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Processo n.º 126/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Na presente ação especial de prestação de contas intentada pela ora reclamante A. contra B., por apenso ao processo de inventário no âmbito do qual o réu foi nomeado cabeça de casal, foi proferida sentença em 23 de junho de 2010, pelo 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Penafiel, que julgou verificado um saldo positivo a favor da herança no valor de € 37.309,90 (trinta e sete mil e trezentos e nove euros e noventa cêntimos).
Inconformada, a autora interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão de 2 de fevereiro de 2012, julgou parcialmente procedente a apelação e, refazendo o cálculo de conta corrente próprio da prestação de contas, fixou a favor da herança o saldo positivo de € 37.399,68.
Novamente inconformada, a autora interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, que, por acórdão proferido em 10 de julho de 2012, negou a revista, confirmando o acórdão recorrido.
A autora arguiu nulidades do acórdão e requereu a sua reforma, o que foi indeferido, por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 25 de outubro de 2012.
2. Veio a autora apresentar, então, recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 10 de julho de 2012, através de requerimento no qual formulou as seguintes questões de (in)constitucionalidade:
- A “inconstitucionalidade do artigo 1019.º do Código Processo Civil, quando interpretado no sentido de que o saldo apurado reverte a favor da herança, por violação do direito a um processo de execução, ou seja, o direito a que, através do órgão jurisdicional se desenvolva e efetive toda a atividade dirigida à execução da sentença proferida pelo tribunal, consagrado no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa”;
- E a “inconstitucionalidade do artigo 1016.º - 3 do Código Processo Civil com o artigo 352.º do Código Civil ao fazerem uma aplicação automática do regime de prova plena de confissão às declarações do cabeça de casal, pois viola os princípios do contraditório e de equidade previsto nos números 1 e 3 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa”.
3. Sobre esse requerimento incidiu despacho do Juiz Conselheiro relator no Supremo Tribunal de Justiça, de não admissão do recurso, com o seguinte teor:
“A recorrente A. veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão proferidos a folhas 1572 e seguintes invocando as als. b) c) e f) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15.11), alegando a inconstitucionalidade da norma do artigo 1019º do Código de Processo Civil, com a interpretação que se alega ter sido feita de que 'o saldo apurado reverte a favor da herança' e do artigo 1016º, nº 3 do mesmo diploma, 'com o artigo 352º do Código Civil', 'ao fazerem uma aplicação automática do regime de prova plena às declarações do cabeça de casal'.
Não pode ser.
Como consta de jurisprudência constitucional firme e reiterada, a suscitação da questão de constitucionalidade deve ocorrer durante o processo, isto é, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal 'a quo'.
Assim, o objeto do recurso de inconstitucionalidade apenas poderá incidir sobre a apreciação, à luz das regras jurídico-constitucionais, de um juízo normativo efetuado pelo tribunal recorrido - cfr. artigo 72º, nº 2, da referida Lei.
Ora, durante o presente processo não foi levantada qualquer questão de constitucionalidade das referidas normas e alegadas interpretações.
Assim, por não estarem reunidos os requisitos para a admissão do recurso, não se admite o mesmo”.
4. Apresentou, de seguida, a recorrente A., reclamação da referida decisão de não admissão do recurso, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 76.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC). Sustenta que o recurso deve ser admitido, com os seguintes fundamentos:
“1. A presente reclamação respeita ao despacho de não recebimento de um recurso interposto para este Tribunal ao abrigo do preceituado no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação da Lei n.º 85/89, de 7 de setembro.
2. A não admissão do presente recurso foi argumentada com a falta de um dos requisitos de admissibilidade, nomeadamente a suscitação da inconstitucionalidade 'durante o processo'.
3. Com todo o devido respeito, tal argumento não é válido, pois a suscitação foi de facto arguida nas alegações de recurso de Revista da recorrente de 13-04-2012, a fls..., que apresentou para o Supremo Tribunal de Justiça.
4. Foi suscitada a inconstitucionalidade do artigo 1016.º - 4 do Código Processo Civil, quando interpretado no sentido de que o saldo apurado reverte a favor da herança, por violação do direito a um processo de execução, ou seja, o direito a que, através do órgão jurisdicional se desenvolva e efetive toda a atividade dirigida à execução da sentença proferida pelo tribunal, consagrado no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa,
5. Foi ainda arguida a inconstitucionalidade do artigo 1016.º - 3 do Código Processo Civil com o artigo 352.º do Código Civil ao fazerem uma aplicação automática do regime de prova plena de confissão às declarações do cabeça de casal, pois viola os princípios do contraditório e de equidade previsto nos números 1 e 3 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa e deve esta inconstitucionalidade ser apreciada por este Tribunal.
6. A recorrente vem recorrer do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido a 10-07-2012, a fls..., cujo prazo de recurso para o Tribunal Constitucional apenas começou a correr a partir da notificação do Acórdão de Reforma proferido a 25-10-2012, a fls....
7. Como já esclareceu o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 89-456-2, de 07/05/1989, Processo: 89-0027, prazo para interpor o recurso conta-se a partir da notificação da decisão de reforma.
8. As reclamações sobre indeferimento dos recursos intentados para o Tribunal Constitucional destinam-se a verificar uma eventual preterição da devida reapreciação, pelo Tribunal Constitucional, de uma questão de constitucionalidade, pelo que importa apreciar, para as decidir, não tanto a fundamentação do despacho de indeferimento do recurso, como o preenchimento dos requisitos do recurso de constitucionalidade que se pretendeu interpor.
9. Os recursos interpostos ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/8, para serem recebidos, devem respeitar os seguintes requisitos de admissibilidade:
- A existência de uma decisão de um tribunal;
- A aplicação, nessa decisão, de uma norma de direito infraconstitucional;
- A suscitação, pelo recorrente, da inconstitucionalidade da norma aplicada e, finalmente,
- Que essa suscitação tenha sido efetuada, em princípio, antes de proferida a decisão de que se recorre, e em termos e em tempo de o tribunal recorrido ficar a saber que tem de decidir a colocada questão de inconstitucionalidade (cfr., sobre o ponto, o Acórdão deste Tribunal n.º 36/911).
10. Não podem os requisitos do acesso ao recurso deste Tribunal Constitucional tornarem-se obscuros ao ponto de não haver certeza jurídica se é possível ou não o recurso e haver questões que são apreciadas e outras não, por mero acaso de escolha do Tribunal e não pela certeza no preenchimento dos requisitos. Inclusivamente já foi observado no Acórdão n.º 88/86 que 'à indicação de normas constantes do requerimento de interposição de recurso pode, sem esforço de maior, ser atribuído caráter meramente exemplificativo, o que permite a conciliação do que se diz nessa peça processual com o que se afirma nas alegações, onde, ao cabo e ao resto, se faz como que uma interpretação 'autêntica' daquele requerimento'.
11. A questão de inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo, «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer»; Neste sentido se pronunciaram, nomeadamente, o Acórdão nº 479/89 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14º vol., págs. 143 e segs.), o Acórdão nº 116/93, o Acórdão nº 232/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27º vol., págs. 1119 e segs.) e o Acórdão nº 258/94, no quadro de uma jurisprudência unânime, constante e uniforme.
12. Ou seja: a inconstitucionalidade terá de ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de inconstitucionalidade) respeita. Um tal entendimento decorre do facto de se estar justamente perante um recurso para o Tribunal Constitucional o que pressupõe, obviamente, uma anterior decisão do tribunal a quo sobre a questão (de constitucionalidade) que é o objeto do mesmo recurso.
13. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça a fls .... proferido a 10-07-2012, neste processo, decidiu não apreciar a inconstitucionalidade suscitada pela requerente.
14. Na verdade, tal como também ficou consignado no mencionado Acórdão n.º 176/88, este Tribunal Constitucional «não pode ficar dependente de uma eventualmente indevida 'omissão de pronúncia' sobre a questão de constitucionalidade, por parte dos restantes tribunais». Nestas condições tem de se concluir que está verificado o requisito de admissibilidade na medida em que se há de considerar que houve na decisão recorrida aplicação implícita da norma cuja conformidade constitucional se questiona.
15. Muito embora este Tribunal não detenha competência para proceder à apreciação da matéria fáctica, nem tão-pouco para proceder à apreciação da sua qualificação jurídico-civil efetuada pelo Tribunal a quo - e sem entrar, portanto nesse tipo de apreciação ou de revisão -, importa todavia aqui explanar o enquadramento da matéria de facto em que o recorrente se sustenta; sob pena de se não compreender a própria questão de inconstitucionalidade colocada.
16. Os presentes autos de processo de Prestação de Contas em Inventário, interposto nos termos do artigo 1019.º do Código Processo Civil, tem como objetivo a averiguação das receitas e despesas obtidas pelos bens de herança indivisa e cuja administração está a cargo do cabeça de casal.
17. Já na fase entre a sentença final da primeira instância e a subida do recurso ao Tribunal da Relação do Porto, os autos do processo foram totalmente alterados, com sucessivas numerações das folhas do processo dos autos e o desaparecimento de documentos de prova.
18. Assim, conforme a impetrante insistentemente alertou, o processo não tinha nem tem condições para ser convenientemente julgado, sem uma restruturação do processo, conduzindo-o à sua versão original.
19. A Primeira Instância na fase de recurso de Apelação ordenou por despacho a reestruturação dos autos, mas tal nunca aconteceu. Os Tribunais da Relação e Supremo apesar de insistentemente alertados, mantiveram sempre o seu silêncio sobre esta matéria mesmo depois do conhecimento de que corre processo de averiguações junto do Conselho Superior dos Oficiais de Justiça.
20. Enfatiza-se que perante uma sentença final virtual completamente desconforme com o normal conhecimento da realidade dos autos e da total matéria decidendi, verificou-se depois das alegações de recurso de apelação, (foi recusado o acesso aos autos para a elaboração da alegações de apelação, com o argumento de estar a decorrer naquele juízo urna inspeção judicial) que os autos tinham sido radicalmente alterados na numeração de folhas, bem como, centenas de fotocópias ilegíveis de documentos em duplicado.
21. Foi já no Tribunal da Relação do Porto, que a impetrante verificou que a reconstituição dos autos nunca acontecera, mas que, pelo contrário, fora introduzida nova numeração das folhas. Numa tentativa de cooperação, a recorrente voltou a alertar o Tribunal da Relação do Porto para a gravidade da situação, apresentando mesmo uma súmula numérica.
22. Os autos do processo encontram-se excessivamente adulterados e é com dificuldade que se encontra alguma sequência na sua leitura.
23. O Tribunal da Relação do Porto, não só ignorou completamente a grave situação dos documentos dos autos, como produziu um acórdão repleto de trivialidades, tais como a recorrente desejar que o processo não se prolongue com mais diligências pois já tinham passados vários anos.
24. Agora, o Supremo Tribunal de Justiça confrontado com estes autos, reitera o mesmo silencio, quanto aos erros grosseiros da Primeira Instância, até porque, tal como se encontram os autos, verifica-se o não conhecimento das peças processuais, não dando importância à questão da Inconstitucionalidade, inclusivamente, diminuir o seu valor dizendo que não houve confissão alguma.
25. Certo é que, o Tribunal da Relação do Porto esclarece que deu às declarações do cabeça de casal o valor probatório de confissão e sem mais, deu como provado todo o alegado pelo cabeça de casal.
26. De facto, o Acórdão da Relação do Porto proferido a 02-02-2012, com fls....., na sua pág. 35, parág. 4, parte final (ie, linha 21), ficou definitivamente clara a confissão do cabeça de casal, que não houve qualquer erro de julgamento, e dá como plenamente provados os rendimentos declarados em articulado pelo cabeça de casal.
27. Assim com Acórdão do Tribunal da Relação verifica-se a aplicação implícita do artigo 352.º do Código Civil com o artigo 1016.º - 3 do Código Processo Civil, e como esclarecem os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 88/86, 47/90 e 235/93, a aplicação da norma tanto pode ser expressa como implícita e a questão de inconstitucionalidade tanto pode reportar-se apenas a certa dimensão ou trecho da norma, como a uma certa interpretação da mesma.
28. Tais normas constituem a 'ratio decidendi' da decisão, o fundamento normativo do seu próprio conteúdo, ou do julgamento da causa (segundo Acórdãos do Tribunal Constitucional 82/92, 116/93, 367/94. 496/99, 497/99, 674/99, 155/00, 157/00, 232/02).
29. Como explica, Dr. Guilherme Fonseca in Breviário de Direito Processual Constitucional, o recurso para o Tribunal Constitucional pode ter lugar no caso de ter sido aplicada, bastando que tal decorra implicitamente da decisão e cabem também, no âmbito deste recurso os casos das decisões que tenham interpretado uma norma num sentido arguido inconstitucional pela recorrente.
30. O regime de confissão, friamente aplicado às declarações do cabeça de casal, cria um enorme desequilíbrio entre as partes no processo de prestação de contas.
31. Assim sendo, o cabeça de casal passa a não ter de produzir qualquer prova no processo de prestação de contas, sendo que,
32. Como se sabe, é de conhecimento geral que, quem administra os bens controla plenamente o giro comercial e agrícola, ocultando se quiser, as receitas obtidas.
33. Especialmente, se é um cabeça de casal que nunca prestou contas durante mais de 15 anos, desde a abertura da herança, usufruindo plenamente e a seu bel-prazer dos bens da herança, não tendo os restantes interessados acesso às contas ou aos bens.
34. A lei não impondo qualquer ónus de prova sobre as declarações do cabeça de casal cria um absurdo desequilíbrio na igualdade e equidade entre as partes, quando devia ser imposto prova daquilo que alega.
35. Se esse ónus implica que um cabeça de casal não necessita de ter as suas contas em dia, de manter registo do seu balanço e principalmente prestar contas justificadas da administração de bens alheios.
36. Ora, é de senso comum e em consonância com as regras de transparência, que quem administra bens alheios tem de ter especial cuidado e responsabilidade com a sua administração e manutenção de registos e recibos.
37. É presente, nos autos, o constante comportamento do cabeça de casal de ocultar rendimentos da herança aos restantes interessados.
38. E nisto, a própria lei com os referidos artigos inconstitucionais ajuda criando um enorme fosso entre os direitos de defesa das partes.
39. É certo que, saber se as Alegações de recurso ordinário procedem, ou não, não cabe ao Tribunal Constitucional decidir (cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 44/85, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 5, 1985, pág. 408: 'para o Tribunal Constitucional a norma de direito infraconstitucional que vem questionada no recurso é um dado; cabe-lhe apenas verificar se essa norma é ou não inconstitucional. Saber se essa norma era ou não aplicável ao caso, se foi ou não bem aplicada - isso é da competência dos tribunais comuns, e não do Tribunal Constitucional').
40. Mas uma análise atenta das peças processuais permite concluir, numa consideração global do pedido da recorrente, que é possível descortinar o que, realmente, é posto em causa.
Nestes termos, devem ser considerados preenchidos os requisitos para admissão de recurso para este tribunal e ser admitido o recurso interposto, feito o mesmo subir, com o efeito próprio, seguindo-se os demais termos legais.”
5. Em resposta, o Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação, nos seguintes termos:
“1. O Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 10 de julho de 2012, negou a revista deduzida por A., autora na ação de prestação de contas em que figurava como réu B..
2. Após ver indeferida uma arguição de nulidade e um pedido de reforma, a Autora, daquele Acórdão, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional e, uma vez que não foi admitido, dessa decisão reclamou para o Tribunal Constitucional.
3. No requerimento de interposição do recurso a recorrente enunciou as seguintes questões de inconstitucionalidade:
“- Foi suscitada a inconstitucionalidade do artigo 1019.º do Código Processo Civil, quando interpretado no sentido de que o saldo apurado reverte da herança, por violação do direito a um processo de execução, ou seja, o direito a que, através do órgão jurisdicional se desenvolva e efetive toda a atividade dirigida à execução da sentença proferida pelo tribunal, consagrado no art.º 20.º da Constituição da república Portuguesa, nas alegações que apresentou para o Supremo Tribunal de Justiça, a fls…
- Foi ainda arguida a inconstitucionalidade do art.º 1016.º - 3 do Código Processo Civil com o artigo 352.º do Código Civil ao fazerem uma aplicação automática do regime de prova plena de confissão às declarações do cabeça de casal, pois viola os princípios do contraditório e de equidade previsto nos números 1 e 3 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa e deve esta inconstitucionalidade ser apreciada por este Tribunal”.
4. Quanto à primeira questão, diferentemente do que afirma o recorrente, nas alegações da revista para o Supremo Tribunal de Justiça, não foi suscitada a inconstitucionalidade do artigo 1019.º do Código de Processo Civil.
5. Efetivamente, nessa peça, quando se menciona que o saldo apurado se apresenta a favor da herança (fls. 1547 e 1548 e conclusão 50), não se faz ancorar tal interpretação no artigo 1019.º, pois, ou nada se diz (conclusão 50), ou essa menção vem imediatamente a seguir à referência e transcrição que se faz do artigo 1016.º, n.º 4, do Código de Processo Civil (fls. 1547 e 1548), sendo certo que na presente reclamação o recorrente fala, expressamente, na inconstitucionalidade do artigo 1016.º, n.º 4, do Código de Processo Civil (fls. 1629).
6. Se a interpretação radicasse naquele artigo 1016.º, n.º 4, sobre esta matéria, diz-se no acórdão recorrido:
“Nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 1016.º do Código Civil “se as contas apresentarem saldo a favor do autor, pode este requerer que o réu seja notificado para, no prazo de 10 dias, pagar a importância do saldo (…)”.
Tal dispositivo pressupõe, no entanto, a existência de um titular com direito exclusivo a esse saldo.
Ora, no caso em apreço, há mais que um titular.
Assim, é inaplicável aquela hipótese normativa”.
Seguidamente, o acórdão é perfeitamente claro quando ali se afirma que para a prestação de contas do cabeça de casal a correr por apenso a um inventário para partilha de bens, existe a regra específica constante do artigo 2093.º, n.º 3, do Código Civil.
7. Assim, seja porque a questão de inconstitucionalidade normativa não foi adequadamente suscitada, “durante o processo”, seja porque a norma foi efetivamente aplicada na decisão recorrida, sempre faltariam dois pressupostos de admissibilidade do recurso.
8. Quanto à segunda questão de inconstitucionalidade, nas alegações de revista o recorrente liga a interpretação em causa, exclusivamente, à norma do artigo 352.º do Código Civil (fls. 1541 e conclusão 13), acrescentando o artigo 1016º, nº 3, do Código de Processo Civil, apenas no requerimento de interposição do recurso.
9. Sobre tal ponto, diz-se no acórdão recorrido:
“Quanto à questão da chamada “confissão” do réu acerca dos factos em causa, em termos de força probatória – única que, como se disse, pode ser conhecida por este Supremo – temos que, conforme se verifica pela fundamentação das respostas aos quesitos após a última audiência de julgamento, as declarações do réu aí referidas não podem ser consideradas como uma confissão “strito sensu”, na medida em que ele aí se limitou a invocar factos que lhe foram favoráveis, portanto, não passíveis de confissão – cfr. artigo 352.º do Código Civil.
(…)
Foi a apreciação de todos os meios probatórios que conduziu a considerar-se como provada a matéria em causa.
As declarações do réu foram, assim, mais um meio de prova atendível, nos termos do disposto no artigo 515.º do Código de Processo Civil.”
10. Ora, face ao que acima ficou transcrito, parece-nos claro que a norma e dimensão normativa cuja questão de inconstitucionalidade o recorrente suscitou e identificou como objeto do recurso, não foi a aplicada na decisão recorrida.
11. Faltam, pois, esses requisitos de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, da LTC.
12. Por tudo o exposto, deve indeferir-se a reclamação.”
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
6. Decorre do que se vem de relatar que o recurso apresentado para este Tribunal Constitucional não foi admitido em virtude da ausência de suscitação perante o Tribunal a quo e em termos processualmente adequados das questões de constitucionalidade que constituem o objeto do recurso, como imposto pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º e n.º 2 do artigo 72.º da LTC, para que assista legitimidade ao recorrente.
Diga-se, desde já, que essa decisão mostra-se inteiramente correta, apesar do esforço argumentativo da reclamante.
7. Com efeito, e quanto à primeira questão colocada, a reclamante não colocou em crise perante o Tribunal a quo qualquer interpretação fundada no preceituado no artigo 1019.º do Código de Processo Civil. Na verdade, a alegação de recurso coloca dois problemas de constitucionalidade, ambos ancorados noutros preceitos, mormente no artigo 1016.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil e no artigo 352.º do Código Civil.
Com efeito, decorre dos autos que a reclamante suscitou, sim, a ilegitimidade constitucional, face ao artigo 20.º da Constituição, de interpretação do n.º 4 do artigo 1016.º do Código de Processo Civil, preceito que transcreveu na motivação da revista. Ao contrário do que aponta a reclamante, esse problema que foi especificamente conhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no sentido da inaplicabilidade do preceituado no artigo 1016.º do Código de Processo Civil, por a solução jurídica do litígio se encontrar na regra específica do n.º 3 do artigo 2093.º do Código Civil. Assim sendo, e como aponta o Ministério Público, nenhuma interpretação normativa extraída do n.º 4 do artigo 1016.º do Código de Processo Civil integra a ratio decidendi do decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, o que sempre tornaria inútil a apreciação da questão de constitucionalidade suscitada, por insuscetível de reverter a decisão recorrida.
Acresce que não nos encontramos perante enquadramento que convoque a aplicação do entendimento constante do Acórdão n.º 88/86, invocado pela reclamante. Nesses autos, estava em causa a aplicação implícita de normas que, pese embora não expressamente mencionadas no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, o haviam sido nas alegações subsequentemente apresentadas, admitindo-se, então, que essa peça processual assuma alcance interpretativo do anterior requerimento.
Nada disso acontece nos presentes autos, sendo patente a dissemelhança, desde logo no plano da aplicação implícita de sentido normativo cuja inconstitucionalidade havia sido suscitada. Como se disse, a aplicação da norma relativamente à qual fora afirmada desconformidade com o artigo 20.º da Constituição foi expressamente afastada pelo Tribunal a quo.
8. A segunda questão de constitucionalidade formulada no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, funda-se em interpretação de dois preceitos – o n.º 3 do artigo 1016.º do Código de Processo Civil e o artigo 352.º do Código Civil – e na indicação de sentido radicado numa “aplicação automática do regime de prova plena de confissão às declarações do cabeça de casal”.
Compulsadas as alegações do recurso de revista, constata-se que nelas foi tão somente sustentada a inconstitucionalidade de um desses dois preceitos e com sentido não coincidente com o que agora se pretende ver apreciado por este Tribunal. Colocou-se em crise o artigo 352.º do Código Civil, quando interpretado no sentido “de que o saldo positivo declarado pelo cabeça de casal em processo especial de prestação de contas é automaticamente uma confissão judicial escrita com prova plena”.
Essa desconformidade, seja na base legal do sentido questionado (sem cuidar de apreciar se a questão, assim colocada, interpela sentido normativo ou o ato decisório, em si mesmo considerado), seja no recorte do sentido cuja conformidade constitucional surge posta em crise, confere fundamento à ilegitimidade da recorrente também nesta vertente do recurso, nos termos da al. b) do n.º 1 do artigo 70.º e do n.º 2 do artigo 72.º, ambos da LTC, como decidido no despacho reclamado.
Cumpre considerar ainda que, também aqui, não existe conformidade entre o sentido questionado e aquele efetivamente aplicado pelo Tribunal a quo como determinante do julgado. Assim decorre, com evidência, do seguinte trecho do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que decidiu a revista:
“[C]onforme se verifica pela fundamentação das respostas aos quesitos após a última audiência de julgamento, as declarações do réu aí referidas não podem ser consideradas como uma confissão ‘strito sensu’, na medida em que ele aí se limitou a invocar factos que lhe foram favoráveis, portanto não passíveis de confissão – cfr. artigo 352.º do Código Civil.
Tal conclusão é confirmada pelo facto de naquela fundamentação haver referência não só às declarações do réu mas também à conjugação desta com o depoimento da testemunha Carolina.
E pelo facto de antes ter havido uma apreciação sobre a inconclusividade da prova testemunhal e pericial apresentada.
Ou seja, as referidas declarações do réu não tiveram, aqui, a força probatória plena referida no n.º 1 do artigo 358.º do Código Civil, que teriam se fossem consideradas como confissão.
Foi a apreciação de todos os meios probatórios que conduziu a considerar-se como provada a matéria em causa.
As declarações do réu foram, assim, mais um meio de prova atendível, nos termos do disposto no artigo 515.º do Código de Processo Civil.
Posta assim a questão e não tendo sido consideradas as declarações em causa com a força probatória plena que lhe atribuiu a recorrente, também não se põe a questão da inconstitucionalidade invocada por aquela”
9. Cumpre, nos termos enunciados, de acordo com a alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º e o n.º 2 do artigo 72.º, ambos da LTC, confirmar a decisão de não admissão do recurso para o Tribunal Constitucional e indeferir a reclamação apresentada pela autora A..
III. Decisão
10. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça, atendendo aos critérios em uso neste Tribunal e à dimensão do impulso processual em apreço, em 20 (vinte) unidades de conta.
Notifique.
Lisboa, 20 de março de 2013. – Fernando Vaz Ventura – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro.