórios sobre acções),
segundo o qual «a propriedade das acções transmite‑se para o autor por mero
efeito do contrato». Hoje, face ao Código das Sociedades Comerciais e do regime
do Decreto‑Lei n.º 408/82, aquele entendimento não encontra apoio, o que aliás é
referido pelo autor citado, quando diz: «Não penso que seja assim. As
acções‑títulos (bem como as acções escriturais) estão sujeitas a regras próprias
de circulação. E a lei marca ou acentua exactamente as especialidades dessa
circulação. Omite (porque pressuposta) a necessidade do acordo entre as partes
(circulação entre vivos) e explicita a necessidade da entrega ou da declaração
de transferência escrita no título (acções tituladas) ou do registo em conta
(acções escriturais). Estas formalidades são essenciais para que a transmissão
das acções se efective. O mero acordo entre transmitente e transmissário produz
efeitos entre as partes – mas não produz, por si só, a transmissão das acções».
A propósito, refere João Salvado (Das Acções das Sociedades
Anónimas, AAFDL, 1988): «A transmissão das acções, seja qual for a modalidade
que revista, envolve a transferência da participação societária que elas
representam, com todos os direitos e obrigações inerentes às acções
transmitidas. É dessa transmissão que tratam os artigos 326.º e 327.º da CSC.
Não há no artigo 326.º qualquer separação entre a titularidade e a legitimação
necessária para o exercício dos direitos adquiridos, seja perante terceiros,
seja perante a sociedade. As formalidades do artigo 326.º são, pois,
constitutivas, essenciais para que se dê a transmissão da participação social ou
das acções. E, assim, o mero negócio de transferência sem ser acompanhado de
tais formalidades nem tem eficácia legitimadora nem eficácia translativa da
titularidade (propriedade). As acções‑títulos e a participação social
continuarão a pertencer ao alienante. Isso mesmo resulta do artigo 327.º, ao
separar‑se, aí sim, a titularidade da legitimação. (...) Optou‑se pela natureza
real do contrato quanto à constituição». De Brito Correia extrai‑se, quanto a
esta questão, o seguinte (Direito Comercial, 2.º vol.): «a transmissão de
valores fora da bolsa só é válida quando se utilizar o modelo aprovado além da
declaração do transmitente no título e do pertence, quanto às acções
nominativas, e da entrega real do título, quanto às acções ao portador. Isto
mostra que a transmissão de um negócio jurídico causal (compra e venda, doação,
etc.) para cuja validade se exige como requisito de forma ad substantiam a
apresentação da declaração para registo. De qualquer modo, um negócio de
transmissão de acções fora da bolsa sem a declaração para registo (ou depósito)
não é válido (artigo 26.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 408/82), mesmo que sejam
entregues os títulos com ou sem pertence».
No caso presente, alegam as rés que as acções eram ao portador
(pois que referem que as 4500 acções ao portador lhe foram entregues). Das
respostas dadas à matéria de facto, não se fixou se as acções eram ao portador
ou nominativas. A natureza das acções, como elemento do direito que as rés se
arrogam (tem a ver com o contrato celebrado), deveria ser demonstrada pelas rés.
O non liquet não pode, pois, favorecer as rés, sendo de concluir que não foram
no caso presente observadas as formalidades ad substantiam para a transmissão
das acções em causa, quer sejam estas nominativas ou ao portador, sendo pois tal
contrato «nulo». A apelação merece, pois, nesta parte, provimento.
III – Violação do disposto no artigo 397.º, n.º 2, do CSC.
Dispõe o artigo 397.º, n.º 2, do CSC que são nulos os
contratos celebrados entre a sociedade e os seus administradores, directamente
ou por pessoa interposta, se não tiverem sido previamente autorizados por
deliberação do conselho de administração, na qual o interessado não pode votar,
e com parecer favorável do conselho fiscal.
No caso presente, o contrato teve como contraentes «D1., SA» e
«A1. SA». No mesmo outorgaram respectivamente G. e E..
Do factualismo assente, com relevo nesta parte, temos o
seguinte:
a) A «D. SGPS» era sociedade dominante da «A1. SA», em cujo
capital detinha mais de 50% (4);
b) A «D. SPGS» era accionista fundador da «A.» (19);
c) À data do contrato (29 de Dezembro de 1989), integravam o
Conselho de Administração, E. e outros (21 e 22);
d) O E. era presidente do Conselho Geral da «B.» e membro do
Conselho de Administração da «D.» (23);
e) Sobre o referido contrato não se pronunciou o Conselho
Fiscal da «A.» (24);
f) Em 29 de Dezembro de 1989, integravam o Conselho de
Administração da «A.», E., que substituiu H. por cooptação, deliberada em 27 de
Setembro de 1989, I., em representação da firma «D2., SA», e Nuno Castelo
Vitorino... (22).
Como se refere na sentença sob recurso, partes no contrato são
A. e D., sendo irrelevante que um dos administradores (I.) tenha sido indicado
por esta, sendo certo que este nem outorgou no referido contrato.
Como referem as apeladas, à data encontrava‑se em vigor o
artigo 390.º do CSC (este preceito veio a ser alterado pelo Decreto‑Lei n.º
343/89, de 6 de Novembro de 1998, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1999),
que no seu n.º 3 dispunha que os administradores devem ser pessoas singulares
com capacidade jurídica. No n.º 4 dispunha‑se que se uma pessoa colectiva for
designada administrador, deve nomear uma pessoa singular para exercer o cargo
em nome próprio; a pessoa colectiva responde solidariamente com a pessoa
designada pelos actos desta.
Do que fica referido resulta que não se verifica a situação
mencionada no preceito citado, pois que, por um lado, o administrador nomeado
pela pessoa colectiva exerce o cargo em nome próprio. Por outro lado, nem teve
o referido administrador intervenção no contrato em causa. Acresce ainda que
não bastaria que o administrador nomeado tivesse intervenção, sendo ainda
necessário que actuasse em nome da mandante. «O contrato é celebrado entre a
sociedade e os seus administradores mas por pessoa interposta quando alguém
actua em nome próprio mas por conta do administrador com a obrigação de
transmitir a este a coisa ou direito cedido» (Alexandre Soveral Martins, Os
Poderes de Representação dos Administradores de Sociedades Anónimas, Studia
Iuridica, n.º 34, pág. 268).
Não merece, pois, provimento, nesta parte o recurso,
mostrando‑se prejudicada a questão de se saber se o contrato em causa poderia
ter sido celebrado ao abrigo do n.º 5 do referido preceito (artigo 397.º do
CSC).
IV – Violação do disposto no artigo 29.º do CSC.
Dispunha o artigo 29.º do CSC (depois alterado pelo
Decreto‑Lei n.º 343/98, de 6 de Novembro), que a aquisição de bens por uma
sociedade anónima ou em comandita por acções deve ser previamente aprovada por
deliberação da assembleia geral desde que se verifiquem cumulativamente os
seguintes requisitos: a) Se efectuada, directamente ou por interposta pessoa, a
um fundador da sociedade ou a pessoa que desta se torne sócio no período
referido na alínea c); b) O contravalor dos bens adquiridos à mesma pessoa
durante o período referido na alínea c) exceda 2% ou 10% do capital social,
consoante este foi igual ou superior a 10 000 contos...; c) O contrato de que
provém a aquisição seja concluído antes da celebração do contrato de sociedade,
simultaneamente com este ou nos dois anos seguintes à escritura do contrato de
sociedade ou de aumento de capital. O n.º 2 estipula que o disposto se não
aplica a aquisições feitas em bolsa ... ou compreendidas no objecto da
sociedade. No n.º 4 dispõe‑se que os contratos devem ser reduzidos a escrito,
sob pena de nulidade. O n.º 5 comina com a ineficácia as aquisições de bens
previstas no n.º 1 quando os respectivos contratos não forem aprovados pela
assembleia geral.
Nesta parte, com relevo, temos o seguinte factualismo:
a) A «D.» era accionista fundadora da «A.» (19);
b) A «A.», no exercício de 1989, outorgou com a «D.»,
contratos correspondentes aos escritos de fls. 343 e 344, datados de 5 de
Dezembro de 1989 e 29 de Dezembro de 1989, fazendo‑o aquela na qualidade de
compradora, esta na qualidade de vendedora, e mediante os quais declararam
comprar e vender, respectivamente, 18 770 acções das 20 000 de que a vendedora
era titular no capital social da «J.», pelo preço de 25 000 000$00, e 4500
acções de que a vendedora se afirmou possuidora no capital da «B.», pelo preço
de 4 500 000$00, tendo a «A.» outorgado nesses contratos sem prévia autorização
da sua assembleia geral de accionistas (25);
c) O pagamento do preço de 25 000 000$00 devido pelas acções
«J.», por vontade de ambas as partes, manifestada logo aquando da realização do
contrato, só seria feita quando a «A.» lograsse encontrar quem lhe oferecesse
por tais acções, pelo menos, idêntico montante, comprometendo‑se a «D.» a
desenvolver os esforços necessários nesse sentido (30);
d) As 18 770 acções vieram a ser alienadas em 30 de Junho de
1990, à sociedade «L.», tendo então a ré «A.» pago à «D.» o preço daquelas
acções (31);
e) Em 16 de Julho de 1986, foi outorgada a escritura de
constituição da sociedade «A.», sendo o capital social de 20 000 000$00 (doc. de
fl. 137);
f) Por escritura de 31 de Dezembro de 1987, foi o capital
social da «A.» aumentado para 200 000 000$00 (61 e 62);
g) Em 27 de Dezembro de 1988, realizou‑se escritura de aumento
de capital da «A.», sendo o mesmo aumentado para 300 000 000$00, por
incorporação de reservas (57, 58 e 59).
O preceito citado insere‑se entre as medidas que visam
proteger o interesse dos sócios e de terceiros, quanto à realização integral do
capital social. O referido preceito não tem razão de ser quando o aumento de
capital se verifica por incorporação de reservas. Com efeito, neste caso, «além
de não terem que dispor de qualquer quantia, os sócios conservam inalteradas as
suas posições relativas, uma vez que – nos termos do artigo 92.º do CSC – o
aumento da participação social de cada um será proporcional à parte de que já
era titular» (Do Capital Social – Boletim da Faculdade de Direito n.º 33 –
Paulo de Tarso Domingues, pág. 67). Refere ainda o mesmo autor (obra citada,
pág. 87 e seguintes): «O fim pretendido com o regime jurídico das entradas em
espécie – no sentido de evitar a sobreavaliação dos bens in natura que
constituem a entrada de um sócio – seria facilmente defraudado com a
admissibilidade das chamadas ‘quase‑entradas’. Na verdade, se se permitisse à
sociedade, logo após a constituição, adquirir – com o dinheiro das entradas e
pelo preço que entendesse – um bem a um sócio, isso equivaleria, para todos os
efeitos, à realização de uma entrada em espécie por parte deste, deitando por
terra todo o esforço legislativo feito quanto a este tipo de entradas no momento
da constituição. Deste modo, para evitar que um sócio, pretendendo fugir ao
regime imperativo e particularmente rigoroso das entradas em espécie,
realizasse, no momento da constituição, uma entrada em dinheiro e, de seguida,
vendesse à sociedade – pelo preço que então poderia discricionariamente
estabelecer – o bem com que efectivamente pretendia entrar para a sociedade, a
lei no artigo 29.º do CSC veio expressamente proibir a aquisição de bens a
accionistas quando estejam reunidos certos requisitos».
Do que fica referido resulta que, para efeitos da situação
prevista no artigo 29.º do CSC, não têm relevância os aumentos de capital, por
incorporação de reservas, uma vez que não se verifica o mencionado perigo de se
defraudar a lei, através das chamadas «quase‑entradas». Não releva, pois, o
aumento de capital ocorrido em 1988, por incorporação de reservas, para efeitos
de contagem do prazo mencionado (artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do CSC).
Temos, pois, no caso presente que o momento a partir do qual
se inicia o prazo referido na alínea c) do artigo 29.º do CSC é de 31 de
Dezembro de 1987, sendo, para efeitos de cálculo da percentagem, de atender ao
efectivo capital social, ou seja, 300 000 000$00.
Os contratos mencionados em 25 (aquisição de acções no valor
global de 29 500 000$00, ocorrida no exercício de 1989) integram, pois, a
situação prevista no artigo 29.º do CSC, não se vendo como o regime possa ser
diferente, consoante a forma ou data de pagamento acordados, nem se vendo
motivo para alterar a qualificação que os outorgantes deram aos contratos
(compra e venda). É que a razão de ser da proibição supra referida mantém‑se,
não a condicionando a lei à verificação ou não de prejuízo para a sociedade. Não
é essa a razão de ser do preceituado.
Alegam as apeladas que não tem aplicação o referido preceito,
por a referida aquisição estar compreendida no objecto da sociedade.
Nos termos do disposto no artigo 9.º do CSC, do contrato de
qualquer sociedade deve constar, entre outras coisas, «o objecto da sociedade».
Como objecto da sociedade, artigo 11.º do CSC, devem ser indicadas, no contrato,
as actividades que os sócios propõem que a sociedade venha a exercer. No n.º 4
refere‑se que a aquisição pela sociedade de participações em sociedades de
responsabilidade limitada ... cujo objecto seja igual àquele que a sociedade
está exercendo, não depende de autorização no contrato de sociedade. O contrato
pode autorizar (n.º 5) a aquisição pela sociedade de participações como sócio de
responsabilidade ilimitada ou de participações em sociedades com objecto
diferente do acima referido, em sociedades reguladas por leis especiais e em
agrupamentos complementares de empresa.
A propósito, refere António Menezes Cordeiro (Manual de
Direito das Sociedades, I – Das Sociedades em Geral, edição de 2004, pág. 417):
«O objecto da sociedade – ou objecto mediato, para quem queira chamar ‘objecto’
ao conteúdo – é constituído pelas actividades a desenvolver pelo ente colectivo.
O artigo 11.º tem diversas regras a tanto respeitantes». «Como objecto devem ser
indicadas as actividades que os sócios se proponham para a sociedade – artigo
11.º, n.º 2. A lei permite que o contrato indique uma série de actividades não
efectivas; segundo o n.º 3, compete depois aos sócios, de entre as actividades
elencadas no objecto social, escolher aquela ou aquelas que a sociedade
efectivamente exercerá, bem como deliberar sobre a suspensão ou cessação de uma
actividade que venha sendo exercida – n.º 3. A prática vai, assim, no sentido de
alongar o objecto da sociedade com toda uma série de hipóteses de actuação.»
No caso presente, fez‑se constar do pacto social (artigo 3.º)
que «o objecto social é a comercialização de equipamento informático (hardware)
e a prestação de serviços de consultadoria informática, comercialização e
desenvolvimento de programas (software)». No artigo 4.º fez‑se constar que «a
sociedade pode, sob qualquer forma legal, associar-se com outras pessoas
jurídicas para, nomeadamente, formar sociedades, agrupamentos complementares de
empresas, consórcios e associações em participação, bem como adquirir e alienar
participações no capital de outras empresas».
A propósito da interpretação do «contrato social», refere
Menezes Cordeiro (obra citada, pág. 408): «As regras de interpretação negocial
vertidas no artigo 236.º do CC pressupõem, fundamentalmente, um diálogo
negocial a dois. Locuções como ‘declaratário real’, ‘comportamento do
declarante’, ‘vontade real’ ... compreendem‑se num mundo bidimensional: seriam
impraticáveis em contratos plurilaterais, em que, provavelmente, cada
‘declarante’ pensou em algo diverso. Além disso, regras como a do equilíbrio
das prestações têm a ver com contratos comutativos. Logo à partida, todas estas
regras surgem impraticáveis em contratos de organização, como sucede com o de
sociedade. A isto acrescem factores ... e designadamente o de a sociedade, ao
criar um novo sujeito de direitos, ser de modo efectivo um contrato oponível
erga omnes. (...) Tanto basta para que se possa proclamar: a interpretação dos
pactos sociais é fundamentalmente objectiva, devendo seguir o prescrito para a
interpretação da lei – artigo 9.º do CC, com as inevitáveis adaptações.»
Ora da aplicação dos mencionados princípios – interpretação
objectiva – para qualquer pessoa, nomeadamente para os terceiros que
eventualmente contratam com a sociedade, resulta dos seus estatutos que o
objecto da mesma são as actividades mencionadas no artigo 3.º antecedidas da
expressão: «O objecto social é». No artigo 4.º fez‑se constar alguns actos como
permitidos em face do pacto social e que podem envolver alterações da própria
sociedade (associar‑se com outras, formar sociedades e agrupamentos, etc.).
Sendo já permitidos no pacto, ficariam apenas sujeitos a deliberação dos sócios,
dispensando‑se a necessidade de eventual alteração do pacto social.
Do que fica dito resulta já que não pode no caso presente
aceitar‑se que, além das actividades constantes do artigo 3.º do pacto social, a
sociedade em causa tenha também por objecto as constantes do artigo 4.º, entre
as quais se inclui «adquirir ou alienar participações no capital de outras
empresas».
A aquisição das referidas acções (mencionada em 25) não se
integra, pois, no objecto da sociedade, pelo que merece também nesta parte
provimento o recurso e, caso não se tivesse já decidido pela nulidade, sempre o
contrato seria ineficaz, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 29.º do CSC.
Na parte restante, o acórdão do Tribunal da
Relação de Lisboa, como já se referiu, desatendeu as pretensões do autor
apelante no sentido de ser declarada a nulidade do contrato de transmissão de
acções por nele ter participado o administrador de uma das sociedades, em
violação do disposto no artigo 397.º, n.º 2, do CSC, e por falta de intervenção
do número de administradores exigido, e ainda as pretensões, expostas como
consequências da declarada nulidade do contrato de transmissão, da nulidade dos
contratos de suprimento e da nulidade das assembleias gerais em que a A.
participou na qualidade de accionista da B..
1.4. Contra este acórdão interpuseram, quer
o autor apelante C., quer as rés apeladas A., SA, e B., SA, recursos de revista
para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as alegações das rés com a
formulação das seguintes conclusões:
“1.ª – No modesto entender das recorrentes, não se verifica
nenhum dos dois vícios apontados no douto acórdão recorrido ao contrato de
compra e venda de acções da B. celebrado entre a D. e a A., pelo que não existem
quaisquer razões para esse contrato ser julgado inválido ou ineficaz.
2.ª – Segundo o douto acórdão recorrido, esses dois vícios
residiriam no seguinte:
– Pelo jogo das regras legais sobre a distribuição do ónus da
prova deve concluir‑se que, no caso em apreço, não foram observadas as
formalidades ad substantiam para a transmissão das acções objecto do mencionado
contrato, quer estas sejam nominativas quer sejam ao portador, pelo que o
contrato será nulo;
– A aquisição das acções da B. não se integra no objecto
social da A., pelo que o contrato de compra e venda das acções, ainda que não
fosse nulo, seria ineficaz, nos termos do disposto no artigo 29.º, n.º 5, do
CSC, por estarem preenchidos os requisitos cumulativos do n.º 1 do mencionado
preceito.
3.ª – Para a decisão da Relação de declarar o contrato nulo
assumiu‑se como fulcral o juízo feito sobre a distribuição do encargo probatório
no que respeita à observância de determinadas formalidades de que dependeria a
transmissão das acções e, desde logo, no que se refere à natureza das acções,
como nominativas ou ao portador. Tal juízo mostra‑se, porém, equivocado e
incorre mesmo em contradição com as considerações tecidas anteriormente no douto
acórdão recorrido.
4.ª – Se se entender a presente acção como de simples
apreciação, afigura‑se dever qualificá‑la como de simples apreciação positiva,
tal como o fez a 1.ª Instância. Porém, ainda que a acção seja de simples
apreciação negativa, como entendeu a Relação, isso não significa que o autor
estivesse dispensado da prova dos factos que dariam corpo aos vícios apontados
aos negócios cuja invalidade pretende ver declarada, e que recaísse sobre as rés
o ónus de afastar todas as eventuais causas de invalidade dos actos impugnados
pelo autor. Pelo contrário, e conforme é num primeiro momento reconhecido no
douto acórdão recorrido, era ao autor que pertencia, na presente acção, o ónus
da alegação e prova dos concretos vícios imputados aos actos e contratos
impugnados.
5.ª – O suposto não cumprimento de formalidades para a
transmissão das acções é algo que diz respeito à existência de vícios do
contrato (ou seja, a factos impeditivos do direito invocado pelas rés) e, por
conseguinte, a respectiva prova pertenceria ao autor. E o mesmo se diga
relativamente à natureza nominativa ou ao portador das acções, enquanto factor
que determinaria quais as formalidades a que a transmissão estaria submetida.
6.ª – Por conseguinte, não era às rés, para se poderem valer
da aquisição das acções pela A., que competiria demonstrar que tais formalidades
foram respeitadas, ou que as acções tinham esta ou aquela natureza (do mesmo
modo que sobre elas não recaía o ónus de provar que a transmissão das acções não
padeceu de qualquer outro vício).
7.ª – Consequentemente, o non liquet quanto ao facto de as
acções serem nominativas ou ao portador não pode voltar‑se contra as rés mas
antes contra o autor. Se não se apurou se as acções eram nominativas ou ao
portador quando o contrato foi celebrado, e se não se demonstrou se foram ou não
cumpridas as formalidades de transmissão das acções previstas consoante
estejamos perante uma ou outra modalidade de acções, a conclusão não é que o
contrato é nulo mas, pelo contrário, que também o suposto vício do contrato que
estaria na inobservância dessas formalidades se deve ter como não demonstrado.
8.ª – A solução dada a esta questão no douto acórdão recorrido
significa, afinal, que seria às rés que competiria provar que a aquisição das
acções pela A. não padeceu de qualquer vício, o que se traduz na aplicação das
regras dos artigos 342.º e 343.º do Código Civil com um sentido
inconstitucional, por violação do direito de defesa e do direito a um processo
equitativo consagrados no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da CRP, bem como dos
princípios da segurança e certeza jurídicas plasmados no artigo 2.º da CRP.
9.ª – Ainda que se pudesse entender que a circunstância de não
se ter demonstrado se as acções eram nominativas ou ao portador legitima a
conclusão de que não foram observadas as formalidades à época exigidas para a
transmissão das acções – no que não se concede –, nem por isso seria nulo o
contrato de compra e venda das acções celebrado entre a D. e a A..
10.ª – O facto de o negócio ter por objecto acções, sejam elas
nominativas ou ao portador, não obsta a que a propriedade das mesmas se
transmita solo consensu, isto é, por efeito do acordo de vontades entre o
transmitente e o adquirente. Por conseguinte, a validade do contrato celebrado
entre a D. e a A. prescinde por completo da observância das aludidas
formalidades, as quais se assumem, tão‑somente, como um requisito de
legitimação do adquirente para o exercício dos direitos fundados nas acções
adquiridas.
11.ª – Ainda que se entenda que é a própria transmissão da
propriedade das acções, e não apenas a legitimação do adquirente, que não
prescinde da observância de tais formalidades, daí não decorre que o facto de
elas supostamente não terem sido desde logo observadas, com a celebração do
contrato, importa a nulidade desse mesmo contrato. Pelo contrário, o que se
verificaria seria, então, uma cisão nos efeitos do negócio, que se manteria
válido, produzindo de imediato efeitos obrigacionais, vinculando as partes, e
ficando a produção do efeito real dependente da observância das mencionadas
formalidades.
12.ª – No douto acórdão recorrido afirma‑se também que o
contrato de aquisição das acções da B., ainda que não fosse nulo, seria ineficaz
nos termos do disposto no artigo 29.º, n.º 5, do CSC, por estarem preenchidos os
requisitos cumulativos do n.º 1 do mencionado preceito, uma vez que tal
aquisição não se integraria no objecto social da A.. Salvo o devido respeito,
afigura‑se existirem dois equívocos, quanto a este ponto, na douta decisão
recorrida, o primeiro quanto à não inclusão da aquisição das acções no objecto
da A. e o segundo quanto ao facto de se julgar preenchida a hipótese da alínea
b) do n.º 1 do artigo 29.º do CSC.
13.ª – Os contratos de compra e venda de acções celebrados
entre a D. e a A. durante o período relevante estavam compreendidos no objecto
social da A.. Na verdade, a aquisição de participações, em qualquer empresa, foi
um dos escopos para os quais a A. se constituiu e estava expressamente
contemplada no artigo 4.º dos seus estatutos. O seu objecto social compreendia a
aquisição de participações, pelo que a compra da participação na B: traduziu uma
actuação ou realização de tal objecto, pelo que fica, por essa via, desde logo
afastada a aplicação do artigo 29.º do CSC.
14.ª – Contrariamente ao entendido no douto acórdão recorrido,
o contrato celebrado entre a A. e a D., relativo às acções J., não conta, em
medida alguma, para efeitos do preenchimento do plafond de 2% previsto no artigo
29.º, n.º 1, alínea b), do CSC, pelo que no período relevante aqui em jogo – ou
seja, entre 31 de Dezembro de 1987 e 31 de Dezembro de 1989 –, não ocorreu, em
bom rigor, qualquer aquisição de acções pela A. à D. que, para aqueles efeitos,
se devesse somar à das acções da B..
15.ª – A operação relativa às acções da J., pelos seus
próprios termos (patentes nos factos julgados provados sob os n.ºs 30 e 31),
nunca poderia implicar uma diminuição patrimonial para a A., sendo por isso
estranha à ratio do artigo 29.º do CSC.
16.ª – Aliás, a qualificação jurídica que melhor quadra ao
negócio relativo às acções J. é, não a de compra e venda, mas a de mandato para
venda, pelo que a dita operação não consubstanciará sequer uma aquisição e
ficará, também por isso, de fora do alcance do artigo 29.º do CSC.
17.ª – Ainda que estivéssemos perante uma compra e venda de
acções, nem por isso daí decorreria a ineficácia do contrato relativo às acções
da B.. Isto porque, a ser assim, a própria operação relativa às acções J., num
montante de 25 000 000$00, excederia, por si mesma, o sobredito limite de 2% do
capital social da A., sendo, portanto, ineficaz para com esta última e já não
contando para efeitos da não ultrapassagem do limite dos 2% por parte de
aquisições feitas ulteriormente pela A. à sua accionista.
18.ª – Daí que, quando a A. comprou à D. as acções da B. pelo
preço de 4 500 000$00, o contravalor dos bens adquiridos à D. não excedesse 2%
do capital social e tal compra não preenchesse os requisitos que cumulativamente
são exigidos para a intervenção do artigo 29.º do CSC.
19.ª – A «compra» das 18 770 acções J. nunca contará, pois, em
medida alguma, para efeitos do preenchimento do plafond de 2% – por não ser de
todo uma aquisição, por não ser uma aquisição que lese ou ponha em perigo as
finalidades visadas pela lei, ou por ser ineficaz para com a A..
20.ª – Mesmo que, quando foi celebrado o contrato de compra e
venda das acções da B., tivesse havido violação do disposto no artigo 29.º, n.º
1, do CSC, o contrato teria entretanto adquirido plena eficácia também
relativamente à A., por isso que, como ficou demonstrado nos autos e foi
reconhecido a págs. 42 a 44 do douto acórdão recorrido, o Conselho de
Administração da A. praticou, já no ano de 1990 (após o decurso do prazo de
dois anos consagrado pela alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do CSC), vários
actos dos quais emergiu inequivocamente a ratificação da aquisição das acções da
B..
21.ª – Ora, afigura‑se manifesto que, uma vez recuperada pelo
Conselho de Administração a plenitude dos seus poderes, ele, da mesma forma que
poderia então, sem a anuência da Assembleia Geral, adquirir as acções em causa,
também poderá limitar‑se a ratificar uma aquisição feita anteriormente, sanando
dessa forma a ineficácia de que esta porventura padecesse.
22.ª – O douto acórdão recorrido, ao julgar nulo o contrato,
fez errada aplicação das regras legais sobre a distribuição do ónus da prova,
concretamente das normas dos artigos 342.º e 343.º do CC, que aplicou, aliás,
com um sentido desconforme com o disposto no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da CRP, e
fez também errada aplicação das normas dos artigos 326.º e 327.º do CSC (e 101.º
e 102.º do CVM), relativas às formalidades da transmissão de acções. Ao julgar
que o contrato, ainda que não fosse nulo, seria ineficaz, o douto acórdão
recorrido fez errada aplicação da norma do artigo 29.º do CSC.
Termos em que deverá julgar‑se procedente o presente recurso
e, consequentemente, revogar‑se o douto Acórdão recorrido na parte em que
concedeu parcial provimento ao recurso de apelação, revogou, também
parcialmente, a sentença recorrida e declarou nulo o contrato de aquisição de
acções celebrado entre a D. e a A..”
1.5. Por acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça, de 6 de Outubro de 2005, foi negado provimento aos recursos de revista,
com a seguinte fundamentação, no que respeita ao recurso das rés, único que
releva para o presente recurso de constitucionalidade:
“Já vimos que a Relação declarou nulo o contrato de aquisição
de acções celebrado entre a A. e a D..
Declaração essa que as rés não aceitam.
Fulcral para a decisão da questão daí adveniente, é a
qualificação da presente acção: se de apreciação positiva ou negativa.
Segundo o disposto no artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do Código
de Processo Civil, as acções de simples apreciação têm por fim obter unicamente
a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto.
E fundamental para se determinar se a acção é de apreciação
positiva ou negativa é o teor do pedido, é a providência que o autor requer (cf.
Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil, 2.ª edição, 1961, pág. 69).
Tal como a Relação, também entendemos que «no caso presente, o
autor demanda as rés, impugnando a qualidade de accionista no capital social da
B. da 1.ª ré. O pedido formulado consiste na declaração de nulidade do contrato
de aquisição de acções, bem como dos autos que esta praticou, invocando aquela
qualidade (de accionista da B.). O que o autor pretende consiste, no essencial,
na negação da qualidade de accionista no capital da B. que a 1.ª ré se arroga.»
Consequentemente, estamos perante uma acção declarativa de
simples apreciação negativa.
Neste tipo de acção, em conformidade com o disposto no n.º 1
do artigo 343.º do Código Civil, incide sobre o réu o ónus da prova dos factos
constitutivos do direito que se arroga.
Assim, pretendendo o autor a negação da qualidade da A. de
accionista da B., qualidade adveniente da aquisição de 4500 acções desta última
ré, por força do contrato que terá firmado com a D. em 29 de Dezembro de 1989, é
sobre as rés que recai o ónus da prova da existência do referido contrato e da
qualidade daí resultante.
A incidência, in casu, daquele ónus sobre as rés não viola o
estatuído no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da CRP, porque é o resultado da aplicação
das regras sobre o ónus da prova estabelecidas na nossa lei substantiva (citado
artigo 343.º).
X
Segue‑se a apreciação sobre a validade ou nulidade do contrato
de aquisição das acções em causa.
No que concerne à transmissão, fora da bolsa, de acções
nominativas, estabelece o n.º 1 do artigo 326.º do CSC que elas se transmitem
entre vivos por declaração do transmitente escrita no título e pelo pertence
lavrado no mesmo e averbamento no livro de acções da sociedade por esta
efectuados.
No que toca à transmissão, entre vivos, de acções ao portador
prescreve o n.º 1 do artigo 327.º daquele diploma que ela se efectua pela
entrega dos títulos, dependendo da posse dos mesmos o exercício de direitos de
sócio.
As formalidades supra descritas são ad substantiam,
constitutivas, essenciais para que se dê a transmissão da participação social
ou das acções (vide Acórdãos deste Supremo Tribunal, de 6 de Fevereiro de 1997 e
6 de Outubro de 1998, respectivamente, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º
464, pág. 551, e n.º 480, pág. 490, e Coutinho de Abreu, em Curso de Direito
Comercial, vol. II, Das Sociedades, pág. 372).
Ora, na situação em apreço, não lograram as rés provar que
qualquer daquelas formalidades tenham sido observadas no mencionado contrato de
transmissão de acções.
Portanto, é irrelevante apurar a natureza das aludidas acções
porque, quer fossem nominativas, quer fossem ao portador, a sua transmissão não
se operou, já que, como acima se disse, não se mostram cumpridas as
formalidades exigidas por lei para a transmissão das acções ao portador.
Logo, o referido contrato é nulo (artigo 294.º do Código
Civil), deste modo se confirmando a decisão da Relação que assim o declarou.
Declarado, pelas razões acima expostas, o contrato [nulo],
improcede o recurso das rés, ficando prejudicado o conhecimento de tudo o mais
que nele [era] versado, designadamente o conhecimento da eficácia do mesmo
contrato.”
1.6. É contra esta parte do acórdão do STJ
que, como inicialmente se referiu, as rés interpuseram recurso para o Tribunal
Constitucional, terminando as respectivas alegações com a formulação das
seguintes conclusões:
“1.ª – O presente recurso tem por objecto a norma do artigo
343.°, n.º 1, do Código Civil, com o sentido com que foi aplicada no acórdão
recorrido quanto ao alcance do aí previsto relativamente ao encargo probatório
do réu numa acção de simples apreciação negativa, sentido [esse que] foi o de
que, numa acção de simples apreciação em que o autor pede a declaração de
nulidade de um contrato de aquisição de acções e dos actos que um dos réus
praticou invocando a qualidade de accionista do outro réu, seria aos réus que
competiria provar não só a existência de tal contrato mas também que este não
padeceu de qualquer vício, e, concretamente, dos vícios que lhe são imputados
pelo autor.
2.ª – A aplicação da norma do artigo 343.º, n.º 1, do Código
Civil assume‑se como decisiva na douta decisão recorrida. Foi por se considerar
que daquele preceito decorre que é sobre as rés que recai o ónus de provar que a
compra e venda das acções não padece de um concreto vício – o não cumprimento
de determinadas formalidades consideradas essenciais para que se dê a
transmissão da participação social – que se concluiu que, não tendo as rés feito
prova da observância de tais formalidades, o contrato deve ser considerado
inválido.
3.ª – A interpretação da norma do artigo 343.º, n.º 1, do
Código Civil acolhida na douta decisão recorrida viola o direito de defesa e o
direito a um processo equitativo consagrados no artigo 20.°, n.ºs 1 e 4, da CRP,
bem como os princípios da segurança e certeza jurídicas plasmados no artigo 2.°
da CRP.
4.ª – Os direitos constitucionais à defesa e a um processo
equitativo e justo supõem que a todos deve ser assegurado, num sentido formal e
também num sentido material, o direito efectivo a uma jurisdição, o que só se
consegue se ao longo de todo o processo forem observadas um conjunto de regras
que assegurem que o processo se desenrola em termos equitativos e justos, e que
as partes tenham posições simétricas, paritárias, perante o tribunal, devendo
dispor, no essencial, de iguais meios para apresentar e fazer valer as suas
posições em juízo.
5.ª – Ora, a distribuição do ónus da prova operada no artigo 343.°, n.º 1, do
Código Civil, tal como ele foi aplicado na douta decisão recorrida, incorre em
desrespeito por estes princípios constitucionais ao libertar o autor, que invoca
a nulidade de um contrato, do encargo de provar as concretas razões pelas quais
esse contrato sofre dos vícios por ele invocados, fazendo antes recair sobre as
rés, para afastarem a declaração de nulidade do negócio, o ónus de provarem os
factos demonstrativos de que o contrato não padece dos defeitos alegados pelo
autor (ou de quaisquer outros que o possam invalidar). Isto porque se está,
assim, a conferir às partes um estatuto processual gritantemente desigual, em
claro prejuízo da posição do réu, que vê os seus direitos de defesa
substancialmente coarctados.
6.ª – A certeza e a segurança jurídicas são também postas em crise em face de
uma interpretação da norma do artigo 343.°, n.º 1, do Código Civil como a
seguida no douto acórdão recorrido. O comércio jurídico, e em particular o
tráfico mercantil, ver‑se‑iam gravemente afectados se aquele que adquire uma
posição jurídica por virtude de um negócio jurídico estivesse, a todo o tempo,
sujeito, se alguém pusesse em causa esse seu direito ou o facto do qual decorreu
a sua aquisição, a ter de demonstrar que tal facto não padeceu de quaisquer
imagináveis vícios, sob pena de, não o fazendo, se ver privado desse mesmo
direito!
7.ª – A norma do artigo 343.º, n.º 1, do Código Civil pode, sem qualquer
dificuldade, interpretar‑se com um sentido que não viola as mencionadas regras e
preceitos constitucionais, para tanto bastando que se interprete o mencionado
comando com o sentido de que, em acções de simples apreciação negativa, o ónus
da prova dos factos constitutivos do direito invocado pelo réu pertence a este
último, mas que, pelo contrário, já pertence ao autor o encargo de demonstrar a
existência dos vícios que imputa a tais factos constitutivos e que podem
determinar a invalidade dos mesmos.
8.ª – O sentido proposto é o que coloca a norma do artigo 343.º, n.º 1, do
Código Civil em sintonia com as normas legais pertinentes no que respeita à
distribuição do ónus da alegação nas acções de simples apreciação negativa, bem
como com o modo como a doutrina tem entendido a distribuição do ónus da prova
nestas acções, fazendo recair sobre o réu o encargo de alegar e provar os factos
constitutivos do direito que se arroga, mas é sobre o autor que recai o ónus da
alegação e prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos.
9.ª – A interpretação propugnada é, também, a que vai ao encontro da ratio da
regra especial sobre o ónus da prova nas acções de simples apreciação negativa,
que tem a ver com o facto de ser por via de regra mais fácil a quem alardeia a
existência de um direito ou de um facto demonstrar a sua existência
(identificando a respectiva causa específica) do que à contraparte provar a sua
inexistência (afastando todas as causas possíveis da sua produção). Na verdade,
porque ao réu será praticamente impossível a prova de que o facto constitutivo
do direito que se arroga não sofre de nenhum vício que o invalide, é sobre o
autor que deve recair o ónus da prova de tal vício (isto é, dos factos
impeditivos ou extintivos do direito do réu).
10.ª – De acordo com a interpretação aqui sustentada, que é aquela que encontra
acolhimento nas normas e princípios constitucionais acima referidos, fica claro
que pertencia ao autor, na presente acção, o ónus da alegação e prova dos
concretos vícios imputados aos actos e contratos impugnados, e que não competia
às rés a demonstração da inexistência de quaisquer vícios relativamente a tais
actos. Consequentemente, o facto de não se ter demonstrado se foram ou não
cumpridas as formalidades de transmissão das acções previstas consoante
estejamos perante acções nominativas ou ao portador não leva a que o contrato
seja nulo mas, pelo contrário, conduz a que se deva concluir que também o
suposto vício do contrato que estaria na inobservância dessas formalidades se
deva ter como não verificado.
Termos em que deverá julgar‑se procedente o presente recurso e,
consequentemente, declarar-se inconstitucional a norma do artigo 343.º, n.º 1,
do Código Civil, com o sentido com que foi aplicada no douto acórdão recorrido,
determinando‑se que este seja substituído por outro no qual se aplique a
referida norma com o sentido de esta não implicar que, numa acção de simples
apreciação negativa, pertença ao réu o ónus de provar a inexistência dos vícios
que o autor imputa ao facto constitutivo do direito invocado pelo réu.”
1.7. Nas contra‑alegações apresentadas, o
autor, ora recorrido, sustenta a inadmissibilidade do presente recurso a
diversos títulos:
a) nas alegações as recorrentes já não
sustentam nem pedem que a norma do artigo 343.º, n.º 1, do Código Civil seja
julgada inconstitucional, mas tão‑só que a mesma seja interpretada em certo
sentido para estar “em sintonia com as normas legais pertinentes”, e já não em
sintonia com os princípios constitucionais invocados;
b) o acórdão recorrido não se fundamenta na
interpretação que as recorrentes reputam de inconstitucional;
c) o acórdão recorrido fundamenta‑se também
na norma do artigo 29.º, n.º 5, do CSC, pelo que a eventual emissão de juízo de
inconstitucionalidade da norma do artigo 343.º, n.º 1, do Código Civil seria
inútil, pois o sentido decisório daquele acórdão permaneceria o mesmo, com base
naquele primeiro fundamento;
d) a inutilidade do conhecimento do recurso
de constitucionalidade deriva ainda do facto de o autor ter provado a
inexistência jurídica dos títulos representativos das acções em causa, prova
essa que, apesar de ter sido erradamente considerada extemporânea, sempre
poderá, a todo o tempo, fundar nova declaração de nulidade do contrato;
e) o que as recorrentes, em rigor, impugnam
são as decisões da Relação e do STJ por estas terem aplicado o direito ordinário
em sentido que lhes desfavorável, pretendendo que se crie uma norma (“compete
àquele que nega a existência de um direito fazer a prova dessa inexistência”),
que seria, essa sim, contrária às normas e princípios consagrados nos artigos
1.º, 2.º e 20.º, n.ºs 1 e 4, da CRP.
1.8. As recorrentes responderam às questões
prévias suscitadas na contra‑alegação do recorrido, propugnando a sua
improcedência.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Começando, como cumpre, pela apreciação das
questões suscitadas pelo recorrido susceptíveis de conduzir ao não conhecimento
do recurso, há que desatender a primeira, pois, na verdade, ao defenderem, na
sua alegação, uma determinada interpretação normativa como sendo conforme à
Constituição, em contraponto a outra interpretação, que dela difere
substancialmente, que, segundo as recorrentes, teria sido acolhida na decisão
recorrida e que violaria a Constituição, não se constata qualquer “abandono”,
por parte das recorrentes, da questão de constitucionalidade que pretendiam ver
apreciada.
Igualmente improcede a alegada inutilidade
de conhecimento do recurso por, mesmo que obtivesse provimento e o contrato não
fosse considerado nulo por força da aplicação feita da regra do artigo 343.º,
n.º 1, do Código Civil, sempre seria ineficaz por desrespeito do artigo 29.º,
n.º 5, do CSC. É que o acórdão do STJ, ora recorrido, após considerar nulo o
contrato por falta de cumprimento de formalidades ad substantiam, considerou
prejudicado o conhecimento, designadamente, da eficácia do contrato, por
extravasar o objecto de uma das sociedades contratantes. Isto é: diversamente do
acórdão da Relação, que chegou a emitir pronúncia expressa no sentido da
ineficácia com base em violação do artigo 29.º, n.º 5, do CSC, o acórdão do STJ
funda‑se exclusivamente na nulidade do contrato, havendo, assim, interesse no
conhecimento do recurso (se o mesmo vier a ser considerado admissível).
Também são irrelevantes as considerações
tecidas pelo recorrido quanto à prova, que teria feito e que poderia repetir em
futura acção de nulidade do contrato, da inexistência dos títulos, pois esta
pretensa inexistência foi julgada não provada pelas instâncias e a seu respeito
não vem suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade.
Porém, analisada a fundamentação do acórdão
recorrido e os termos em que se mostram formulados, quer o requerimento de
interposição de recurso, quer as alegações das recorrentes, há que reconhecer
que não se pode conhecer do objecto do presente recurso, desde logo por, em
rigor, vir questionada, não a constitucionalidade de um critério normativo, mas
antes a da operação judicial de subsunção a esse critério, e, depois, por, mesmo
que se concedesse em vislumbrar na alegação das recorrentes a imputação de
inconstitucionalidade de um critério normativo, não haver coincidência entre o
critério questionado e o critério aplicado, como ratio decidendi, pela decisão
ora impugnada.
Na verdade, o acórdão da Relação claramente
enunciou – e o acórdão ora recorrido não se afastou dessa orientação – o
critério de que, nas acções de simples apreciação negativa, “ao réu incumb[e]
(…) a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga, enquanto que ao
autor se impõe a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse
direito”. As recorrentes não questionam a correcção (e a constitucionalidade)
deste critério, mas entendem que o mesmo terá sido mal (e
inconstitucionalmente) aplicado no caso concreto. Mas, sendo assim, o que, em
rigor, se questiona é a constitucionalidade da própria decisão judicial de
subsunção do caso concreto àquele critério, o que, como é sabido, não constitui
objecto idóneo de recurso de constitucionalidade.
Por outro lado, a situação de non liquet
respeitava, como claramente se refere no acórdão da Relação, à natureza das
acções (se nominativas, se ao portador), e, apesar de resolvida em desfavor das
rés, ora recorrentes, foi‑o com a expressa referência de que, quer fossem
nominativas, quer ao portador, era de concluir não terem sido respeitadas as
formalidades ad substantiam que, para umas e/ou para outras, eram legalmente
exigíveis. Foi a falta de cumprimento destas formalidades, dada como provada, e
não a dúvida sobre a natureza das acções que determinou a decisão de nulidade do
contrato.
O mesmo entendimento foi seguido no acórdão
do STJ, ora recorrido, que claramente enunciou, após reiterar a adesão ao
referido critério normativo, que, no caso, tinha de ser julgada em desfavor das
rés a falta de prova do cumprimento das formalidades ad substantiam (para as
acções nominativas: a declaração do transmitente escrita no título, o pertence
lavrado no mesmo e o averbamento no livro de acções da sociedade; para as acções
ao portador: a entrega dos títulos), dado que estas formalidades eram
constitutivas do direito das rés. Esta qualificação das referidas formalidades
como elemento constitutivo do direito das rés – qualificação que o Tribunal
Constitucional tem de acolher como um dado da questão – implica que o acórdão
recorrido não acolheu o critério normativo que se admitiu ter sido questionado,
do ponto de vista da sua conformidade constitucional, pelas recorrentes: o de
que se estaria a impor aos réus nas acções de simples apreciação negativa o ónus
(excessivo e desproporcionalidade) da inexistência de factos impeditivos,
modificativos ou extintivos do direito arrogado.
Assim, quer porque a imputação da
inconstitucionalidade visa directamente a decisão judicial impugnada, em si
mesma considerada, quer porque, a admitir‑se questionarem as recorrentes
determinado critério normativo, este não ter sido aplicado, como ratio
decidendi, pelo acórdão recorrido, impõe‑se a conclusão da impossibilidade de
conhecimento do objecto do presente recurso.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em não conhecer
do presente recurso.
Custas pelas recorrentes, fixando‑se a taxa
de justiça em 12 (doze) unidades de conta, por cada uma.
Lisboa, 16 de Maio de 2007.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
João Cura Mariano
Rui Pereira
Rui Manuel Moura Ramos