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Processo nº 481/00
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
(Tavares da Costa)
Acordam, na 3ª Secção,
do Tribunal Constitucional:
1. A P..., SA, não se conformando com a decisão do Conselho Directivo da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), que lhe aplicou uma coima de 500.000$00, impugnou a decisão condenatória junto do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa.
Este Tribunal, por sentença de 28 de Abril de 1999, negou provimento ao recurso, condenando a recorrente na coima referida por a considerar autora material da prática da contra-ordenação prevista e punida pelas disposições conjugadas dos artigos 341º, nº 1, alínea d) – na redacção do Decreto-Lei nº
261/95, de 3 de Outubro –, 670º, nº 4, e 672º, nº 2, todos do Código do Mercado de Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei nº 142-A/91, de 10 de Abril.
Da sentença recorreu a interessada para o Tribunal da Relação de Lisboa. Este Tribunal, por acórdão de 23 de Novembro de 1999, anulou a sentença proferida, devolvendo o processo ao tribunal recorrido para que fosse proferida outra sentença, tendo em conta os vícios que, em seu entender, se verificavam na primeira decisão.
Por sentença de 4 de Janeiro de 2000, a 1ª Instância voltou a condenar a arguida na mesma coima, face a idêntico enquadramento legal.
Interposto novo recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, este negou-lhe provimento, por acórdão de 9 de Maio de 2000, mantendo a sentença recorrida.
Inconformada, P..., SA recorreu, então, para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo a apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 670º e 672º do CMVM, questão por si anteriormente suscitada, por violação do disposto nos artigos 9º, alínea b), 30º, nº 1, e 266º, nº 2, da Constituição.
2. Já no Tribunal Constitucional, a recorrente foi convidada “a precisar mais detalhadamente as normas cuja apreciação” pretendia, já que, como então se escreveu, “seja relativamente à primeira das normas mencionadas no
[...] requerimento de interposição do recurso – pois não estará em causa em toda a sua dimensão normativa –, seja no tocante à segunda, dada a eventualidade de lapso na sua identificação”.
Com efeito, verifica-se ter ocorrido um lapso material na sentença da 1ª Instância que, nem o Tribunal da Relação, nem a recorrente detectaram: o artigo 672º não tem nenhum nº 2, e respeita à punição de outras infracções que não a prevista no artigo 341º, nº 1, alínea d), pela qual a recorrente foi punida; a menção correcta seria a do nº 2 do artigo 676º.
Com efeito, resulta da fundamentação da decisão da 1ª instância, não alterada pelo acórdão recorrido, que está em causa a conduta negligente da arguida, prevista no nº 2 do artigo 676º, entendendo-se, no caso, ter esta agido com negligência inconsciente. Nessa medida, considerou-se ser de 150.000.000$00 o limite máximo da coima aplicável (cfr. o nº 4 do artigo 17º do Decreto-Lei nº
433/82, de 27 de Outubro, na redacção do Decreto-Lei nº 244/95, de 14 de Setembro).
3. Em resposta, a recorrente veio aos autos esclarecer que pretendia
“fosse apreciada a constitucionalidade da parte inicial do artº 670º do antigo Código do Mercado de Valores Mobiliários, na parte em que estatui uma coima cujo montante varia entre 500.000$00 e 300.000.000$00, ou seja, na medida em que estatui uma coima com limites indefinidos e arbitrários.
A indefinição e a arbitrariedade resultam, igualmente, da enorme disparidade de situações sujeitas à mesma coima e da igual consideração de
‘muita gravidade’ de todo e qualquer comportamento aí descrito. E que, no caso dos autos ficou patente quando tendo ficado assente que a recorrente era punida por um mero lapso, foi afastada a possibilidade de aplicação de uma simples admoestação por se entender que colidia com a classificação de muito grave genericamente atribuída a quase todas as infracções ao Código do Mercado dos Valores Mobiliários no seu art. 670º.
O mesmo se diga, mutatis mutantis a respeito do art. 672º alínea b), norma pela qual a recorrente também foi condenada , embora incorrendo o Mmo. Juiz no lapso (não censurado) de indicar o nº 2 e não a alínea b)”.
4. Seguiram os autos para alegações, com a advertência, nos termos e para os efeitos do nº 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil, na perspectiva de evidente lapso material na menção da segunda das questionadas normas, de que o objecto do recurso respeita às normas do nº 4 do artigo 670º e do nº 2 do artigo
676º do CMVM.
Apresentadas as alegações, concluiu assim a recorrente:
“A norma constante do art. 670º, nº 4 do Código do Mercado de Valores Mobiliários, por ser excessivamente aberta nos seus limites e aplicável a um universo de casos de gravidade absolutamente díspar, é violadora dos princípios da proporcionalidade e da justiça a que está sujeita a Administração Pública e viola, por isso mesmo, o art. 266º da CRP. Deve, por isso, ser declarada a sua inconstitucionalidade e, em consequência, ser a recorrente absolvida da coima que lhe foi aplicada, assim se fazendo justiça.”
Por sua vez, o Ministério Público, nas suas alegações, “considerando que o que a arguida questiona directa e exclusivamente é a excessiva amplitude da coima, referindo por diversas vezes qual o seu montante (500.000$00 a
300.000.000$00)!, e que a recorrente não se refere ao nº 2 no artigo 676º na conclusão das alegações, entendeu que apenas deveria ser objecto do presente recurso a questão da constitucionalidade do nº 4 do artigo 670º. E, pelo que toca a tal questão, o Ministério Público concluiu do seguinte modo:
“1- A norma do artigo 670º, nº 4 do Código de Mercado de Valores Mobiliários
(Decreto-Lei nº 142-A/91, de 10 de Abril) enquanto fixa uma coima de 500.000$00 a 300.000.000$00 para a contra-ordenação prevista no artigo 341º, nº 1, alínea d) não é inconstitucional pois não viola qualquer princípio ou preceito constitucional designadamente os artigos 266º e 29º, nºs. 1 e 3 e 30º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
2- Termos em que deve negar-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.”
Ouvida ainda a recorrente sobre a limitação do objecto à norma do nº
4 do artigo 670º, declarou a mesma nada ter a opor.
5. Tendo havido mudança de relator, por vencimento, cumpre agora proceder à apreciação da questão de constitucionalidade suscitada. Constitui objecto do presente recurso a norma do nº 4 do artigo 670º do Código do Mercado de Valores Mobiliários, aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº
142-A/91, de 10 de Abril (em conjugação com o corpo do preceito), hoje revogada pela alínea a) do nº 1 do artigo 15º do Decreto-Lei nº 486/99, de 13 de Novembro, cujo artigo 1º aprovou o Código dos Valores Mobiliários, que vigora, nesta parte, desde 1 de Março de 2000, nos termos do artigo 2º deste diploma legal.
A norma em causa, dispunha, sob a epígrafe “Contra-ordenações muito graves”:
“Constituem contra-ordenações puníveis com coima de 500.000$00 a 300.000.000$00 as infracções definidas nos números seguintes, quer resultem da violação de regulamentos emanados do Ministro das Finanças ou da C.M.V.M. em cumprimento ou para execução desses mesmos preceitos:
(...)
4º - A violação dos artigos 239º, nº 4, 341º a 343º, e 344º, nº 1, alíneas a), b), e nº 2, alíneas a), b) e d), pelas entidades emitentes de valores admitidos
à cotação no Mercado de Cotações Oficiais, e bem assim, por força do disposto nos artigos 359º, nº 4, 371º e 389º, nºs. 2 e 3, pelas entidades emitentes com valores admitidos à cotação ou negociação, respectivamente, no Segundo Mercado e no Mercado sem Cotações;
(...).”
Sem prejuízo de ser esta a única norma objecto do recurso em apreço, há, no entanto, que a articular com a alínea d) do nº 1 do artigo 341º do Código, por um lado, e com o nº 2 do artigo 676º do mesmo diploma, por outro lado.
Nos termos da primeira, dispunha-se:
“1. A sociedade que tiver valores cotados deve publicar, nos trinta dias subsequentes ao da respectiva aprovação, os seguintes documentos de prestação de contas respeitantes a cada exercício:
(...) d) Relatório de auditoria das contas e situação financeira da sociedade, elaborado por auditor exterior a esta e registado na C.M.V.M. nos termos dos artigos 103º e seguintes;
(...).”
Com a alteração introduzida pelo Decreto-Lei nº 261/95, de 3 de Outubro, esta alínea passou a estar assim redigida:
“d) Relatório de auditoria nos termos do artigo 100º, salvo se o mesmo for dispensado nos termos do nº 6 desse artigo.”
Por sua vez, o nº 2 do artigo 676º, sob a epígrafe “Princípios gerais” (das “infracções e sanções”: cfr. título VI), determinava a punibilidade das contra-ordenações “praticadas com negligência.”
6. O problema de constitucionalidade suscitado pela recorrente reside fundamentalmente na imputação de que a norma é “excessivamente aberta nos seus limites e aplicável a um universo de casos de gravidade absolutamente díspar”. Deste modo, seria violadora dos “princípios da proporcionalidade e da justiça a que está sujeita a administração pública”, ofendendo nessa medida o disposto no artigo 266º da Constituição.
Como refere o Ministério Público, nas suas alegações, a questão posta pela recorrente não diz propriamente respeito a uma violação do artigo
266º da Constituição, mas antes “ao princípio da legalidade consagrado no artigo
29º, nºs 1 e 3 da Constituição e ao princípio [da proibição] das sanções de duração ilimitada ou indefinida (artigo 30º, nº 1 da Constituição), que é uma das vertentes do princípio da legalidade”.
7. Importa começar por reconhecer que a norma em apreciação estabelece uma enorme distância entre os limites mínimo e máximo da coima aplicável à infracção cometida. O limite mínimo é de 500.000$00, enquanto o limite máximo é de 300.000.000$00, sendo reduzido, em caso de negligência, a
150.000.000$00, por força do disposto no nº 4 do artigo 17º do Decreto-lei nº
433/82.
O Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 574/95 (não publicado), pronunciando-se sobre os limites da coima (de 500.000$00 a 300.000.000$00) cominada para a contra-ordenação descrita no nº 15 do artigo 670º do Código de Mercado de Valores Mobiliários, entendeu que tais limites não violavam a Constituição, e designadamente os princípios da “determinabilidade das leis”, da proporcionalidade, da igualdade e da separação de poderes, por diversas razões.
Em primeiro lugar, invocou-se o regime geral das contra-ordenações, onde eram estabelecidos (na redacção então considerada, resultante do Decreto-lei nº 356/89, de 17 de Outubro) limites máximos das coimas aplicáveis
às pessoas colectivas 600 vezes ou 1200 vezes superiores aos limites mínimos, e referiram-se outros domínios onde o “factor de multiplicação” seria igual ou superior.
Em segundo lugar, entendeu-se que “a distância entre o limite mínimo e o limite máximo da coima” não seria “de molde a que esta deixe de cumprir a sua função de garantia contra o exercício abusivo (persecutório e arbitrário) ou incontrolável do ius puniendi do Estado” E isto, porque o legislador teria fixado sem margem para dúvidas os limites “dentro dos quais se há-de mover aquele que tiver de aplicar a coima”.
Em terceiro lugar, o acórdão afirmou que, apesar da “extensão da moldura sancionatória prevista na norma sub judicio, o legislador não estabeleceu uma ‘coima indeterminada’, como pretende a recorrente”, lembrando que “uma certa extensão da moldura sancionatória é de algum modo – pode mesmo dizer-se – o tributo que o princípio da legalidade das sanções tem de pagar ao princípio da culpa, que deriva da essencial dignidade da pessoa humana e se extrai dos artigos 1º e 25º, nº 1 da Constituição”.
Deste modo, a norma em causa cumpriria “as exigências que vão implicadas no princípio da legalidade penal, consagrado no artigos 29º, nºs 1 e
3, da Constituição (nullum crimen nulla poena sine lege), no princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania, no da indisponibilidade de competências (consagrados, os últimos dois, no artigo 114º, nºs 1 e 2, da lei Fundamental) e, ainda, no princípio da proibição de sanções de duração ilimitada ou indefinida (consagrado no nº 1 do artigo 30º da Constituição), que é outra dimensão ou vertente do princípio da legalidade das sanções”.
O citado acórdão não deixou, todavia, de afirmar que aceitava o
“entendimento de que o princípio da legalidade das sanções, o princípio da culpa, e bem assim, o princípio da proibição de sanções de duração ilimitada ou indefinida valem, na sua ideia essencial, para todo o direito sancionatório público, maxime, para o domínio do direito de mera ordenação social”.
Por último, o mesmo acórdão negou a existência de qualquer violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, afirmando, quanto a este
último, que a sanção prevista não seria “desnecessária, inadequada ou, clara e manifestamente, excessiva”.
8. Dissentindo do juízo de não inconstitucionalidade formulado neste acórdão nº 574/95, o Conselheiro Luís Nunes de Almeida votou vencido, designadamente quanto à questão da inconstitucionalidade material suscitada, tendo afirmado o seguinte, na declaração de voto emitida:
“b) Inconstitucionalidade material
A necessária articulação entre o princípio da legalidade e o princípio da culpa não pode conduzir a uma excessiva indeterminação da sanção, sob pena de o legislador transferir para o juiz o cerne da sua própria competência (no limite, absoluta preeminência do princípio da culpa, sem atentar no respeito mínimo do princípio da legalidade, conduziria à total abolição dos limites mínimos das medidas sancionatórias).
Assim sendo, cabe ao legislador, para assegurar que o princípio da culpa não é postergado, mas que o princípio da legalidade também não é inteiramente sacrificado, determinar, em abstracto, os critérios definidores dos diversos patamares de culpa e fixar, para cada patamar, a sanção aplicável, no seu mínimo e no seu máximo. O que não se apresenta como admissível, é remeter para o juiz, sem a definição clara de critérios minimamente perceptíveis, a determinação das sanções aplicáveis. e isso é o que acontece no caso sub judicio, dada a desproporção entre os limites mínimo e máximo.
E não se contradiga, apresentando outros casos onde essa desproporção seria idêntica ou, até, superior (em que o máximo seria 600, 1.200 ou 2.500 vezes superior ao mínimo). É que, independentemente da valia intrínseca desses outros casos, a verdade é que os montantes, nessas outras hipóteses, são muito inferiores, sendo que a desproporção, em valores absolutos, entre um mínimo de 500 contos e um máximo de 300.000 contos é incomparavelmente superior
à desproporção entre 500 escudos e 3.000 contos”.
9. Concorda-se com estas observações, que são aplicáveis à norma que constitui o objecto deste processo.
Há, no entanto, que ponderar a argumentação que foi considerada decisiva na tese que obteve vencimento no Acórdão nº 574/95.
Assim, e em primeiro lugar, a comparação com os limites das coimas fixados no regime geral do ilícito de mera ordenação social parece esquecer que a função essencial de tais limites não é a de fixar uma “moldura sancionatória” para as contra-ordenações em geral, mas antes a de estabelecer um enquadramento genérico, no interior do qual vale a liberdade de conformação legislativa do Governo na tipificação de contra-ordenações e na fixação dos correspondentes limites das coimas, sem necessidade de autorização da Assembleia da República. Quanto ao confronto com outros regimes especiais, cabe sublinhar o que resulta da declaração de voto parcialmente transcrita: “independentemente da valia intrínseca desses outros casos”, a desproporção entre os limites mínimo e máximo não pode analisar-se apenas, ou fundamentalmente, com base na proporção aritmética em causa, antes há-de ter em devida conta a desproporção em termos absolutos. Ora, esta é evidentemente muito superior quando entre o limite mínimo e o máximo distam 149.500.000$00.
No que toca à afirmação segundo a qual “a distância entre o limite mínimo e o limite máximo da coima” não seria “de molde a que esta deixe de cumprir a sua função de garantia contra o exercício abusivo (persecutório e arbitrário) ou incontrolável do ius puniendi do Estado”, já que o legislador teria fixado sem margem para dúvidas os limites “dentro dos quais se há-de mover aquele que tiver de aplicar a coima”, cabe distinguir dois planos distintos na ponderação do princípio da legalidade da sanção: um deles é o que se traduz na exigência de fixação da espécie de sanção aplicável e dos respectivos limites; outro, que com este não deve ser confundido, é o que respeita à amplitude de tais limites. Na verdade, não pode o legislador estabelecer limites tão distantes ou afastados que, demitindo-se da sua missão específica, remeta no fundo para o aplicador do direito a tarefa de escolher a sanção aplicável.
O que acaba de se referir relaciona-se ainda com o argumento usado no citado Acórdão de que “uma certa extensão da moldura sancionatória é de algum modo – pode mesmo dizer-se – o tributo que o princípio da legalidade das sanções tem de pagar ao princípio da culpa, que deriva da essencial dignidade da pessoa humana e se extrai dos artigos 1º e 25º, nº 1 da Constituição”. Esta afirmação é de subscrever; mas aponta no sentido oposto àquele em que é utilizada. Se um entendimento absoluto do princípio da legalidade da sanção levaria ao sistema das penas fixas, com postergação do princípio da culpa, também um entendimento absoluto do princípio da culpa levaria, com afastamento do princípio da legalidade da sanção, a deixar plenamente nas mãos do juiz (ou da autoridade administrativa) a questão da escolha e da medida da sanção. Ora, afirmar-se que
“uma certa extensão da moldura sancionatória é (...) o tributo que o princípio da legalidade das sanções tem de pagar ao princípio da culpa” é reconhecer necessariamente duas coisas: que o princípio da legalidade das sanções deve ser tido em conta na apreciação da constitucionalidade da “extensão da moldura sancionatória”; e que se tal extensão exceder manifestamente o que for imposto pelo princípio da culpa (“uma certa extensão” não equivale a uma enorme extensão), deve ser directamente confrontada com o princípio da legalidade da sanção.
10. Resta, ainda, acrescentar que não está evidentemente em causa a muito ampla margem de manobra do legislador na fixação dos modelos sancionatórios que decide adoptar, bem como na escolha e determinação dos limites das sanções aplicáveis. Por outras palavras, haverá, por certo, diversos modos de conjugar, sem violação da Constituição, os princípios da culpa e da legalidade da sanção. O que se questiona é, antes, a possibilidade de, pela aceitação de limites extraordinariamente amplos, se pôr em causa a previsibilidade da sanção, pela transferência para o aplicador do direito de uma tarefa da qual o legislador total ou parcialmente se demitiu.
O que fica dito não é ainda afectado pela aplicabilidade dos critérios gerais de determinação da medida da coima, previstos no artigo 18º do Decreto-Lei nº 433/82, ou dos critérios especiais previstos no Código de Mercado de Valores Mobiliários. É que a aplicação de tais critérios a um quadro sancionatório de limites tão afastados como aquele que é objecto do presente recurso não reduz de modo significativo a insegurança dele resultante. Não procede, ainda, a chamada à colação da “natureza dos bens jurídicos que o legislador quer tutelar”, ou da “importância dos valores sociais envolvidos” (v. acórdão citado), que poderá, porventura, justificar a adopção de sanções de gravidade não despicienda, mas nada depõe no sentido de uma excessiva amplitude sancionatória. O mesmo se diga relativamente às características específicas do mercado de valores mobiliários, ou dos ilícitos que com ele se conexionam. Os montantes muito elevados em causa, os benefícios colhidos pelos infractores, os prejuízos sofridos por outrem ou pelo próprio mercado, e a necessária possibilidade de actuar com rigor, prontidão e eficiência na punição das infracções cometidas
(cf. o ponto 24 do preâmbulo do Código do Mercado de Valores Mobiliários) não levam a aceitar necessariamente uma desproporção acentuada entre os limites mínimo e máximo das sanções. Como refere o Conselheiro Luís Nunes de Almeida, na sua declaração de voto, “cabe ao legislador, para assegurar que o princípio da culpa não é postergado, mas que o princípio da legalidade também não é inteiramente sacrificado, determinar, em abstracto, os critérios definidores dos diversos patamares de culpa e fixar, para cada patamar, a sanção aplicável, no seu mínimo e no seu máximo”. E, a concluir, cumpre lembrar que as características particulares do mercado de valores mobiliários não impediram o legislador de 1999 de alterar o sistema sancionatório das contra-ordenações com ele relacionadas, através do novo Código dos Valores Mobiliários. Com efeito, por um lado, as contra-ordenações muito graves passam a ser puníveis com coimas de 25.000 a 2.500.000 euros [al. a) do nº 1 do artigo 388º], o que, apesar de representar ainda uma grande amplitude, atenua a distância substancial até aí existente entre um limite mínimo leve e um limite máximo particularmente severo. Por outro lado, o artigo 405º do mesmo Código estabelece, de modo inovador, uma série de critérios e circunstâncias tendentes a permitir adequar a determinação concreta da sanção ao grau de ilicitude e da culpa do agente. Deste modo, independentemente do juízo que possa merecer o novo regime, confirma-se que o legislador tem diversos meios de que se pode servir para evitar violar o princípio da determinação da sanção, decorrente do princípio da legalidade.
Assim, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da legalidade da sanção, decorrente dos nºs 1 e 3 do artigo 29º e do nº 1 do artigo 30º da Constituição, aplicável no direito de mera ordenação social, a norma do nº 4 do artigo 670º (em conjugação com o corpo do preceito) do Código do Mercado de Valores Mobiliários, aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 142-A/91, de 10 de Abril; b) Em consequência, conceder provimento ao recurso, devendo o acórdão recorrido ser reformado em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade formulado.
Lisboa, 7 de Dezembro de 2001 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa (vencido nos termos do acórdão nº 574/95) José de Sousa e Brito (vencido pelas razões do Acórdão nº 574/95) Luís Nunes de Almeida