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Processo n.º 481/13
Plenário
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I - Relatório
O pedido
1. O Representante da República para a Região Autónoma dos Açores requereu, nos termos do n.º 2 do artigo 278.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), e dos artigos 57.º e seguintes da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), ao Tribunal Constitucional a apreciação da conformidade com a CRP da norma constante da parte final do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto n.º 7/2013 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, mais precisamente, do segmento que fixa os limites mínimo e máximo das coimas a aplicar às pessoas coletivas (ou equiparadas).
2. De acordo com o entendimento expresso no requerimento, a norma constante do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto n.º 7/2013, na parte em que fixa uma moldura contraordenacional da coima aplicável às pessoas coletivas com um limite máximo de € 250.000,00, é inconstitucional, por violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de “regime geral de punição (…) dos atos ilícitos de mera ordenação social e do respetivo processo” (alínea d) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP), na medida em que o valor previsto de € 250.000,00 é mais de cinco vezes superior ao valor presentemente fixado para o mesmo efeito pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, que contém o atual “regime geral do ilícito de mera ordenação social” e que, no n.º 2 do seu artigo 17.º, aponta como valor de referência máximo € 44.891,82.
Lembrando que, em matéria de regime geral das contraordenações, o Tribunal Constitucional tem entendido que constitui competência reservada da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre o regime geral do ilícito de mera ordenação social o qual inclui a fixação dos limites das coimas, pelo que o Governo não pode sem autorização legislativa definir coimas com valor superior aos limites máximos fixados pelo regime geral do ilícito de mera ordenação social, sob pena de violar a reserva da Assembleia da República e incorrer em inconstitucionalidade orgânica, sustenta a validade desta jurisprudência também para as relações entre a Assembleia da República e as Assembleias Legislativas Regionais dos Açores e da Madeira. Nesta conformidade, conclui que, ao definir limites máximos das coimas aplicáveis às pessoas coletivas em montante cinco vezes superior ao fixado no regime geral, a Assembleia Legislativa açoriana extravasa a sua competência normativa específica – definida pela alínea q) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP – e invade (sem previamente se munir de uma autorização legislativa, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 e dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 227.º) a competência reservada aos órgãos de soberania.
O requerimento também considera que à inconstitucionalidade orgânica apontada à norma constante da parte final do artigo 10.º, n.º 1, do Decreto n.º 7/2013 se soma uma inconstitucionalidade material por violação dos princípios conjugados da igualdade (artigo 13.º da CRP) e da proporcionalidade (artigo 2.º da CRP). O argumento, neste caso, passa pela falta de fundamento justificador de um tratamento tão diferenciado relativo às infrações com grau de censurabilidade bastante próximo ocorridas na Região Autónoma dos Açores face às ocorridas no Continente ou na Região Autónoma da Madeira.
Por fim, considera o requerimento que, uma vez que o limite máximo contraordenacional não deverá ser superior a aproximadamente € 44.000,00, a fixação do limite mínimo em € 30.000,00 não permite graduar corretamente a medida das coimas concretas face aos diferentes elementos que deverão ser tidos em conta nos termos do artigo 18.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro. Nessa medida, o problema em causa estaria próximo do problema das denominadas “penas tendencialmente fixas” que seriam inconstitucionais por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.
3. Notificada para se pronunciar, ao abrigo do disposto no artigo 54.º da LTC, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, respondeu, sustentando a constitucionalidade das normas sob fiscalização com os seguintes argumentos:
- O Tribunal Constitucional tem salientado a ampla margem de decisão de que o legislador dispõe quanto à fixação legal do montante das coimas;
- O legislador regional ao estabelecer o valor das coimas no artigo 10.º moveu-se no âmbito da referida margem de decisão com vista à proteção do bem jurídico saúde, quer na ótica da saúde pública, quer da saúde individual dos consumidores;
- O artigo 64.º da CRP consagra a proteção do direito subjetivo à saúde a par do dever de a defender e promover, traduzindo-se este dever na imposição de tarefas ao Estado de criação e manutenção de uma estrutura de prestação de cuidados de saúde à coletividade;
- Para além desta vertente positiva de direito subjetivo e dever fundamental do Estado, o direito à saúde contempla ainda uma dimensão negativa, que consiste no direito a exigir do Estado e de terceiros que se abstenham de qualquer ato que prejudique a saúde;
- Na Região Autónoma dos Açores incumbe aos órgãos de governo próprio previstos e legitimados pela Constituição, serem o garante primordial do direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover;
- Para assegurar o direito à proteção da saúde incumbe ao Estado estabelecer políticas de proteção e tratamento da toxicodependência (artigo 64.º, n.º 3, alínea f), da CRP);
- É a utilidade – saúde pública – e a estratégia social de prevenção e dissuasão de comportamentos dependentes que se pretende alcançar na Região Autónoma dos Açores ao prever uma censura social relevante para os indivíduos e operadores económicos que desenvolvam esta atividade no seu território;
- O n.º 1 do artigo 17.º do RGCO prevê o caráter supletivo desta norma ao estabelecer “Se o contrário não resultar de lei (…)”;
- O decreto legislativo regional é uma das categorias de lei ordinária no ordenamento jurídico português (artigo 112.º da CRP);
- Não há violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, nem pode servir de termo de comparação o disposto em legislação nacional ou da Região Autónoma da Madeira, pois o exercício da competência legislativa contraordenacional regional implica que os quantitativos das coimas possam variar no território nacional.
4. Elaborado o memorando a que se refere o artigo 58.º, n.º 2 da LTC, o qual foi submetido a debate, cumpre agora decidir de acordo com a orientação fixada pelo Tribunal.
II - Fundamentação
A – O objeto da fiscalização preventiva da constitucionalidade
5. A norma a fiscalizar insere-se no n.º 1 do artigo 10.º do Decreto n.º 7/2013:
Artigo 10.º
Coimas
1 – As infrações ao disposto nos artigos 3.º, 4.º e 7.º do presente diploma constituem contraordenações puníveis, no caso das pessoas singulares, com coimas no valor mínimo de € 2.000,00, e máximo de € 3.700,00 e, no caso das pessoas coletivas, estabelecimentos privados, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, ou associações sem personalidade jurídica, no valor mínimo de € 30.000,00 e máximo de € 250.000,00.
2 – (…).
3 – (…).
Para completa compreensão do seu sentido e alcance, transcrevem-se de seguida os conteúdos dos artigos 3.º, 4.º e 7.º do Decreto n.º 7/2013 em referência:
Artigo 3.º
Novas substâncias psicoativas
1 - Entende-se que a substância psicoativa é uma substância natural ou sintética que, quando introduzida no organismo, modifica uma ou mais das suas funções, provocando alterações psíquicas e podendo criar de dependências físicas e/ou psíquicas.
2 - As novas substâncias psicoativas, com estrutura química e/ou efeitos biológicos similares aos das drogas incluídas nas tabelas I e II de substâncias proibidas, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, estão sujeitas a registo no departamento governamental competente em matéria de saúde, ficando a venda suspensa, pelo período de 18 meses, o qual só poderá ser superado mediante comprovativo da entidade competente quanto à ausência de risco para a saúde.
Artigo 4.°
Obrigação de rotulagem
Os produtos disponibilizados ao público que contenham constituintes psicoativos são obrigatoriamente rotulados, identificando esses constituintes com os correspondentes nomes, assim como a designação química das substâncias presentes, precedidos da letra P (psicotrópico).
Artigo 7.º
Proibição
1 - É proibido produzir, anunciar ou publicitar, vender ou ceder, preparar, fabricar, transportar, armazenar, deter em depósito, ter em existência ou exposição para venda, transacionar por qualquer forma, importar ou exportar qualquer das substâncias abrangidas pelo n.º 1 do artigo 2.º do presente diploma.
2 - É proibido o licenciamento de espaços comerciais que produzam, preparem, fabriquem, transportem, armazenem ou comercializem produtos que contenham constituintes psicoativos, num raio de 500 metros relativamente a estabelecimentos de ensino.
3 - É proibida a venda a menores de dezoito anos de produtos com constituintes psicoativos.
6. As questões de constitucionalidade colocadas incidem sobre a moldura contraordenacional prevista no diploma em referência, que estabelece o montante de € 250.000,00, como limite máximo e o montante de € 30.000,00, enquanto limite mínimo da coima aplicável às pessoas coletivas, estabelecimentos privados, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, ou associações sem personalidade jurídica, pelas infrações ao disposto nos artigos 3.º, 4.º e 7.º do diploma.
B - Enquadramento do Decreto n.º 7/2013 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores
7. O objeto do pedido incide sobre normas constantes do Decreto n.º 7/2013 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores.
Este decreto aprova o regime jurídico aplicável às novas substâncias psicoativas, que não constam dos anexos ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com as alterações posteriormente introduzidas (cfr. artigo 1.º do Decreto n.º 7/2013). Recorde-se que o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, estabelece o regime jurídico do tráfico e consumo de estupefacientes e psicotrópicos.
Como é salientado no preâmbulo do Decreto n.º 7/2013, dirigido às «novas substâncias psicoativas, popularmente designadas como “euforizantes legais” (do anglo-saxónico “legal highs” ou “herbal highs”) (…) referidas em Portugal como “drogas legais”», são os seguintes os objetivos visados pela publicação do Decreto n.º 7/2013 ora em análise:
«Importa aperfeiçoar o quadro legislativo em vigor, a exemplo do que tem sido concretizado noutros países europeus, como é o caso da Polónia e, a nível nacional, na Região Autónoma da Madeira.
Pretende-se, com o presente diploma, prosseguir os seguintes objetivos:
Proteger a população, nomeadamente a população juvenil, que, por característica própria desta faixa etária, está tendencialmente mais exposta aos riscos da experimentação das novas substâncias;
Adotar medidas adequadas ao controlo e fiscalização da comercialização destes produtos;
Reforçar a importâncias das ações de prevenção, informação e clarificação dos riscos associados ao consumo destas substâncias junto da população em geral e da população juvenil em particular.
Com esta iniciativa legislativa pretende-se implementar na Região um regime contraordenacional de proibição das novas drogas, sem prejuízo do quadro penal adequado que venha a ser aprovado a nível nacional.
Criamos assim um regime de ilícito de mera ordenação social para assegurar a proteção dos cidadãos e para a redução da oferta das denominadas «drogas legais», em consonância com as orientações do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência”».
8. Como precedente ao presente processo deve ser citado o Decreto Legislativo Regional n.º 28/2012/M, de 25 de outubro, aprovado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira – cujo texto é, em boa parte, retomado no decreto legislativo agora aprovado pela Assembleia Legislativa dos Açores e que aprovou «normas para a proteção dos cidadãos e medidas para a redução da oferta de “drogas legais”».
9. No Acórdão n.º 397/12, o Tribunal Constitucional apreciou, em processo de fiscalização preventiva, algumas normas constantes do decreto enviado para assinatura como decreto legislativo regional emitido no âmbito do processo legislativo que veio a dar origem àquele diploma da Região Autónoma da Madeira. Como então se salientou:
«Nas últimas décadas assistiu-se à multiplicação de novas substâncias psicoativas, denominadas “drogas lícitas” ou “alternativas lícitas às drogas ilícitas” (legal highs), que abrangem uma vasta categoria de compostos psicoativos não regulamentados, ou produtos que os contêm, os quais são vendidos como alternativas lícitas a drogas, cuja comercialização é proibida ou controlada, normalmente através da Internet ou em lojas intituladas de smartshops ou headshops.
O legislador regional, preocupado com a proliferação na Região Autónoma da Madeira destes estabelecimentos que comercializam livremente substâncias que, no seu entendimento, são suscetíveis de provocar danos irreversíveis para a saúde física e mental de quem as consome, estando, por isso, em risco a saúde pública, após ter recomendado à Assembleia da República uma intervenção legislativa neste domínio, tendo inclusive proposto, nos termos do artigo 167.º, n.º 1, da Constituição, a extensão do regime previsto no Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, a todas as substâncias psicoativas que não se encontrem controladas por legislação própria, “não obstante produzirem os mesmos efeitos” com a aprovação do diploma sob fiscalização pretendeu, entretanto, limitar a “oferta” dessas substâncias na Região, criando um regime de ilícito de mera ordenação social, ao abrigo do poder que lhe é conferido pelo artigo 227.º, n.º 1, q), da Constituição».
10. Entretanto, também a nível da República foi publicada legislação relativa a esta matéria. Em 17 de abril de 2013, foi publicado o Decreto-Lei n.º 54/2013, de 17 de abril, que «define o regime jurídico da prevenção e proteção contra a publicidade e o comércio das novas substâncias psicoativas» (cfr. artigo 1.º do referido Decreto-Lei). Como se pode ler no respetivo preâmbulo:
«É com elevada preocupação que, em Portugal, como em outros países europeus, se vem assistindo à abertura de locais dedicados à venda indiscriminada de substâncias psicoativas que, embora ameacem gravemente a saúde pública, não se encontram previstas na legislação penal, facto que vem condicionando a adoção de providências pelas autoridades, nomeadamente as de saúde, de segurança alimentar e económica. Novas substâncias psicoativas surgem no mercado a um ritmo de inovação que ultrapassa os meios previstos no Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro. O seu consumo, por ingestão, por inalação, por aspiração, por aplicação sobre a pele ou por quaisquer outras vias de absorção humana, representa comprovadamente um perigo concreto para a integridade física e psíquica das pessoas e, consequentemente, um risco para a saúde pública. O grau de dependência física e psíquica provocado por estas substâncias aproxima-se e, em determinadas situações, pode exceder, aquele que é causado por muitas substâncias ilícitas. Além disso, tem sido identificado clinicamente um nexo de causalidade com distúrbios psiquiátricos, incluindo episódios psicóticos, com distúrbios neurológicos e com complicações cardíacas graves. Acresce que neste mercado circulam substâncias cujos efeitos sobre a fisiologia humana são muitas vezes ainda mal conhecidas na sua plenitude, o que torna muito difícil o tratamento das intoxicações agudas e dos efeitos de longo prazo. Comercializadas, não raro, a preços módicos, sob a forma de incensos, sais de banho, pílulas sem outra caracterização, ervas, fungos ou fertilizantes, as novas substâncias psicoativas vêm conhecendo uma procura crescente, sobretudo entre os adolescentes. Sob variadas designações, sendo a mais comum a de «smartshops», os locais de venda publicitam como inócuas para a saúde drogas sintéticas, plantas e fungos que vêm sendo objeto de alerta por instâncias internacionais e da União Europeia, designadamente o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, assim como o Conselho, através da Decisão n.º 2005/387/JAI, de 10 de maio de 2005, relativa ao intercâmbio de informações, avaliação de riscos e controlo de novas substâncias psicoativas. Especialmente difícil de controlar mostra-se a venda à distância, facilitada por encomendas e pagamentos efetuados por meios eletrónicos, e que apresenta sinais de expansão. (…)».
11. Apesar de aplicável a todo o território nacional, a entrada em vigor deste Decreto-Lei não prejudica a competência regional para legislar sobre as «novas substâncias psicoativas». Como resulta do seu artigo 16.º, a previsão do referido âmbito de aplicação vale «sem prejuízo do disposto em diploma próprio das Regiões Autónomas». Neste âmbito, aplicar-se-á o princípio estabelecido no n.º 2 do artigo 228.º da CRP: «na falta de legislação regional própria sobre matéria não reservada à competência dos órgãos de soberania, aplicam-se nas regiões autónomas as normas legais em vigor».
Por conseguinte, será a entrada em vigor do decreto legislativo regional que afastará, no todo ou em parte, a vigência (supletiva) do Decreto-Lei n.º 54/2013, de 17 de abril, no território da Região Autónoma dos Açores.
C - Análise da questão da inconstitucionalidade orgânica da moldura contraordenacional da coima aplicável às pessoas coletivas
Considerações gerais
12. O requerente suscita a questão da inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto n.º 7/2013, «na parte em que fixa o limite máximo da coima aplicável às pessoas coletivas em 250.000,00 Euros», por violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de «regime geral de punição (…) dos atos ilícitos de mera ordenação social e do respetivo processo» (artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP).
Assim, o problema colocado pelo requerimento redunda no facto de o limite superior da moldura contraordenacional prevista no preceito em causa para as pessoas coletivas ser superior ao limite máximo previsto no regime geral do ilícito de mera ordenação social, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, no seu artigo 17.º, n.º 2 – que é de € 44.891,82.
13. O requerente não questiona a competência, constitucionalmente atribuída, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores de definir atos ilícitos de mera ordenação social e respetivas sanções. Nesse domínio, entende o requerente que «o Decreto n.º 7/2013, emanado ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição, cumpre globalmente os três parâmetros da competência legislativa regional aí estabelecidos (assim como no n.º 4 do artigo 112.º): âmbito regional; enunciação estatutária da matéria; ausência de reserva de competência dos órgãos de soberania».
14. Independentemente dessa questão, o artigo 227.º, n.º 1, alínea q), da CRP prevê o domínio competencial específico das Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas para «definir atos ilícitos de mera ordenação social e respetivas sanções, sem prejuízo do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 165.º» - cfr. também o artigo 232.º, n.º 1, da CRP (cfr. J.J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, CRP, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª edição, 2010, p. 679). O regime sancionatório contido no Decreto n.º 7/2013 institui um regime contraordenacional especial, inserindo-se no exercício dessa competência.
O Tribunal Constitucional já reconheceu, no quadro constitucional saído da revisão constitucional de 2004, através do Acórdão n.º 397/2012 (disponível, tal como todos os acórdãos do Tribunal Constitucional citados no texto, in www.tribunalconstitucional.pt), «ao legislador regional, no exercício da sua autonomia político-administrativa, e estando-lhe vedada a definição da política criminal através da criação de tipos penais, a possibilidade de promover, através da intervenção no plano contraordenacional, a contramotivação de condutas que apresentem tal perigosidade, designadamente no desenvolvimento de políticas regionais de promoção e tutela da saúde pública».
O domínio competencial específico das Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas (artigo 227.º, n.º 1, alínea q) da CRP) e a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, alínea d) da CRP)
15. O problema em análise colocado no requerimento não é o exercício da competência de definição do ilícito de mera ordenação social em si, mas o respeito pelos limites constitucionais desse exercício. Ora, como primeiro e principal limite resulta do artigo 227.º, n.º 1, alínea q) da CRP que o poder da Assembleia Legislativa de definir atos ilícitos de mera ordenação social e respetivas sanções se encontra limitado pelo «disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 165.º».
O artigo 165.º, n.º 1, alínea d), integra na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República o «regime geral de punição (…) dos atos ilícitos de mera ordenação social e do respetivo processo». Esta matéria foi integrada na referida reserva (no então artigo 168.º) através da revisão constitucional de 1982, operada pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro. Do referido preceito resulta que a matéria em causa deverá ser regulada por lei da Assembleia da República ou, após lei de autorização legislativa, por decreto-lei do Governo ou decreto legislativo regional de assembleia legislativa de região autónoma (cfr. artigos 165.º, n.º 1, alínea d), 198.º, n.º 1, alínea b), e 227.º, n.º 1, alínea b) da CRP).
A autonomia legislativa das Regiões Autónomas encontra-se limitada pelas reservas de competência dos órgãos de soberania. Em caso algum poderia a região autónoma legislar sobre matéria incluída na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República – neste caso, pelo artigo 165.º, n.º 1, alínea d) – ou, como na presente situação, contrariando ou derrogando ato legislativo aprovado ao abrigo dessa reserva, sem a prévia obtenção de autorização legislativa, pois isso redundaria numa atuação da Região que ultrapassa os seus poderes constitucionalmente definidos. A necessidade de respeito por parte das Assembleias Legislativas, no exercício da autonomia legislativa, pelas matérias reservadas aos órgãos de soberania decorre, aliás, igualmente do artigo 228.º, n.º 1, da CRP.
Resulta, portanto, deste regime que a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, no exercício da sua competência legislativa de definir atos ilícitos de mera ordenação social e respetivas sanções, pode criar contraordenações de forma inovatória, modificar ou eliminar contraordenações já existentes e estabelecer ou modificar as coimas ou sanções assessórias a elas aplicáveis, mas sempre de acordo com o «regime geral de punição (…) dos atos ilícitos de mera ordenação social e do respetivo processo» e os limites aí definidos. Note-se, aliás, que o artigo 67.º, alínea h) do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (cfr. Lei n.º 39/80, de 5 de agosto, alterada pela Lei n.º 9/87 de 26 de março, pela Lei n.º 61/98, de 27 de agosto, e pela Lei n.º 2/2009, de 12 de janeiro), ao definir a competência legislativa nesta matéria, limita-a à criação de «regimes especiais de mera ordenação social e respetivo processo».
No caso de pretender derrogar o regime geral, deve a Assembleia Legislativa da Região Autónoma solicitar a devida autorização legislativa à Assembleia da República, nos termos dos artigos 227.º, n.º 1, alínea b), e 165.º, n.º 1, alínea d) da CRP (cfr. J. Miranda, “A autonomia legislativa das regiões autónomas após a revisão constitucional de 2004”, Scientia ivridica, n.º 302, 2005, p. 205). Como não o fez, deverá ater-se aos já referidos limites decorrentes do regime geral.
16. Assente a necessidade de a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores respeitar a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República concernente ao «regime geral de punição (…) dos atos ilícitos de mera ordenação social e do respetivo processo», prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP, impõe-se analisar qual é o âmbito desta reserva. Será assim que se poderão traçar os limites do exercício do poder contraordenacional da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores.
A jurisprudência relativa à delimitação do domínio legislativo assim reservado encontra-se mais desenvolvida relativamente à relação entre Assembleia da República e Governo (cfr. v.g., Acórdãos n.º 56/84, n.º 412/87, n.º 304/89, n.º 329/92, n.º 441/93, n.º 74/95).
Da síntese realizada pelo Acórdão n.º 578/2009 relativamente a esta jurisprudência, pode retirar-se que a matéria da reserva relativa de competência da Assembleia da República relativa ao regime geral do ilícito de mera ordenação social e do respetivo processo abrange:
A definição da natureza do ilícito contraordenacional;
O estabelecimento do tipo de sanções aplicáveis às contraordenações;
A fixação dos respetivos limites das coimas – a sua moldura abstrata; e
A fixação das linhas gerais da tramitação processual a seguir para a aplicação concreta de tais sanções.
Em especial, a jurisprudência constitucional afirma que deste regime geral necessariamente consta «um quadro rígido das sanções aplicáveis aos ilícitos de mera ordenação social, bem como uma referência, com valor taxativo, aos montantes mínimo e máximo das coimas. A não se entender assim, a competência exclusiva da Assembleia da República, precisamente na zona mais nuclear do regime geral de punição das contraordenações, seria praticamente destruída: a simples enumeração, com caráter exemplificativo, das sanções aplicáveis, a mera recomendação de tetos das coimas, deixaria sempre ao Governo a possibilidade de desbordar em qualquer momento aquelas indicações» (cfr. Acórdão n.º 56/84).
A concretização em forma legal deste regime geral do ilícito de mera ordenação social decorre atualmente do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro – o Regime Geral das Contraordenações (RGCO) –, editado no uso da autorização legislativa conferida pela Lei n.º 24/82, de 23 de agosto. Foi, pois, desta forma que a Assembleia da República exerceu o poder que lhe estava reservado nos termos do artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP.
É nesse RGCO, em especial no seu artigo 17.º, que se estabelecem os montantes mínimos e máximos das coimas aplicáveis às pessoas singulares e coletivas – que são considerados limites mínimos e máximos que devem ser respeitados por regimes contraordenacionais específicos. De facto, grande parte da jurisprudência do Tribunal Constitucional relativa a esta matéria diz respeito precisamente à questão dos limites - em especial se estes podem ser alterados ou derrogados pelo Governo, sem autorização legislativa, de acordo com a CRP. A resposta jurisprudencial é pacífica e uniformemente negativa (cfr. v.g., Acórdãos n.º 304/89, n.º 305/89, n.º 428/89, n.º 324/90, n.º 435/91, n.º 447/91, n.º 314/92, n.º 329/92, n.º 355/92, n.º 385/93, n.º 424/93, n.º 441/93, n.º 787/93, n.º 837/93, n.º 149/94, n.º 585/94, n.º 74/95, n.º 574/95, n.º 620/95, n.º 41/97, n.º 42/97, n.º 165/97, n.º 175/97, n.º 212/97, n.º 190/98, n.º 253/2000, n.º 234/2002). Como é afirmado pelo Acórdão n.º 447/91:
«(…) a moldura sancionatória fixada no n.º 1 do artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 433/82 tem de ser considerada como não derrogável por qualquer diploma posterior emanado do Governo sem competente autorização legislativa, na parte respeitante aos valores mínimo e máximo das coimas que nele se preveem. Se assim não fosse, isto é se o Governo pudesse, sem específica autorização da Assembleia, fixar o montante mínimo da sanção por ilícito contraordenacional em valor inferior e o montante máximo em valor superior aos fixados no diploma que se entende ser a lei-quadro do ilícito de mera ordenação social, então, estar-se-ia a admitir que o Governo poderia modificar, sem estar devidamente credenciado, o regime geral de punição de tal ilícito, ou seja, que a competência da Assembleia da República, nesta matéria, não era exclusiva, como de facto é quanto a tal regime, por força do que se dispõe na alínea d) do n.º 1 do artigo [165.º] da Constituição.
O sentido da reserva de competência legislativa da Assembleia, no que se refere aos atos ilícitos de mera ordenação social, é o de que só a ela cabe (…) a definição da natureza dos ilícitos, dos tipos de sanção a aplicar e a delimitação, com caráter taxativo, da respetiva moldura abstrata».
E, como sumariado pelo Acórdão n.º 74/95:
«(…) o Tribunal entende que o Governo tem competência (concorrente com a Assembleia da República) para definir, alterar e eliminar contraordenações, e bem assim para modificar a sua punição; porém, é matéria da competência reservada da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre o regime geral do ilícito de mera ordenação social (artigo [165.º], nº 1, alínea d), da Constituição, na atual redação), isto é, sobre a definição da natureza do ilícito contraordenacional, a definição do tipo de sanções aplicáveis às contraordenações, e a fixação dos respetivos limites e das linhas gerais da tramitação processual a seguir para a aplicação concreta de tais sanções (coimas).
Nesse regime geral está incluída, sem dúvida, a fixação dos limites mínimo e máximo das coimas a estabelecer.
8. Ora, como tais limites se acham fixados no artigo 17.º, n.º 1, do Decreto-Lei nº 433/82, o Governo só mediante autorização legislativa parlamentar pode estabelecer coimas com valores mínimos inferiores aos limites mínimos aí previstos, ou com valores máximos superiores aos limites máximos aí previstos. Pode, porém, estabelecer valores mínimos superiores àqueles limites mínimos, desde que, evidentemente, sejam inferiores aos correspondentes limites máximos.»
17. Assim sendo, nas situações em que o Governo estabelece quadros contraordenacionais que não respeitam os limiares máximos ou mínimos estabelecidos no RGCO, sem cobertura de autorização legislativa, tem o Tribunal Constitucional considerado que se viola «não só a lei-quadro definidora deste regime, mas e em simultaneidade, a norma da Constituição que define a competência legislativa reservada da Assembleia da República. Aquele preceito acaba assim por ser portador de uma dupla viciação já que, em concurso ideal, nele coexistem os vícios de ilegalidade e de inconstitucionalidade, resultante este último da ofensa à norma constitucional que define a competência legislativa da Assembleia da República» (cfr. Acórdão n.º 797/93). Neste caso, o desrespeito dos limites estabelecidos no regime geral redunda em inconstitucionalidade orgânica do diploma em causa.
18. A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem vindo a aplicar o mesmo raciocínio ao poder das autarquias locais de estabelecer contraordenações no âmbito dos seus poderes normativos – sendo que, nesse caso, devem ser respeitados os limites previstos na Lei das Finanças Regionais (cfr. v.g., os Acórdãos n.º 110/95 ou n.º 386/2003) – hoje em dia previstos no artigo 55.º, n.º 2, da Lei das Finanças Locais (Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro).
19. Ora, esta orientação jurisprudencial deve ter-se por plenamente aplicável às relações entre a Assembleia da República e as Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas.
De facto, como já foi referido, a competência das Assembleias Legislativas das Regiões deve ser exercida respeitando a reserva relativa de competência da Assembleia da República quanto ao regime geral do ilícito de mera ordenação social – ou seja, deve respeitar este regime e conter-se nos seus limites. O Tribunal Constitucional já o afirmou nos Acórdãos n.º 91/84 e n.º 235/94 que, neste aspeto, apesar da evolução do texto constitucional relativo ao poder legislativo das regiões, mantêm plena aplicação na atualidade.
Assim sendo, ao estabelecerem atos ilícitos de mera ordenação social e respetivas sanções, as Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas devem ater-se aos montantes correspondentes aos limites máximos e mínimos previstos para as coimas, neste caso, no artigo 17.º do RGCO. O que significa que as Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas podem estabelecer quadros contraordenacionais com valores mínimos superiores aos limites mínimos aí fixados, desde que inferiores aos correspondentes limites máximos, ou valores máximos inferiores aos limites máximos aí fixados, desde que superiores aos correspondentes limites mínimos.
Daqui decorre, como é bom de ver, a proibição de fixação de um montante mínimo da sanção por ilícito contraordenacional em valor inferior ao limite mínimo aí previsto ou de um montante máximo em valor superior ao limite máximo aí previsto. Se assim não fosse, estar-se-ia a admitir que as Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas poderiam modificar ou derrogar, sem necessidade de autorização legislativa, o regime geral do ilícito de mera ordenação social, o que redundaria numa evidente violação do artigo 227.º, n.º 1, alínea q), e do artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP.
A autonomia legislativa das Regiões Autónomas tem como limite as matérias reservadas aos órgãos de soberania o que significa, neste caso, a necessidade de respeito pelos valores máximo e mínimo das coimas definidos no RGCO. Se as Regiões Autónomas ultrapassam esses limites, excedem os poderes que lhes são constitucionalmente confiados, pelo que o ato legislativo em causa será inconstitucional, por força do artigo 227.º, n.º 1, alínea q), e do artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP.
20. Ora, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, ao fixar para as pessoas coletivas um quadro contraordenacional cujo limite máximo da coima é superior ao máximo previsto no RGCO, pretende derrogar este último regime – que cabe na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos do artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP – excedendo os limites da sua autonomia político-legislativa e violando esta reserva de competência.
Diga-se, por fim, que o argumento utilizado pelo autor, invocando que o artigo 17.º do RGCO habilitaria a possibilidade de ultrapassagem dos limites aí estabelecidos, por conter a formulação «Se o contrário não resultar de lei», não procede. De facto, essa formulação não permite ultrapassar a vinculação constitucional do poder legislativo regional à reserva de competência da Assembleia da República resultante do artigo 165.º, n.º 1, alínea d) e do artigo 227.º, n.º 1, alínea q) – desde logo porque a lei nunca poderia derrogar a CRP. A correta interpretação do artigo 17.º do RGCO, a este nível, é a de que os limites gerais aí previstos não impossibilitam a fixação de outras molduras contraordenacionais, desde que estas se encontrem devidamente habilitadas – ou seja, sejam estabelecidas por lei ou se encontrem ao abrigo de uma autorização legislativa. Incluindo-se a fixação dos limites das coimas no âmbito da reserva relativa da Assembleia da República, nunca poderia o ato legislativo emitido ao seu abrigo permitir a sua alteração à margem dessa reserva. O artigo 17.º do RGCO não é – nem pode ser interpretado como sendo – uma lei de autorização legislativa permanente, à margem das regras do artigo 165.º, n.º 2, da CRP, habilitando (neste caso) as Regiões Autónomas a legislar em matéria de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
A ultrapassagem dos limites previstos no artigo 17.º do RGCO pelo artigo 10.º, n.º 1, do Decreto n.º 7/2013 significa a violação da reserva relativa de competência da Assembleia da República. Daqui resulta inexoravelmente a inconstitucionalidade do limite máximo do quadro contraordenacional previsto para as pessoas coletivas no artigo 10.º, n.º 1, do Decreto n.º 7/2013.
21. Conclui-se, assim, no sentido da inconstitucionalidade da fixação do limiar máximo da moldura contraordenacional pelo artigo 10.º, n.º 1, do Decreto n.º 7/2013, superior ao máximo previsto no regime geral do ilícito de mera ordenação social. Diante da inconstitucionalidade do limite máximo da coima, a norma não pode adquirir validade em todo o restante segmento aqui em análise e que prevê a moldura sancionatória aplicável às pessoas coletivas pelas infrações ao disposto nos artigos 3.º, 4.º e 7.º do diploma.
De facto, na norma em presença, existe uma relação entre o limite máximo e o limite mínimo de uma determinada moldura contraordenacional que se caracteriza por um nexo de codependência. O legislador – neste caso, o legislador regional –, ao estabelecer um determinado ilícito de mera ordenação social punível através de coima, delimita uma determinada moldura sancionatória. Essa moldura resulta de ponderações relativas ao valor dos bens jurídicos tutelados, que cabem prima facie à discricionariedade do legislador democraticamente legitimado.
Servindo a coima essencialmente como especial advertência conducente à observância de certas proibições ou imposições legislativas, os limites da moldura sancionatória hão de corresponder à necessidade de prevenir a infração às regras estabelecidas: enquanto o limite mínimo indica o nível da sanção considerado imprescindível para proteger a validade da norma, o limite máximo indica o nível até ao qual a medida sancionatória pode ser considerada necessária àquela proteção. A distância que separa os dois limites sancionatórios delimita-se entre uma amplitude que não seja permeável à sobreposição de critérios de oportunidade sobre critérios de legalidade na decisão administrativa, e uma proximidade que não deixe já espaço à adequação da sanção às circunstâncias do caso.
O estabelecer de uma moldura contraordenacional pressupõe, assim, uma determinada coerência intrínseca e interna entre esses limites. O limite máximo é justificável relativamente ao limite mínimo e vice-versa, pelo que é indesmentível a existência de uma relação forte de intercomplementaridade. A eliminação de um dos limites – por ser considerado inconstitucional, por exemplo – acarretará, necessariamente, uma reponderação das opções do legislador, como que uma “recalibração” da margem (máxima e mínima) dentro da qual se há de determinar a coima, em função da importância relativa das necessidades de prevenção a acautelar. Assim sendo, a pronúncia no sentido da inconstitucionalidade do limite máximo da coima aplicável à contraordenação torna insubsistente também o seu limite mínimo.
22. Em face do acima exposto, conclui-se pela verificação de inconstitucionalidade orgânica do artigo 10.º, n.º 1 do Decreto n.º 7/2013 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, na parte em que estabelece a moldura sancionatória da coima aplicável às pessoas coletivas, por violação dos limites da autonomia legislativa regional, decorrentes do artigo 227.º, n.º 1, alínea q), e da reserva relativa de competência da Assembleia da República prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP.
Restantes fundamentos de inconstitucionalidade invocados no requerimento
23. O requerimento suscita ainda a inconstitucionalidade material da norma integrada pela moldura sancionatória da coima aplicável às pessoas coletivas prevista no artigo 10.º, n.º 1 do Decreto n.º 7/2013.
Tendo-se concluído pela inconstitucionalidade orgânica da referida norma, dispensável se torna proceder ao seu confronto com outros parâmetros constitucionais, ficando, assim, prejudicado o conhecimento de mérito dos demais fundamentos invocados pelo Requerente.
III – Decisão
24. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide pronunciar-se pela inconstitucionalidade do artigo 10.º, n.º 1 do Decreto n.º 7/2013 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, na parte em que estabelece a moldura contraordenacional aplicável às pessoas coletivas, estabelecimentos privados, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, ou associações sem personalidade jurídica, pelas infrações ao disposto nos artigos 3.º, 4.º e 7.º do mesmo Decreto, por violação dos artigos 165.º, n.º 1, alínea d) e 227.º, n.º 1, alínea q) da CRP.
Lisboa, 28 de Junho de 2013. - Maria de Fátima Mata-Mouros - José da Cunha Barbosa - Catarina Sarmento e Castro - Maria José Rangel de Mesquita - João Cura Mariano (com declaração que junto) - Fernando Vaz Ventura - Maria Lúcia Amaral - Carlos Fernandes Cadilha - Ana Guerra Martins - Pedro Machete - Maria João Antunes (votei a decisão, sem prejuízo da declaração aposta ao acórdão n.º 397/12) - Joaquim de Sousa Ribeiro.
Tem voto de conformidade do Senhor Conselheiro Vítor Gomes nos termos da declaração do Senhor Conselheiro Cura Mariano, e não assina por ter cessado funções neste Tribunal.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a pronúncia de inconstitucionalidade do artigo 10.º, n.º 1, do Decreto n.º 7/2013 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, na parte em que estabelece a moldura contraordenacional aplicável às pessoas coletivas, estabelecimentos privados, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, ou associações sem personalidade jurídica, pelas infrações ao disposto nos artigos 3.º, 4.º e 7.º do mesmo Decreto, porque entendo que o legislador regional ao estabelecer o limite máximo da respetiva coima em valor que ultrapassa o limite previsto no artigo 17.º do Regime Geral das Contraordenações, desrespeitando-o, violou a repartição de competências entre órgãos regionais e estaduais, definida no artigo 227.º, da Constituição.
Na verdade, na alínea q), do n.º 1, deste preceito, atribui-se às Regiões o poder de definir atos ilícitos de mera ordenação social e respetivas sanções, sem prejuízo do disposto na alínea d), do n.º 1, do artigo 165.º.
A atribuição desta competência regional no domínio sancionatório está, pois, limitada pelo regime geral deste tipo de ilícitos. A Constituição confere às Regiões o poder de prever e sancionar determinados comportamentos como contraordenações, desde que essa previsão se enquadre e respeite as regras gerais deste ilícito, as quais constam atualmente do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro.
Daí que o legislador regional se, na previsão de um determinado ilícito contraordenacional, não obedecer às regras daquele regime geral, excede as competências que lhe estão constitucionalmente atribuídas, violando o disposto no artigo 227.º, n.º 1, q), da Constituição.
É exatamente isso que se verifica na norma sob fiscalização quando prevê um limite máximo da coima superior aos limites máximos previstos no artigo 17.º, do Regime Geral das Contraordenações.
Daí a pronúncia de inconstitucionalidade.
João Cura Mariano