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Processo n.º 501/2012
3.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nestes autos, vindos do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, o Ministério Público interpôs recurso, para o Tribunal Constitucional, invocando, como fundamento, a recusa de aplicação, por parte do tribunal a quo, do regime normativo decorrente do artigo 14.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 282/2003, de 8 de novembro, em conjugação com a alínea n) do n.º 3 do artigo 27.º dos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 235/2008, de 3 de dezembro, com fundamento em inconstitucionalidade material.
2. A presente ação teve início como processo de contraordenação, tendo o Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa proferido decisão condenatória.
Inconformada, a arguida impugnou judicialmente a decisão administrativa contra si proferida, invocando, além do mais, a inconstitucionalidade material das normas dos artigos 14.°, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 282/2003 de 8 de novembro, em conjugação com a alínea n) do n.º 3 do artigo 27.° dos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 235/2008 de 3 de dezembro - donde resulta a atribuição à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, através do seu Departamento de Jogos, da competência para a instrução e apreciação dos processos de contraordenação previstos naquele primeiro diploma legal - com fundamento na violação do direito a um processo equitativo, estabelecido no artigo 20.°, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
Por decisão de 28 de maio de 2012, o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão julgou procedente o recurso interposto.
Na fundamentação desta decisão, pode ler-se o seguinte:
“No presente caso, verificamos que o direito de promover concursos de apostas mútuas é reservado ao Estado, que concedeu à Santa Casa da Misericórdia a sua organização e exploração em regime de exclusivo para todo o território nacional» (cfr. Decreto-Lei n.º 84/85, de 28 de março, republicado em anexo ao Decreto-Lei n° 317/2002, de 27 de dezembro, e alterado pelo Decreto-Lei n.º 37/2003, de 6 de março).
Neste sentido e tendo em vista disciplinar o registo de apostas nos jogos sociais do Estado, o Dec.-Lei n.º 282/2003, de 8 de novembro, estabeleceu no seu artigo 14° que: “Compete à Direção do Departamento de Jogos, no âmbito das suas atribuições, a apreciação e aplicação de coimas ou outras sanções acessórias dos processos de contraordenação que vierem a ser instaurados com vista à aplicação das penalidades previstas no presente decreto-lei.”
Por sua vez, estabeleceu o artigo 27º dos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 235/2008 de 03-12: “1. O departamento de jogos (DJ) tem por objeto a exploração dos jogos sociais do Estado e de quaisquer outros jogos autorizados que sejam cometidos à SCML. (…)
3. Sem prejuízo de exercer as demais competências atribuídas ao departamento por lei e as que lhe sejam delegadas pelo provedor e pela mesa, são, nomeadamente, competências do DJ: (…) c) Explorar os jogos sociais do Estado, designadamente as lotarias e os concursos de prognósticos ou apostas mútuas;
(..) n) Apreciar os processos de contraordenação que vierem a ser instaurados respeitantes à exploração ilícita de lotarias e apostas mútuas ou outros jogos e atividades similares com vista à aplicação das penalidades previstas na lei. (…)”.
Verifica-se, pois, a existência de uma coincidência entre a entidade a quem o Estado Português concessionou, com exclusividade para todo o território nacional, a realização [d]os jogos e apostas desportivas e a entidade que fiscaliza e assume poderes sancionatórios para a violação das regras que determinam a concessão.
Quer isto dizer que a entidade que explora e gere a atividade do jogo, com exclusividade a nível nacional, não tem qualquer autonomia e independência em relação à entidade que detém as funções de fiscalização e sancionamento dessa mesma atividade que envolvem, naturalmente, terceiros, uma vez que são uma e a mesma – o Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia.
Assim, há que concluir (…) que tal coincidência importa a violação do princípio constitucional do direito ao processo equitativo, conforme previsto no artigo 20° n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, no sentido único que decorre do artigo 47° da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais.
Face ao exposto, declara-se as normas dos artigos 14°, n.º l do Dec.-Lei n.º 282/2003 de 08-11 em conjugação com a alínea n) do n.º3 do artigo 27° dos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 235/2008 de 03-12, como inconstitucionais.
Tal juízo de inconstitucionalidade implica a absolvição da arguida pelas contraordenações aplicadas nos presentes autos.”
É esta decisão que consubstancia a decisão recorrida, no presente recurso de constitucionalidade.
3. Admitido o recurso, o Ministério Público, junto deste Tribunal Constitucional, apresentou alegações, com as seguintes conclusões:
“1.ª) O Ministério Público interpôs recurso, obrigatório, da decisão de “folhas 325 a 331 [de 28 de maio de 2012, proferida no processo n.º 362/12.5TFLSB (Recurso de contraordenação), do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão – 1.º juízo, em que é recorrente “O Sol é Essencial, SA” e recorrida a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa – Departamento de Jogos] que julgou procedente o recurso de contraordenação, recusando a aplicação do regime normativo decorrente do art.º 14.º, n.º 1 Dec. Lei nº 282/2003 de 8 de novembro, em conjugação da al n do nº 3 do art. 27 dos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, aprovados pelo Dec.-Lei 235/2008 de 3 de dezembro, por inconstitucionalidade material”, decorrente da violação do princípio constitucional do direito ao processo equitativo, conforme previsto no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, no sentido único que decorre do artigo 47º da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais.
2.ª) Porém, o dito “regime normativo” é “constitucionalmente adequado”, pois não infringe o princípio do “processo equitativo” e, mais, garante o direito fundamental de “acesso aos tribunais”.
3.ª) Com efeito, por definição, o “regime normativo” em apreço não infringe o direito (fundamental) ao “processo equitativo”, no sentido do artigo 20.º, n.º 4, da CRP, pois o âmbito subjetivo de proteção desta disposição respeita aos processos “judiciais” (e não aos processos de “contraordenação”) e, por outra parte, o seu âmbito objetivo de proteção tutela aspetos processuais (e não orgânicos, nomeadamente a composição da entidade decisória, como “independente e imparcial”).
4.ª) Finalmente, este “regime normativo” concretiza a garantia constitucional de acesso do arguido à via judicial, que corre termos no “tribunal” competente, sob a direção de um “juiz”, e assegura ao arguido “todas as garantias de defesa”, incluindo o “recurso” para o tribunal da Relação (CRP, arts. 32.º, n.º 1).”
4. A recorrida igualmente apresentou alegações, concluindo nos seguintes termos:
“A. o regime normativo em apreciação não é adequado com os princípios constitucionais em vigor, por não permitir um processo equitativo, nem garante o direito fundamental de acesso aos tribunais;
B. O regime das contraordenações está sujeito aos mesmos princípios que o processo penal;
C. Deve por isso, ser confirmada a sentença proferida e, em consequência ser declarada a inconstitucionalidade material, das normas dos artigos 14°, n.º1, do Decreto Lei n.º 282/2003, de 08 de novembro, em conjugação com a alínea n) do n.º 3, do art. 27.º dos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, aprovado pelo Decreto Lei n.º 235/2008, de 3 de dezembro, por violação do artigo 20º nº 4 da CRP, como decorre do artigo 47º da CEDF, por não assegurar um processo equitativo e justo.”
II - Fundamentação
5. Não obstante a omissão de menção expressa, no requerimento de interposição de recurso, é manifesto que o mesmo se funda no disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante LTC, uma vez que incide sobre uma decisão que recusa a aplicação de norma, com fundamento em inconstitucionalidade.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a norma em referência, no âmbito do Acórdão n.º 595/12, proferido por esta 3.ª Secção.
Na fundamentação de tal aresto, pode ler-se nomeadamente o seguinte:
“5. A decisão recorrida considerou violado o princípio do processo equitativo, consagrado no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição que, sob a epígrafe “acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva” dispõe que “[t]odos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”.
Sucede que desta norma constitucional não decorre o efeito que a decisão recorrida, por si e pelo que absorve do precedente jurisprudencial a que se acolhe (Acórdão do TRP de 2/11/2011, P. 801/06.6TPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt), lhe atribuiu, no que se refere à fase administrativa do processo de contraordenação. Desde logo, porque a conformação legislativa dessa fase do processo de contraordenação está fora do campo de previsão desta norma constitucional. O “processo equitativo” que constitui objeto imediato do n.º 4 do artigo 20.º da Constituição respeita à “tutela jurisdicional efetiva”, aos “tribunais”, a “causas” e “procedimentos judiciais”. Como diz o Ministério Público. a linguagem, o sentido e a função desta disposição constitucional são inequívocos ao localizarem o direito (fundamental) ao processo equitativo em sede “judicial” e não em sede “administrativa”, como é o caso da fase administrativa do “processo de contraordenação”.
O que conta, pois, para concretizar esta garantia constitucional, é que o arguido, sem embaraço ou custo excessivos, possa impugnar a decisão administrativa sancionatória, abrindo um verdadeiro processo judicial, que corre termos no tribunal competente, é decidido por um juiz, através de um procedimento contraditório e assegura ao arguido todas as garantias de defesa. A esta fase aplicam-se por inteiro as exigências do processo equitativo, designadamente as que respeitam à separação entre a titularidade do impulso acusatório e a competência decisória e a imparcialidade do órgão decisor – exigências que, aliás, são objeto de parâmetros constitucionais específicos e que, por isso, é operativamente desnecessário amalgamar no conceito de processo equitativo – mas tal garantia não é vulnerada pelas regras competênciais ou pela estrutura organizatória das “autoridades administrativas” que intervêm na decisão sancionatória prévia, objeto de impugnação.
Efetivamente, como se disse no Acórdão n.º 659/2006, a propósito da introdução do atual n.º 10 do artigo 32.º da CRP – efetuada pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contraordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios – que se pretendeu assegurar, nesses processos, os direitos de audiência e de defesa do arguido, expondo-se o alcance da referida norma e da aplicabilidade dos princípios da constituição processual criminal, nos termos seguintes:
“Tal norma implica tão-só ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contraordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defender -se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa), apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade (cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, p. 363). É esse o limitado alcance da norma do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, tendo sido rejeitada, no âmbito da revisão constitucional de 1997, uma proposta no sentido de se consagrar o asseguramento ao arguido, “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios”, de “todas as garantias do processo criminal” (artigo 32.º -B do Projeto de Revisão Constitucional n.º 4/VII, do PCP; cf. o correspondente debate no Diário da Assembleia da República, 2.ª série -RC, n.º 20, de 12 de setembro de 1996, pp. 541 -544, e 1.ª série, n.º 95, de 17 de julho de 1997, pp. 3412 e 3466).
É óbvio que não se limitam aos direitos de audição e defesa as garantias dos arguidos em processos sancionatórios, mas é noutros preceitos constitucionais, que não no n.º 10 do artigo 32.º, que eles encontram esteio. É o caso, desde logo, do direito de impugnação perante os tribunais das decisões sancionatórias em causa, direito que se funda, em geral, no artigo 20.º, n.º 1, e, especificamente para as decisões administrativas, no artigo 268.º, n.º 4, da CRP. E, entrados esses processos na “fase jurisdicional”, na sequência da impugnação perante os tribunais dessas decisões, gozam os mesmos das genéricas garantias constitucionais dos processos judiciais, quer diretamente referidas naquele artigo 20.º (direito a decisão em prazo razoável e garantia de processo equitativo), quer dimanados do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da CRP), [...]
[...] Dentre os processos sancionatórios é o processo contraordenacional um dos que mais se aproxima, atenta a natureza do ilícito em causa, do processo penal, embora a este não possa ser equiparado. Constitui afirmação recorrente na jurisprudência do Tribunal Constitucional a da não aplicabilidade direta e global aos processos contraordenacionais dos princípios constitucionais próprios do processo criminal [...]
[...] A diferença de “princípios jurídico -constitucionais, materiais e orgânicos, a que se submetem entre nós a legislação penal e a legislação das contra -ordenações” reflete -se “no regime processual próprio de cada um desses ilícitos”, não exigindo “um automático paralelismo com os institutos e regimes próprios do processo penal [...]”.
O que não significa, como veremos oportunamente, que não se coloquem exigências constitucionais de que o procedimento obedeça, também nessa outra fase, aos imperativos de um due process, mas não com a matriz e com o conteúdo que a sentença fez decorrer do n.º 4 do artigo 20.º da Constituição. Como se assinalou no Acórdão n.º 461/2011, o Tribunal também tem sublinhado que a reconhecida inexigibilidade de estrita equiparação entre processo contraordenacional e processo criminal é conciliável com “a necessidade de serem observados determinados princípios comuns que o legislador contraordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matéria de processo penal” (Acórdãos n.ºs 469/97 e 278/99).”
6. Não vai compreendido nesta imposição de conformação legislativa (e de atuação concreta do processo de contraordenação), nomeadamente por ser considerado conatural ao direito de defesa, a de que à mesma autoridade administrativa esteja vedado desempenhar, no mesmo processo, funções de investigação e de decisão. Garantidos os direitos de audiência e defesa, a fase administrativa do processo contraordenacional pode assumir uma estrutura inquisitória típica, porquanto o princípio da estrutura acusatória do processo é restrito ao processo criminal, não sendo estendido a este outro tipo de processo sancionatório
Como o Tribunal disse no Acórdão n.º 581/2004 (disponível, como os demais citados sem outra indicação em www.tribunalconstitucional.pt), a propósito de acusação semelhante, “a posição do arguido está garantida, não apenas, em primeiro lugar, nos limites das especificidades do processo administrativo, e, depois, na possibilidade de os destinatários da decisão promoverem a sua apreciação judicial, com todas as garantias inerentes ao processo jurisdicional [...]. Em suma: não só o ato em causa não é de molde a pôr logo em questão a imparcialidade do decisor, como a garantia constitucional dos direitos de audiência e de defesa em processo contra-ordenacional (n.º 10 do artigo 32.º da Constituição) não pode comportar a consagração de um princípio da estrutura acusatória do processo idêntico ao que a Constituição reserva, no n.º 5 do artigo 32.º, para o “processo criminal”, como, ainda – e, numa certa perspetiva, decisivamente –, a posição do arguido está garantida pela possibilidade de recurso jurisdicional. O n.º 10 do artigo 32.º da Constituição não é, pois, desrespeitado só pelo mero facto de não serem diferentes os funcionários que confirmam o auto de notícia e proferem a decisão final”.
Se isto é assim quando a identidade entre o autor da investigação ou do impulso processual e o da decisão respeita à pessoa física, sê-lo-á, por maioria de razão quando a confusão ou não separação de poderes ou funções no âmbito do mesmo processo é meramente orgânica, como no caso sucede.
Não se ignora que, em alguns regimes especiais, sem subtrair o processamento e decisão primária à esfera da Administração, se estabelece diferenciação de funções ou competências no seio do processo de contraordenação, que pode ir ao ponto de a entidade administrativa competente para a decisão não integrar a autoridade administrativa competente para investigação (Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contraordenações, pág. 119). É solução que cabe na discricionariedade legislativa, mas que não decorre das garantias constitucionais relativas ao processo de contraordenação, garantida que está a possibilidade de o arguido ser ouvido e se defender antes da decisão administrativa sancionatória e a impugnação desta em todos os seus aspetos lesivos, perante um tribunal independente e imparcial e com plena jurisdição, mediante um processo contraditório.
7. É certo que desde logo decorre do princípio do Estado de Direito, proclamado no artigo 2.º da Constituição, que o processo de contraordenação tem de ser um “processo justo” em todas as suas etapas, nessa exigência se incluindo que a estrutura organizatória e a configuração normativa do processo (bem como o seu concreto desenvolvimento) permitam que quem investiga e decide na fase administrativa reúna requisitos de isenção e imparcialidade e possa ser visto como tal. Só assim o poder público se legitima como ordenado ao fim de garantir a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a justiça e a segurança, elementos cardeais do entendimento contemporâneo do princípio.
Todavia, a intensidade das vinculações neste domínio é variável em função da natureza do poder exercido, do tipo de ilícito e da potencialidade lesiva da atuação do poder público. A imparcialidade que se exige da Administração – e que é consagrada no artigo 266.º da Constituição, devendo a conformação dos procedimentos e da organização administrativa ser ordenada a assegurar a observância do princípio – não tem as mesmas consequências organizatórias que decorrem do “direito a um juiz imparcial”. De modo genérico, o respeito pelo princípio da imparcialidade administrativa determina que todos os factos e interesses relevantes segundo a norma jurídica sejam ponderados pelo decisor e proíbe que outros que não esses sejam considerados na decisão. Enquanto princípio material vinculativo da Administração, o princípio em causa cumpre basicamente três funções: (i) os interessados podem confiar em que os seus assuntos submetidos à apreciação da Administração merecerão uma decisão imparcial; [ii] o titular do órgão ou agente deve precaver-se contra a hipótese de, perante conflito de interesses, a sua decisão ser considerada violadora dos seus deveres pessoais e funcionais; (iii) a Administração deve, enquanto organização, acautelar-se de modo a que, em caso de conflitos de interesses, as suas decisões não corram o risco de não serem cumpridas ou aceites (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição …., Vol. II, pág. 803). É seu instrumento ou “guarda avançada”, no plano subjetivo, o regime de impedimentos, suspeições e escusas, não competindo aqui dizer se, no processo de contraordenação, há de recorrer-se, neste domínio, às regras do procedimento administrativo ou do processo penal (Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, loc. cit., pg. 120).
Mas, diversamente da imparcialidade judicial, a imparcialidade da Administração (das “autoridades administrativas” na terminologia do RGCO) não implica a neutralidade do decisor. As “autoridades administrativas” ainda quando aplicam sanções em ilícito de mera ordenação social não dirimem conflitos de interesses púbicos e privados: prosseguem o(s) interesse(s) público(s) postos pela lei a seu cargo. Quer as que investigam, quer as que são chamadas a aplicar a sanção. E isso mesmo não pode deixar de considerar-se representado pelo legislador constituinte quando acolheu o ilícito de mera ordenação social com a característica essencial de a “primeira palavra” sancionatória pertencer, em princípio, à Administração e se absteve de sujeitar o respetivo processo ao princípio do acusatório.
Não pode, assim, subscrever-se a afirmação de que, em ordem a respeitar a exigência de um processo equitativo, a entidade com poderes de fiscalização e sancionatórios deva deter uma estrutura independente em relação às entidades que prosseguem o interesse público primário, devendo ainda ser dotada de autonomia técnica e financeira, que é a solução consentida ao legislador pela decisão recorrida. Essa para-judicialização da fase administrativa do processo – que, aliás, só atingiria totalmente os seus objetivos se a decisão pertencesse sistematicamente a uma autoridade administrativa independente –, com uma entidade administrativa com poderes de promoção da pretensão punitiva e outra, sem ligação com o interesse público primário objeto de tutela contraordenacional, com poderes de decisão e aplicação da sanção, não é indispensável a assegurar a possibilidade de defesa e a efetiva contribuição do interessado para a formação da decisão que lhe diz respeito.
8. Por outro lado, a afirmação de que o processo deve ser equitativo no seu todo e não apenas na fase de recurso é, em si mesmo, verdadeira. Mas já não quando pressupõe o monismo entre a fase administrativa e a fase judicial do processo de contraordenação, equiparando funcionalmente a decisão sancionatória a uma sentença de 1ª instância, de tal modo que se devam transpor as exigências constitucionais inerentes à conformação dos meios de tutela jurisdicional para a estrutura organizatória e conformação processual da fase administrativa do processo de contraordenação. A jurisprudência constitucional invocada em sentido contrário, designadamente os Acórdãos n.ºs 469/97 (contraditório, após “questão nova” suscitada pelo Ministério Público) e 278/99 (direito de defesa perante irregularidade da notificação), não versa sobre o tema aqui especificamente em apreço, das exigências organizatórias e da estrutura acusatória do processo nessa fase.
Esta estruturação acusatória do processo na fase administrativa ou de entrega do poder de decisão nessa fase a “terceiro desinteressado” é tanto menos necessária se atendermos ao caráter “provisório” da decisão administrativa face à natureza da impugnação judicial, que consubstancia uma verdadeira “transferência da questão do domínio da administração para o juiz, no dizer do Bundesgerichtshof alemão” (na expressão de Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit., pág. 295).
Em conclusão, o referido regime de competência do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia e respetiva Direção não viola o princípio do processo equitativo nem o princípio da imparcialidade.”
Os argumentos aduzidos são transponíveis para a presente situação.
Nestes termos, reiterando-se a fundamentação aduzida no aludido Acórdão n.º 595/2012, renova-se o juízo de não inconstitucionalidade aí plasmado.
III - Decisão
6. Pelo exposto, concedendo provimento ao recurso, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma que resulta da interpretação do n.º 1 do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 282/2003, de 8 de novembro, em conjugação com a alínea n) do n.º 3 do artigo 27.º dos Estatutos da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 235/2008, de 3 de dezembro, no sentido de que compete ao Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa instruir os processos por contraordenações previstas naquele primeiro diploma legal e à Direção desse Departamento a aplicação das correspondentes sanções;
b) Ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o agora decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 22 de janeiro de 2013. – Catarina Sarmento e Castro – Maria José Rangel de Mesquita – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral