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Proc. n.º 450/01 Acórdão nº 564/01
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por sentença de 16 de Março de 1999 do Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto (fls. 76 e seguintes), foi julgada procedente a impugnação judicial deduzida por M..., S.A. do acto, praticado pela Alfândega de Leixões, de liquidação da quantia de 2.237.613$00, a que corresponde o registo de liquidação
97/41 080, de 21 de Janeiro de 1997.
Aquele montante havia sido liquidado por permanência, por período superior ao legal, de um molde importado sob o regime de aperfeiçoamento activo (para reparação pela impugnante).
A anulação do acto impugnado, com restituição da importância paga e respectivos juros, foi determinada pela circunstância de que “em concreto, a sanção aplicada não respeita o princípio da proporcionalidade e se encontra em completa dissonância com a demais legislação aduaneira referente a sanções aplicáveis a infracções fiscais aduaneiras da mesma natureza e gravidade”.
2. O Representante da Fazenda Pública interpôs recurso dessa sentença para a 2ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo (fls. 93). Nas suas alegações (fls. 136 e seguintes) pugnou pela revogação da sentença recorrida.
O magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto interpôs igualmente recurso dessa sentença para o Supremo Tribunal Administrativo (fls. 95), tendo nas respectivas alegações (fls. 96 e seguintes) sustentado também que a decisão recorrida devia ser revogada, mantendo-se o acto de liquidação impugnado.
3. Por acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 2 de Maio de 2001
(fls. 176 e seguintes), foi negado provimento a ambos os recursos e confirmada a sentença recorrida, pelos seguintes fundamentos:
“O quid decisum, que é a decisão recorrida, põe a questão da validade ou invalidade do artº 639º, § 2º, do Regulamento das Alfândegas, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 438-E/88, de 28 de Dezembro, por desconformidade quer com o direito comunitário, quer com a Constituição da República, esta por violação do princípio da proporcionalidade. Reza o referido preceito o seguinte:
«As mercadorias despachadas ao abrigo do disposto neste artigo estão sujeitas ao pagamento de todos os encargos e imposições devidos, acrescidos da percentagem de 5% sobre o seu valor». Este STA tem uma jurisprudência constante no sentido de que estes 5% do valor das mercadorias constituem uma sanção pela demora no desalfandegamento (acórdão de 26.5.93, in AD 389/547, e de 9.2.94, in AD 396/1424) ou uma sanção de natureza processual (acórdãos de 23.3.94, Rec. nº 17.563, de 12.1.94, in AD
397/33 e de 17.3.99, in AD 454/1250). Seguindo este entendimento de que a percentagem de 5% tem natureza sancionatória, vejamos os problemas que se colocam a nível de direito comunitário. O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias pronunciou-se sobre esta norma de direito interno no acórdão de 26.10.95, proferido no Proc. C-36/94, tendo aí concluído:
«O artº 19º do Regulamento nº 4151/88 do Conselho de 21.12.88 não se opõe a que a autoridade aduaneira exija o pagamento de uma importância para além dos direitos aduaneiros e dos eventuais encargos ocasionados pela armazenagem temporária das mercadorias para aceitar uma declaração destinada à sua colocação em livre prática depois de expirados os prazos previstos no artº 15º, nº 1, do mesmo regulamento, na condição de o montante dessa importância ser fixado no respeito do princípio da proporcionalidade e em condições análogas às existentes em direito nacional para infracções da mesma natureza e gravidade. Compete ao tribunal nacional apreciar se o adicional controvertido está conforme com estes princípios». O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias voltou a pronunciar-se sobre este problema no acórdão de 7.12.2000 (fls. 161 e seguintes), proferido no Procº nº C-213/99, no qual concluiu:
«A aplicação de um processo que prevê a venda das referidas mercadorias demoradas ou a cobrança de uma taxa ad valorem para regularização da situação destas mercadorias não é, em si mesma, contrária ao princípio da proporcionalidade. Compete ao órgão jurisdicional nacional apreciar se a taxa prevista no caso dos autos no processo principal respeita este princípio». Resulta desta jurisprudência, que este STA tem de respeitar por força do princípio da uniformidade do direito comunitário, que a taxa viola o direito comunitário: a) Se violar o princípio da proporcionalidade; b) Se for liquidada e cobrada em condições diferentes das existentes em direito nacional para infracções da mesma natureza e gravidade. Uma percentagem de 5% sobre o valor da mercadoria, a título de sanção pela demora no desalfandegamento, não é uma percentagem desproporcionada desse valor. Neste sentido, pode ver-se o acórdão do Tribunal Constitucional nº 414/99, publicado na II Série do DR de 13.3.2000. Concorda-se com esta jurisprudência do Tribunal Constitucional a qual se mantém in casu. Já o segundo pressuposto indicado pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias se não verifica. De facto, uma sanção de 5% do valor das mercadorias é uma sanção fixa, sem mínimo nem máximo, pelo que o órgão aplicador dessa sanção não a pode graduar em função da culpa do agente e das suas condições económicas. A sanção passa a ser o resultado de uma operação aritmética. Ora, isto não se verifica com qualquer outra sanção aduaneira, pois em todas as sanções pela violação das disposições de direito aduaneiro há mínimos e máximos, como se pode ver pelas sanções previstas no Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras aprovado pelo Decreto-Lei nº 376-A/89, de 25 de Outubro. Logo, temos de concluir que a sanção de 5% sobre o valor das mercadorias está isolada no direito aduaneiro português, pois não se conhece qualquer outra sanção que seja determinada dessa maneira automática. E, assim, não é liquidada e cobrada e respectiva quantia «em condições análogas às existentes em direito nacional para infracções da mesma natureza e gravidade». Deste modo, os 5% são um encargo de efeito equivalente a um direito aduaneiro, proibido pelo artº 25º (ex-artº 12º) do Tratado da Comunidade Europeia. Mas há outro vício no artº 639º, § 2º, do Regulamento das Alfândegas: ele é inconstitucional por violar o princípio da igualdade e o princípio da proporcionalidade (este, noutro aspecto diferente do anterior). Como entendeu o Tribunal Constitucional no acórdão nº 202/2000, publicado na II Série do DR de
11.10.2000, as penas fixas violam o princípio da igualdade (artº 13º da CRP) e o princípio da proporcionalidade (artº 18º, nº 2, da CRP). Ora, uma pena fixa de 5% sobre o valor da mercadoria para a infracção das fazendas demoradas não permite distinguir o que é igual do que é desigual, em cada caso concreto, tratando todos os importadores por igual. Por outro lado, não se atendendo à culpa nem à capacidade económica do infractor, não se pode aplicar uma pena proporcionada à culpa do agente ou que tenha a culpa como limite máximo, nem se pode atender aos rendimentos e capacidade económica do infractor. Assim, quer pela violação do direito comunitário, quer pela violação do direito constitucional, o artº 639º, § 2º, do Regulamento das Alfândegas não pode deixar de ser desaplicado pelo juiz nacional. Foi o que fez a Mª Juíza a quo, pelo que a sua decisão não merece censura.”
4. O Ministério Público interpôs recurso desse acórdão para este Tribunal, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 183), nos seguintes termos:
“[...] Este tem em vista a apreciação da constitucionalidade da norma do artº 639º, §
2º, do Regulamento das Alfândegas, na redacção que lhe foi dada pelo Dec-Lei nº
483-E/88, de 28/12. Cuja aplicação foi recusada por se ter considerado que a imposição de uma pena fixa – sanção de 5% sobre o valor das mercadorias – é violadora dos princípios constitucionais da igualdade (artº 13º) e da proporcionalidade (art.º 18º, n.º
2).
[...].”
O Representante da Fazenda Pública interpôs recurso do referido acórdão do Supremo Tribunal Administrativo para o Pleno da Secção de Contencioso Tributário desse Tribunal, com fundamento no artigo 30º, alínea b), do ETAF (fls. 184).
Ambos os recursos foram admitidos por despacho de fls. 200, mas só se mandou subir, de imediato, o recurso interposto pelo Ministério Público para o Tribunal Constitucional.
Nas suas alegações (fls. 211 e seguintes), o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional concluiu do seguinte modo:
“1 – A norma constante do artigo 639º e § 2º do Regulamento das Alfândegas (na redacção emergente do Decreto-Lei nº 483-E/88, de 28 de Dezembro), ao estabelecer uma sanção administrativa ou processual compulsória de montante fixo, destinada ao aceleramento do normal desenvolvimento de todo o procedimento de despacho de mercadorias, já sujeita – em consequência de mora do interessado
– ao regime de venda em hasta pública (obviamente desprovida de natureza penal ou sequer contraordenacional) não viola os princípios da proporcionalidade, da igualdade e da culpa.
2 – termos em que deverá confirmar-se o juízo de não inconstitucionalidade constante do acórdão n.º 414/99.”
Notificada das alegações do Ministério Público, a recorrida M..., SA. não apresentou alegações (fls. 215).
Cumpre apreciar.
II
5. Os argumentos em que se sustenta a tese da inconstitucionalidade da norma do artigo 639º, § 2º, do Regulamento das Alfândegas, perfilhada na decisão recorrida, são, em síntese, os seguintes:
a) Uma percentagem de 5% sobre o valor da mercadoria, a título de sanção pela demora no desalfandegamento, “é uma sanção fixa, sem mínimo nem máximo, pelo que o órgão aplicador dessa sanção não a pode graduar em função da culpa do agente e das suas condições económicas”; b) A consagração de tal sanção fixa viola o princípio da igualdade, pois
“não permite distinguir o que é igual do que é desigual, em cada caso concreto, tratando todos os importadores por igual”; c) A consagração de tal sanção fixa viola o princípio da proporcionalidade, pois que, “não se atendendo à culpa nem à capacidade económica do infractor, não se pode aplicar uma pena proporcionada à culpa do agente ou que tenha a culpa como limite máximo, nem se pode atender aos rendimentos e capacidade económica do infractor”.
6. A norma cuja aplicação foi recusada pelo tribunal recorrido já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 414/99, de 29 de Junho
(publicado no Diário da República, II Série, n.º 61, de 13 de Março de 2000, p.
4841 s), tendo-se decidido que tal norma não viola a Constituição.
A propósito da alegada violação do princípio da proporcionalidade, ponderou-se então:
“[...]
3. – A questão que vem suscitada nos autos e que vem definida no requerimento de interposição do recurso, é a da inconstitucionalidade do artigo 639º do Regulamento das Alfândegas, na redacção do Decreto-Lei n.º 483-E/88, de 28 de Dezembro, por contender com os princípios da proporcionalidade e da legalidade tributária, consagrados nos artigos 266º, n.º2, e no artigo 103º, ambos da Constituição da República (versão de 1992). Torna-se necessário, antes de mais, delimitar o âmbito do recurso. De facto, a recorrente imputa a inconstitucionalidade a todo o artigo 639º da Regulamento das Alfândegas. Porém, o acórdão recorrido que revogou a sentença do Tribunal Fiscal Aduaneiro, mantendo na ordem jurídica o acto de liquidação impugnado, apenas aplicou o corpo do artigo e o seu § 2. Na verdade, de acordo com o estabelecido no artigo 638º do Regulamento das Alfândegas, as mercadorias armazenadas em quaisquer depósitos de regime aduaneiro ou livre serão vendidas em hasta pública quando excedem os respectivos prazos de armazenagem. Nos termos do que se dispõe no corpo do artigo 639º, «os donos das mercadorias demoradas além dos prazos legais de armazenagem podem despachá-las desde que assim o requeiram no prazo de seis meses contados a partir da sujeição da mercadoria ao regime de hasta pública». De acordo com o § 2 do preceito, as mercadorias assim despachadas, para além das despesas de armazenagem e tráfego, anteriores e posteriores à entrada no armazém de leilões e despesas com anúncios já publicados, ficam ainda sujeitas ao pagamento de uma percentagem de 5% sobre o seu valor.
É a conformidade à Lei Fundamental desta norma – corpo do artigo 639º e seu § 2
– que a recorrente pretende ver apreciada na medida em que «o sancionamento da mora no desalfandegamento, através de uma taxa ou multa percentual sobre o valor da mercadoria, não é compatível com o princípio da proporcionalidade». Porém, a recorrente em parte alguma das suas alegações se refere à violação do princípio da tipicidade fiscal (artigo 103º da Constituição), dando apenas como violado o artigo 266º da Constituição, uma vez que a decisão de 1ª instância afastou a hipótese delineada na petição inicial de se estar perante uma taxa ou direito aduaneiro adicional ou uma multa (conhecida por «multa de leilões»). Assim, cumpre apreciar a questão da violação do princípio da proporcionalidade pela norma do artigo 639º e § 2 do Regulamento das Alfândegas.
4. – O STA, na sequência de uma jurisprudência uniforme, tem entendido que a percentagem ad valorem prevista no § 2 do artigo 639º do Regulamento das Alfândegas integra uma «sanção processual ou procedimento tendente a assegurar o normal desenvolvimento do processo de desalfandegamento de mercadorias». Uma vez definido nos autos que o estabelecimento de tal percentagem não contende com o Direito Comunitário [...], escreveu-se na decisão recorrida: «Não estamos perante uma indemnização devida ao Estado pela ocupação de armazéns para além dos respectivos prazos, uma vez que essa percentagem é devida quer as mercadorias ocupem armazéns do Estado, quer armazéns não pertencentes ao Estado. Estamos pois perante uma sanção de natureza administrativa ou processual cominada para ilícitos praticados no processo, gracioso ou não, visando o seu normal desenvolvimento». Parece portanto claro que o Tribunal recorrido entendeu a obrigação do pagamento da percentagem de 5% sobre o valor das mercadorias não desalfandegadas, para além das despesas anteriores e posteriores de armazenagem e tráfego e anúncios, como uma sanção administrativa ou processual compulsória destinada ao aceleramento do normal desenvolvimento de todo o procedimento de despacho das mercadorias já sujeitas ao regime de hasta pública. Importa, pois, apurar se uma medida administrativa de natureza compulsória, cuja finalidade é a de promover o respeito dos prazos de desalfandegamento de mercadorias por parte dos operadores económicos, viola o princípio da proporcionalidade pelo facto de se tratar de uma percentagem ad valorem fixada em 5% do valor das mercadorias. A situação que resulta dos artigos 638º e 639º do Regulamento das Alfândegas é a seguinte: as mercadorias depositadas em quaisquer depósitos de regime aduaneiro ou livre serão vendidas em hasta pública se excederem os respectivos prazos de armazenagem (mercadoria demorada). Porém, dentro do prazo de seis meses após sujeição de tais mercadorias ao regime de hasta pública, a lei prevê ainda a possibilidade do seu desalfandegamento desde que os donos de tais mercadorias o requeiram e satisfaçam o pagamento de 5% do respectivo valor, assim como as despesas de armazenagem e tráfego e anúncios, se já tiverem sido publicados. Portanto, os donos das mercadorias, se pretenderem evitar a venda das mesmas e que sejam declaradas para livre prática ou para outro regime aduaneiro terão de suportar o ónus do pagamento da percentagem de 5% sobre o seu valor. No entender da recorrente, o que ofende o princípio da proporcionalidade é o método de cálculo de uma sanção por percentagem, chamando à colação para demonstrar tal violação a comparação com as sanções estabelecidas no Regime Jurídico da Infracções Fiscais e Aduaneiras (RJIFA), pelo qual a mora no desalfandegamento seria mais gravosamente punida que o descaminho de mercadorias. Vejamos. A actuação da Administração está efectivamente vinculada à observância do princípio da proporcionalidade, de modo particularmente relevante no âmbito do desenvolvimento de uma actividade discricionária, da qual constitui um dos limites jurídicos (artigo 266º, n.º 2 da Constituição e artigo 5º, n.º 2 do Código de Procedimento Administrativo). O princípio da proporcionalidade impõe que exista uma adequação não só entre o fim da lei e o fim do acto como entre o fim da lei e os meios escolhidos para alcançar tal fim. A adequação terá ainda de manter-se entre as circunstâncias de facto que ocasionam o acto e as medidas que vierem a ser efectivamente tomadas. A proporcionalidade abrange assim não só a congruência, adequação ou idoneidade do meio ou medida para realizar o fim que a lei propõe como também a proibição do excesso. Admitindo que no caso em apreço se está no domínio de intervenção do princípio da proporcionalidade, a fixação de uma percentagem fixa de 5% sobre o valor das mercadorias em causa, já sujeitas ao regime de venda em hasta pública, é medida adequada e idónea para realizar o fim da lei – a liberação das mercadorias do referido regime – passando-as de novo à livre prática? A resposta é indubitavelmente afirmativa: num momento em que o fim das mercadorias é a sua venda pública, com a consequente perda para o respectivo dono, pode este desembaraçar a mercadoria pagando o quantitativo fixado legalmente. Este quantitativo tem o seu valor pré-fixado na lei, dependendo o quantitativo a desembolsar de mera operação aritmética de acordo com o valor declarado das mercadorias. Dado que a finalidade da medida é a de promover o respeito dos prazos de desalfandegamento, é manifesto que os operadores económicos que incumpriram esses prazos verão as mercadorias ser vendidas, com o consequente prejuízo. Porém, a lei admite que possam obviar a tal venda e prejuízo pagando além das despesas a referida percentagem. O valor da quantia a pagar depende do valor das próprias mercadorias, e a opção, entre o seu pagamento ou não, está na disponibilidade do respectivo dono, dependendo apenas da sua vontade em dispor das mercadorias, pois a administração, feito o pedido de despacho, está obrigada a desembaraçar as mercadorias. Não existe, assim, no caso em apreço uma situação relativamente à qual se possa afirmar que a estipulação da medida administrativa compulsória em causa seja intoleravelmente desproporcionada ou exorbitante e, por isso, seja constitucionalmente inadmissível.
[...]”.
No acórdão do Tribunal Constitucional acabado de citar concluiu-se, portanto, que uma percentagem de 5% sobre o valor da mercadoria, a título de sanção pela demora no desalfandegamento, não consubstancia uma sanção desproporcionada, dado que é medida adequada e idónea para realizar o fim da lei: a liberação das mercadorias do regime de venda em hasta pública, passando-as de novo à livre prática.
Na decisão agora recorrida concorda-se com a doutrina consagrada nesse acórdão do Tribunal Constitucional (acórdão n.º 414/99, de 29 de Junho), afirmando-se ainda que “[u]ma percentagem de 5% sobre o valor da mercadoria, a título de sanção pela demora no desalfandegamento, não é uma percentagem desproporcionada desse valor.” (fls. 177 v.º).
Todavia, e apesar de na decisão recorrida se considerar que a percentagem de 5% não é desproporcionada em relação ao valor das mercadorias, é invocado um outro acórdão do Tribunal Constitucional – o acórdão n.º 202/2000, de 4 de Abril
(publicado no Diário da República, II Série, n.º 235, de 11 de Outubro de 2000, p. 16463 ss) – para se concluir que a norma do artigo 639º, § 2º, do Regulamento das Alfândegas é inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade (este último considerado numa vertente diversa daquela que havia sido considerada no acórdão n.º 414/99, de 29 de Junho).
7. Interessa, pois, recordar o que se disse no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 202/2000, de 4 de Abril, a fim de verificar se as considerações nele feitas de algum modo relevam para a apreciação do problema de constitucionalidade em apreciação no presente recurso.
Decidiu-se então:
– julgar inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade, a norma do artigo 3lº, n.º 10, da Lei n.º
30/86, de 27 de Agosto, na parte em que, como consequência da prática do ilícito nela descrito, obriga à imposição de interdição do direito de caçar por um período fixo de cinco anos;
– julgar inconstitucional, por ofensa ao princípio constitucional da proporcionalidade, conjugado com o artigo 62º, n.º 2, da Constituição da República, a norma do artigo 31º, n.º 10, do mesmo diploma legal, na parte em que prevê, como efeito necessário da prática do crime ali tipificado, e independentemente da ponderação das circunstâncias do caso, a perda dos instrumentos da infracção.
Nesse acórdão n.º 202/2000, apreciou-se, pois, a conformidade constitucional, à luz nomeadamente dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, da interdição de um direito (o de caçar) por um período de tempo fixo e da perda dos instrumentos do crime. A qualificação dessas medidas como sanções penais acessórias, efeitos de uma pena, efeitos de um crime ou, eventualmente, medidas de segurança é discutida no acórdão.
Ora, no presente caso, não está em causa uma sanção passível de tais qualificações. Como se refere no próprio acórdão recorrido, a sanção de 5% sobre o valor da mercadoria é, no seguimento da jurisprudência constante do Supremo Tribunal Administrativo, uma sanção pela demora no desalfandegamento ou uma sanção de natureza processual (cfr. fls. 177 e v.º). Visa-se com tal medida administrativa compulsória, como se observou no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 414/99, de 29 de Junho, promover o respeito, pelos interessados, dos prazos de desalfandegamento das mercadorias.
Não tendo a referida sanção de 5% sido qualificada pelo tribunal recorrido como sanção penal acessória, efeito de uma pena, efeito de um crime ou medida de segurança, não se vê a que título a sua conformidade constitucional pode ser questionada por referência a um acórdão do Tribunal Constitucional que analisa as implicações dos princípios da igualdade e da proporcionalidade em matéria de sanções penais, tendo sempre subjacente o princípio da culpa que orienta o direito penal.
Na verdade, a consideração de que a mencionada sanção de 5% não pode ser graduada em função da culpa do agente e das suas condições económicas só poderia relevar para a resolução da questão de constitucionalidade ora em discussão se, atendendo à natureza penal – ou, eventualmente, contra-ordenacional – dessa sanção, particulares exigências de igualdade e proporcionalidade se fizessem sentir.
Não sendo esse o caso, não se encontra – tal, como aliás, refere nas suas alegações o representante do Ministério Público junto deste Tribunal –
“razão suficiente para alterar a solução alcançada pelo referido acórdão [do Tribunal Constitucional] n.º 414/99”, para cujos fundamentos ora se remete e relativamente ao qual, aliás, o tribunal recorrido manifesta o seu assentimento
(fls. 177 v.º).
III
8. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se não julgar inconstitucional a norma do artigo 639º, § 2º, do Regulamento das Alfândegas, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 483-E/88, de 28 de Dezembro, e, consequentemente, conceder provimento ao recurso.
Lisboa, 11 de Dezembro de 2001- Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa