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Proc. nº 484/01 Acórdão nº 28/02
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 209 e seguintes, decidiu-se não tomar conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por M... e outros, nos termos a seguir transcritos:
“Sendo o presente recurso fundado na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, constituem seus pressupostos:
– que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma (ou de uma determinada interpretação da norma) que pretende ver apreciada por este Tribunal;
– que essa norma (ou a norma com essa interpretação) tenha sido aplicada, como ratio decidendi, na decisão recorrida, não obstante a acusação de inconstitucionalidade. E, de acordo com o nº 2 do artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional, o recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer. Tal como delimitado pelos recorrentes no requerimento em que responderam ao despacho de aperfeiçoamento, o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade teria como objecto a norma do nº 1 do artigo 46º do Código de Expropriações (aprovado pelo Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de Dezembro), na sua «interpretação extensiva ou eventual aplicação analógica feita pelo Supremo Tribunal de Justiça ao não admitir recurso do acórdão do Tribunal da Relação
[...], quando é certo que o acórdão da Relação não consistia já na decisão final de fixação do valor da indemnização por expropriação objecto do processo, mas consistia apenas em decisão da questão sobre o modo de proceder à actualização da indemnização já anteriormente fixada e quantificada [...], sendo que [...] o acórdão da Relação tinha sido proferido em recurso de agravo e não de apelação, do mesmo modo que o Supremo se pronunciava em agravo de 2ª instância [...], e o limite [...] do citado art.º 46º-1 CExp. quando interpretado no seu sentido correcto de só ser aplicável à decisão final de fixação do valor da indemnização por expropriação objecto do processo, e não a qualquer outra, norma esta que, porque excepcional, não é susceptível de aplicação analógica, por força do art.º
11º do CCiv. e aplicar a norma do art.º 46º-1 CExp. fora da referida situação
(por sua interpretação extensiva ou quiçá aplicação analógica) retiraria aos expropriados [...] o direito ao normal recurso de agravo de 2ª Instância para o STJ do acórdão da Relação, após a prolação deste, já em recurso de agravo de 1ª Instância, negando-lhes o legítimo acesso ao Direito com tutela efectiva, em desigualdade com os demais cidadãos [...]». Ora, em primeiro lugar, importa reconhecer que a questão suscitada pelos recorrentes, quer «durante o processo», quer no requerimento agora apresentado junto do Tribunal Constitucional, não configura uma autêntica questão de inconstitucionalidade normativa. Na verdade, como a seguir se explicará, o recorrente imputa o vício de inconstitucionalidade à própria decisão judicial. Expressaram-se assim os recorrentes no requerimento apresentado perante o Supremo Tribunal de Justiça, através do qual, nos termos do artigo 700º, nº 3, do Código de Processo Civil, submeteram a acórdão da conferência o despacho do Conselheiro Relator que julgou findo o recurso por eles interposto, por o considerar inadmissível – trata-se da peça processual em que os recorrentes afirmam ter suscitado a questão de inconstitucionalidade (cfr. fls. 150 e seguintes e requerimento de fls. 202):
«[...]
7. E foi nesse modo de exercer as operações materiais – que têm de tomar em conta datas (‘a quo’ e ‘ad quem’) e taxas que se cometeu erro.
8. E este erro – que já nada tem a ver com a quantificação da indemnização – tal como a refere o Código das Expropriações, em qualquer das suas versões – a subsequente actualização do que foi quantificado e a maneira correcta de proceder a essas contas. E aqui é que a douta decisão da Relação se enganou manifestamente, ou seja, depois da quantificação. Deste modo:
9. Sabendo todos que a norma de supressão de um grau de jurisdição, estabelecida, então, pelo artº 46º-1 do DL nº 845/76, de 11.12 é uma norma manifesta excepcional, ela nunca poderá ser aplicada por analogia a outras situações (CCiv. artº 11º). Mas, mais ainda:
10. Admitir aplicar esta norma a uma situação diferente daquela para que a lei a prevê seria, quer a nível da interpretação ou da aplicação analógica da mesma norma, quer a pura base da decisão do Supremo sem tal norma (o que, em princípio, seria impensável) uma aplicação e decisão inteiramente inconstitucional.
[...]». [...]
E, no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, disseram os recorrentes [...]:
«[...] a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie é, a nível da sua aplicação e interpretação, a do art.º 46-1 do Código de Expropriações [...]». [...]
Pode ainda ler-se no requerimento em que responderam ao despacho de aperfeiçoamento [...]:
«[...]
* a interpretação que consideram inconstitucional [...] é a sua interpretação extensiva ou eventual aplicação analógica feita pelo Supremo Tribunal de Justiça
[...]
* o limite [...] do citado art.º 46º-1 CExp. quando interpretado no seu sentido correcto de só ser aplicável à decisão final de fixação do valor da indemnização por expropriação objecto do processo, e não a qualquer outra, norma esta que, porque excepcional, não é susceptível de aplicação analógica, por força do art.º
11º do CCiv.
* e aplicar a norma do art.º 46º-1 CExp. fora da referida situação (por sua interpretação extensiva ou quiçá aplicação analógica) retiraria aos expropriados
[...] o direito ao normal recurso de agravo de 2ª Instância para o STJ do acórdão da Relação [...]».
Tal significa, nas circunstâncias do caso, que os recorrentes impugnam a aplicação ao caso dos autos, tal como foi feita na decisão recorrida, da norma do nº 1 do artigo 46º do Código de Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº
845/76, de 11 de Dezembro. O que os recorrentes verdadeiramente questionam é o processo interpretativo que permitiu ao tribunal recorrido concluir que no caso dos autos não seria admissível o recurso da decisão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça. Tal processo interpretativo efectuado pelo tribunal a quo, por não ter respeitado – segundo a concepção dos recorrentes – os princípios gerais de interpretação das leis e a proibição da aplicação analógica de normas excepcionais, implicaria a inconstitucionalidade da própria norma do Código das Expropriações que exclui o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, quando objecto de tal interpretação, por ofensa dos princípios constitucionais da igualdade e do acesso ao direito. Considerando ter havido um erro de julgamento, os recorrentes invocam afinal a inconstitucionalidade da decisão judicial que considerou inadmissível o recurso ao abrigo de determinada norma jurídica, e não a inconstitucionalidade da norma jurídica em que tal decisão se fundamentou. Por outras palavras, o que vem impugnado pelos recorrentes não é a norma que consagra a não admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que tenha por objecto decisão da Relação fixando a indemnização devida, em si mesma considerada – norma essa, aliás, já por diversas vezes julgada não inconstitucional por este Tribunal –, mas antes a decisão judicial que a aplicou, por via de um processo interpretativo que eles consideram conduzir, na sua aplicação concreta, à violação de princípios constitucionais. No caso dos autos, não está pois em causa uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa mas antes uma questão de inconstitucionalidade da própria decisão recorrida ou do acto de julgamento. Ora, tal questão – por não respeitar a uma inconstitucionalidade normativa, mas antes a uma inconstitucionalidade da própria decisão judicial – excede os poderes de cognição do Tribunal Constitucional, tendo em conta que o nosso sistema não admite o denominado recurso de amparo, maxime na modalidade de amparo em relação a decisões jurisdicionais directamente violadoras da Constituição. De todo o modo, e mesmo que se entendesse que estaria ainda em causa a apreciação de uma certa dimensão interpretativa da norma questionada, sempre se deverá considerar excluída da competência do Tribunal Constitucional a apreciação de interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação de princípios constitucionais. No caso dos autos, os recorrentes pretendem afinal que este Tribunal aprecie e revogue uma decisão que qualificam de «errada» (cfr. nºs 7 e 8 do requerimento apresentado junto do Supremo Tribunal de Justiça, a fls. 153), por referência a uma interpretação da norma «no seu sentido correcto» (cfr. resposta ao despacho de aperfeiçoamento, a fls. 203-204). Esta pretensão dos recorrentes excede obviamente, como se disse, a competência do Tribunal Constitucional. Como o Tribunal Constitucional tem afirmado repetidamente, o controlo de constitucionalidade atribuído a este Tribunal só pode ter por objecto normas jurídicas e não também actos jurídicos de outra natureza, como as decisões judiciais. Disse este Tribunal, por exemplo, no acórdão nº 353/86 (publicado no Diário da República, II, nº 83, de 9 de Abril de 1987, p. 4573 ss):
«Ao sistema de fiscalização da constitucionalidade instituído pela nossa lei fundamental estão, assim, apenas sujeitos os actos do poder normativo (lato sensu), ou seja, aqueles que contêm uma ‘regra de conduta’ ou um ‘critério de decisão’ para os particulares, para a Administração e para os tribunais. Escapam a esse controle de constitucionalidade, por isso, as decisões judiciais, os actos da Administração sem carácter normativo (actos administrativos propriamente ditos) e os ‘actos de governo’ em sentido estrito ou ‘actos políticos’. Em boa verdade, aí já não se estará perante ‘actos normativos’, sim em presença de actos de aplicação, execução ou simples utilização de normas – seja de normas infraconstitucionais, seja mesmo de normas constitucionais [...]. Assim, pois, sendo a competência deste Tribunal restrita ao julgamento de questões de inconstitucionalidade de normas jurídicas (cf. art. 280º, nº 6, da Constituição), não pode ele censurar uma decisão judicial que, por eventual erro de julgamento, haja violado directamente uma norma ou princípio constitucional».
Em síntese, sendo a competência do Tribunal Constitucional restrita ao julgamento de questões de inconstitucionalidade normativa, não pode este Tribunal censurar uma decisão judicial que, por eventual erro de julgamento, haja violado directamente uma norma ou princípio constitucional. Finalmente, e num último esforço de encontrar na resposta dos recorrentes a identificação de uma interpretação normativa do artigo 46º, nº 1, do Código das Expropriações que reputam de inconstitucional, dir-se-ia que essa interpretação
– apenas indicada por mera referência ao que consideram ser o «seu sentido correcto» – seria a de que «o preceito do artigo 46º, nº 1, do Código das Expropriações não determina só a inadmissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão da Relação que fixa o valor da indemnização por expropriação, mas determina também a inadmissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de outras decisões da Relação, designadamente, das que se pronunciam sobre a actualização do valor da indemnização por expropriação». Ora, a ser assim, também ao Tribunal Constitucional estaria vedado apreciar o objecto do recurso, pois faltaria um pressuposto processual do recurso previsto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC – a aplicação, pela decisão recorrida, da norma questionada com o sentido considerado inconstitucional pelo recorrente. Na verdade, quer o acórdão recorrido (o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31 de Maio de 2001), quer o despacho do Conselheiro Relator que esse acórdão veio confirmar (despacho de fls. 147-148), afirmaram de modo expresso que, no recurso então interposto pelos recorrentes para o Supremo Tribunal de Justiça, estava em causa uma decisão da Relação que fixou o valor da indemnização por expropriação (cfr., respectivamente, fls. 167 e 147, [...]). Isto é, a norma questionada pelos recorrentes não foi interpretada pelo tribunal a quo no sentido indicado pelos recorrentes e por eles reputado inconstitucional. Conclui-se, assim, que, no caso dos autos, não se encontram verificados os pressupostos processuais de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.”
2. Inconformados com a referida decisão sumária, M... e outros dela vieram reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo
78º-A da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 227 e seguintes).
Nesta reclamação, começa-se por salientar que o entendimento perfilhado na decisão sumária conduziria à inadmissibilidade de qualquer recurso que tivesse como objecto a apreciação da conformidade constitucional de “uma norma quando aplicada (interpretada ou usada por analogia) com um sentido eivado de inconstitucionalidade” (n.º s 1 a 4 da reclamação), procede-se depois à transcrição de aspectos considerados essenciais de certas peças processuais (n.º
5 da reclamação) e, por fim, aduzem-se os seguintes argumentos contra a decisão sumária:
a) Embora os recorrentes questionem o processo interpretativo que permitiu ao tribunal recorrido concluir que, no caso dos autos, não seria admissível o recurso da decisão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça, a inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 46º do Código das Expropriações não decorre tanto dos princípios gerais de interpretação e da proibição de aplicação analógica de normas excepcionais, mas da mesma interpretação e/ou aplicação analógica, estando portanto em causa, no presente recurso, a inconstitucionalidade da referida norma nessa interpretação e/ou aplicação (n.º s 6 a 8 da reclamação); b) Não é exacto que os recorrentes não tenham invocado expressamente a inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 46º do Código das Expropriações, já que o fizeram por referência a uma determinada interpretação dessa norma (n.º 9 da reclamação); c) Se bem que, aplicada a norma inconstitucional, se torne inconstitucional a própria decisão judicial, os recorrentes não pedem ao Tribunal Constitucional que declare a inconstitucionalidade do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, mas que aprecie a questão da inconstitucionalidade de uma norma, para tanto tendo recorrido daquele acórdão (n.º s 10 a 13, 16, 17,
20, 21, e 25 a 31 da reclamação); d) A questão suscitada pelos recorrentes nada tem a ver com uma outra questão já repetidamente julgada pelo Tribunal Constitucional, relativa à inadmissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da fixação definitiva da indemnização em expropriação por utilidade pública, pois que o que no presente caso se discute é “[...] saber se, para além dos casos que uma boa interpretação da norma faculta, é possível extravasar do seu sentido corrente para a sua aplicação a situações que excedem essa interpretação corrente, quer por uma pretendida interpretação extensiva da mesma a outros casos, quer pela sua aplicação analógica a outros casos” (n.º s 14 e 15 da reclamação); e) A questão colocada pelos recorrentes, na medida em que é uma questão de inconstitucionalidade normativa e não de inconstitucionalidade da própria decisão, não excede os poderes de cognição do Tribunal Constitucional, nem o recurso interposto é um recurso de amparo (n.º s
18 e 19); f) A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem aceitado a possibilidade de declarar inconstitucionais certas interpretações de normas, pelo que não pode afirmar-se, como se faz na decisão sumária, que o Tribunal Constitucional não tem competência para apreciar interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação de princípios constitucionais (n.º s 22 a 24 da reclamação); g) Conforme decorre da transcrição que se efectuou das peças processuais, o tribunal recorrido aplicou a norma do n.º 1 do artigo
46º do Código das Expropriações com o sentido que os recorrentes consideram inconstitucional (n.º s 32 a 34 da reclamação).
A recorrida não respondeu (fls. 252 v.º).
Cumpre apreciar.
III
3. Contrariamente ao afirmado nos n.º s 1 a 4 da presente reclamação, o entendimento perfilhado na decisão sumária não conduz à inadmissibilidade de qualquer recurso que tenha como objecto a apreciação da conformidade constitucional de “uma norma quando aplicada (interpretada ou usada por analogia) com um sentido eivado de inconstitucionalidade”, para usar as palavras dos reclamantes.
Na verdade, afirmar, como se faz na decisão sumária reclamada, que o objecto do recurso interposto para este Tribunal pelos ora reclamantes não se traduz numa questão de constitucionalidade normativa, não significa rejeitar a possibilidade de apreciação, por este Tribunal, de normas numa certa dimensão interpretativa – possibilidade que aliás se dá como assente no nº 8 da decisão sumária reclamada, a fls. 218. Significa apenas que este Tribunal não está vinculado a qualificar uma questão de constitucionalidade da própria decisão como uma questão de constitucionalidade normativa – e, como tal, a conhecer de um recurso –, pela mera circunstância de os recorrentes, no requerimento de interposição do recurso ou noutras peças processuais, pedirem expressamente a apreciação da conformidade constitucional de uma norma, ou de uma norma numa certa interpretação.
A fronteira entre a norma e a decisão é problemática, especialmente nos casos em que se questiona uma determinada dimensão interpretativa de uma norma. Mas a dilucidação dessa fronteira não pode depender da qualificação do objecto do recurso a que procedam os recorrentes, sob pena de ao Tribunal Constitucional só ser possível decidir não tomar conhecimento do objecto de um recurso nos casos em que, por erro clamoroso, o recorrente impute a inconstitucionalidade à própria decisão, não indicando a este Tribunal qualquer norma susceptível de ser apreciada à luz da Constituição.
No caso dos autos, não se está perante um erro clamoroso desse tipo. A este propósito os reclamantes argumentam que “não é exacto que os recorrentes não tenham invocado expressamente a inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 46º do Código das Expropriações, já que o fizeram por referência a uma determinada interpretação dessa norma” (supra, 2., b)). Tal argumento é irrelevante. É óbvio que os ora reclamantes não imputaram expressamente o vício da inconstitucionalidade à própria decisão recorrida, nem pediram expressamente ao Tribunal Constitucional que declarasse a inconstitucionalidade dessa decisão. Para se chegar a esta conclusão também não seria necessário proceder às transcrições de fls. 229 a 237, elaboradas de acordo com o “método da douta decisão sumária” (n.º 5 da reclamação), mas sem se proceder ao respectivo enquadramento argumentativo.
Mas demonstrou-se na decisão sumária que, apesar da não imputação expressa do vício da inconstitucionalidade à própria decisão recorrida (o mesmo
é dizer, apesar do pedido expresso, ao Tribunal Constitucional, de apreciação da inconstitucionalidade de uma norma, aplicada de certo modo), era ainda a inconstitucionalidade da decisão recorrida que estava em causa no presente
recurso, não podendo portanto dele conhecer-se.
Cabia agora aos reclamantes demonstrar que a aparência coincidia com a realidade, ou seja, que a aparente questão de constitucionalidade normativa o era efectivamente. Para tanto, seria necessário destruir a fundamentação da decisão sumária, o que não ocorreu, como se explicará.
4. Relativamente ao argumento segundo o qual “a inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 46º do Código das Expropriações não decorre tanto dos princípios gerais de interpretação e da proibição de aplicação analógica de normas excepcionais, mas da mesma interpretação e/ou aplicação analógica”
(supra, 2., a)), carece o mesmo de fundamentação. Basicamente, os reclamantes limitam-se a negar a conclusão a que se havia chegado na decisão sumária, não se esforçando sequer por demonstrar a falta de fundamento das suas premissas.
De qualquer modo, se o que está em causa, no presente recurso, é a conformidade constitucional da interpretação acolhida pelo tribunal recorrido, e não a própria decisão deste de não admitir um recurso, por que motivo na resposta ao despacho de aperfeiçoamento (fls. 202 e seguintes) a inconstitucionalidade aparece fundada na circunstância de a norma do n.º 1 do artigo 46º do Código das Expropriações ter sido aplicada a uma situação estranha ao seu âmbito de aplicação? Tal circunstância, a seguir-se a tese dos reclamantes de que o objecto do recurso seria a interpretação normativa e não a decisão, não teria qualquer relevo para a apreciação do dito objecto, não se percebendo por que motivo aparece longamente referenciada na mencionada peça processual, bem como no requerimento de fls. 150 e seguintes.
Na medida em que, na decisão sumária, as conclusões – se bem que erróneas, do ponto de vista dos reclamantes – aparecem antecedidas de fundamentos, seria necessário, para que a argumentação dos reclamantes fosse minimamente convincente, procurar, pelo menos, explicar o motivo da longa referenciação da mencionada circunstância. Não houve da parte dos reclamantes, como se disse, qualquer tentativa nesse sentido.
Não procede, assim, o alegado supra, 2., a).
5. O mesmo se diga, aliás, do argumento que pode assim resumir-se: se bem que, aplicada a norma inconstitucional, se torne inconstitucional a própria decisão judicial, os recorrentes não pedem ao Tribunal Constitucional que declare a inconstitucionalidade do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, mas que aprecie a questão da inconstitucionalidade de uma norma, para tanto tendo recorrido daquele acórdão (supra, 2., c)).
Os reclamantes não fundamentam minimamente tal argumento.
É óbvio – e já foi dito (supra, 3.) – que os recorrentes não pediram expressamente ao Tribunal Constitucional que declarasse a inconstitucionalidade do acórdão do Supremo; é óbvio também que, para obterem qualquer declaração de inconstitucionalidade de uma norma, os recorrentes sempre teriam de recorrer de uma decisão judicial. Mas não é disto que se trata e se tratou na decisão sumária, cuja fundamentação competiria agora derrubar. Do que se trata (e se tratou) é de saber se ainda se está perante uma questão de constitucionalidade normativa quando se questiona a aplicação de uma norma a um caso concreto, centrando-se o problema da inconstitucionalidade na própria extensão dessa norma a uma situação não abrangida na sua letra.
A esta questão não dão os reclamantes resposta, pelo que o alegado supra, 2., c) em nada contraria a conclusão da decisão sumária de que se não está perante uma questão de constitucionalidade normativa.
6. O alegado supra, 2., d), longe de contrariar a referida conclusão da decisão sumária, confirma-a inteiramente, na medida em que reforça as respectivas premissas.
Na verdade, são os próprios reclamantes a admitir que, no caso dos autos, do que se trata é de “[...] saber se, para além dos casos que uma boa interpretação da norma faculta, é possível extravasar do seu sentido corrente para a sua aplicação a situações que excedem essa interpretação corrente, quer por uma pretendida interpretação extensiva da mesma a outros casos, quer pela sua aplicação analógica a outros casos”! A questão de constitucionalidade aparece nitidamente centrada (como se disse na decisão sumária: cfr. n.º 9.1., fls. 221) no “processo interpretativo que permitiu ao tribunal recorrido concluir que no caso dos autos não seria admissível o recurso da decisão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça”. Isto é, aparece centrada, não na conformidade constitucional da norma obtida através do processo interpretativo usado pelo tribunal recorrido, mas no próprio processo interpretativo e, portanto, no acto de julgamento.
Assim sendo, e embora a questão suscitada pelos recorrentes possa nada ter a ver com uma outra questão já repetidamente julgada pelo Tribunal Constitucional, relativa à inadmissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da fixação definitiva da indemnização em expropriação por utilidade pública (cfr., ainda, supra, 2., d)), certo é que essa questão também não é uma questão de constitucionalidade normativa.
Confirma-se, assim, a conclusão da decisão sumária de que o objecto do presente recurso não é uma questão de constitucionalidade normativa, mas de constitucionalidade da própria decisão.
7. O argumento segundo o qual a questão colocada pelos recorrentes, na medida em que é uma questão de inconstitucionalidade normativa e não de inconstitucionalidade da própria decisão, não excede os poderes de cognição do Tribunal Constitucional, nem o recurso interposto é um recurso de amparo (supra,
2., e)), como é evidente, só procederia se os ora reclamantes tivessem infirmado a conclusão da decisão sumária de que o recurso por eles interposto para este Tribunal tem como objecto a conformidade constitucional da própria decisão recorrida.
Não tendo sido infirmada tal conclusão, logicamente que se está perante um objecto para cuja apreciação o Tribunal Constitucional não tem competência.
Improcede, assim, o alegado supra, 2., e).
8. Alegam ainda os reclamantes que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem aceitado a possibilidade de declarar inconstitucionais certas interpretações de normas, pelo que não pode afirmar-se, como se faz na decisão sumária, que o Tribunal Constitucional não tem competência para apreciar interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação de princípios constitucionais (supra, 2., f)).
Dificilmente se alcança a relevância deste argumento para a decisão da presente reclamação. A competência do Tribunal Constitucional para a apreciação da conformidade constitucional de normas, numa certa interpretação, não implica a competência do Tribunal Constitucional para proceder à interpretação autêntica de leis. Repetidamente tem o Tribunal Constitucional afirmado que apenas lhe cabe, nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, aferir a conformidade constitucional de normas (ou de normas, numa certa interpretação) aplicadas em decisões judiciais, sem curar de saber se o caso concreto preenchia a previsão de tais normas, isto é, sem curar de saber se o processo interpretativo utilizado pelos tribunais – que conduziu à aplicação dessas normas ao caso concreto – foi o mais correcto.
Assim sendo, a decisão sumária não contraria qualquer jurisprudência constante, quando nela se afirma que o Tribunal Constitucional não tem competência para apreciar interpretações tidas por erróneas: no caso dos autos, tal equivale a dizer que o Tribunal Constitucional não tem competência para sindicar, sob o ponto de vista da respectiva constitucionalidade, o próprio processo interpretativo usado pelo tribunal recorrido – e, nessa medida, a subsunção do caso à norma –, que é afinal o que os reclamantes pretendem.
Não procede, assim, também o alegado supra, 2., f).
9. Finalmente, alegam os ora reclamantes que, conforme decorre da transcrição que efectuaram das peças processuais, o tribunal recorrido aplicou a norma do n.º 1 do artigo 46º do Código das Expropriações com o sentido que consideram inconstitucional (supra, 2., g)).
Ao remeterem para o bloco de transcrições constantes de fls. 229 a
237, sem em relação a elas indicarem as que concretamente indiciam a alegada aplicação da referida interpretação normativa, e sem minimamente contrariarem a argumentação constante do n.º 9.3. da decisão sumária, a fls. 224-225 (por exemplo, a de que no acórdão recorrido se afirmou de modo expresso que no recurso então interposto para o Supremo estava em causa uma decisão da Relação que fixou o valor da indemnização), não logram os reclamantes aduzir qualquer argumento que fundadamente obste à manutenção, nessa parte, da decisão sumária.
Improcede, igualmente, o alegado supra, 2., g).
III
10. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação, mantendo-se a decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 18 de Janeiro de 2002 Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida