Imprimir acórdão
Proc. nº 720/99
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. A Assembleia Municipal de Lagos (ora recorrente) recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo da decisão do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, de 10 de Fevereiro de 1998, pela qual se decidiu anular a deliberação daquela Assembleia Municipal, de 10 de Novembro de 1994, que aprovou o Plano Director Municipal de Lagos. A Concluir a alegação que apresentou naquele Tribunal, disse a recorrente:
'A douta decisão ora recorrida, ao «anular a deliberação recorrida, de 10/11/94, que aprovou a nova versão do PDM de Lagos, por considerar que foram violados os artigos 13º, 14º e 15º do DL 208/82», devido à falta de «sujeição a novo inquérito público», embora analisasse correctamente toda a matéria, veio a concluir erradamente e acabou por, ela própria e nessa medida, violar não apenas os três artigos mencionados, mas diversas outras disposições legais, consagradas nesse e nos demais diplomas aplicáveis ao ordenamento do território. Em primeiro lugar, olvidou que a proposta final do PDM, contendo as correcções indicadas na alteração elaborada pela CCRALG foi aprovada por esta Assembleia Municipal, em 19/10/94, já nos termos do art. 15º do DL 69/90, de 2/3 e não das disposições do DL 208/82 indicadas, «designadamente no que se refere ao inquérito público». Este sim, é que respeitou a disciplina do art. 13º do DL
208/82, ficando cumprida também essa formalidade, entre as demais «exigidas pelo DL nº 69/90», tal como a Resolução do Conselho de Ministros nº 28/95 expressamente refere no seu preâmbulo. Depois considerou ser necessário um «novo inquérito público» no decorrer de um
único processo de elaboração de plano director municipal, quando a lei (DL
560/71, DL 208/82, D. Reg. 91/82 e DL 69/90) sempre se referiu a um único momento de «inquérito público», independentemente das alterações que o projecto vá sofrendo, tal como o legislador (DL 69/90, 15º), a doutrina (Luís Perestrelo de Oliveira, o.c., p. 60, nota 10, António Duarte de Almeida, o.c., p. 187, nota
11) e a própria decisão ora recorrida (p. 14, no final) têm demonstrado. Mas o mais grave é se admitir que haverá lugar a segundo, terceiro e por aí adiante «inquérito público», de cada vez que – apresentado como «versão final», por todos os pareceres terem já sido emitidos – o projecto sofre correcções, alterações ou revisões, no decorrer da elaboração de um plano municipal de ordenamento do território. Isto contrariaria flagrantemente a própria CRP (art.
6º. 1 e 66.2.b), o art. 39º.2.d) do DL 100/84, 29/3, o art. 15º do DL 208/82, de
26/5 e os artigos 13º.1 e 15 do DL 69/90, de 2/3, pois, na prática, significaria transferir para o público, uma entidada abstracta, a competência para
«deliberar», concretamente atribuída à assembleia municipal. Nestes termos e nos mais de direito, pelas razões atrás apontadas, se considera que a douta decisão recorrida violou: a) os artigos 13º, 14º e 15º do DL 208/82, de 26/5 e os artigos 14º e 15º do DL
69/90, de 2/3, ao confundir os objectivos e as exigências legais quanto ao
«inquérito público» e à «aprovação» de um plano director municipal; b) os DL 208/82, D. Reg. 91/82 e DL 69/90, que sempre se referem a um único momento de «inquérito público», além de se contradizer (pág. 14, no final); c) e a própria CRP (6º.1 e 66º.2.b), o art. 39º.2.d) do DL 100/84, 29/3, o art.
15º do DL 208/82 e os artigos 13º, 1 e 15º do DL 69/90, ao retirar à assembleia municipal a competência para deliberar'.
2. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 23 de Fevereiro de 1999, decidiu negar provimento recurso.
3. Inconformado com esta decisão a recorrente começou por arguir a sua nulidade e pedir a sua reforma, tendo então dito, a concluir, designadamente, o seguinte:
'De qualquer forma, desde já se suscita a ilegalidade e inconstitucionalidade dos artigos 14º. 2, 3 e 18º, nº 2 do DL 208/82, 13º a 15º e 31º do DL 69/90 e 2 e 62º.1 da própria Constituição, na interpretação que deles foi feita no douto acórdão, por violação dos princípios fundamentais consagrados nos referidos art.s 6º, 1, 65º.2.c), 66º.2.b), 80º.a), 202º.2, 203º, 235º.2, 241º e 277º da CRP'.
4. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 21 de Setembro de 1999, decidiu desatender as arguidas nulidades bem como a requerida reforma do acórdão reclamado.
5. É nesta sequência que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art.
70º da LTC, o presente recurso. Pretende a recorrente ver apreciada a
'inconstitucionalidade da norma dos artigos 13º, 14º, 15º e 18º, nº 2 do Decreto-Lei nº 208/82, de 26 de Maio, e dos artigos 14º, 15º e 31º do Decreto-Lei nº 69/90, de 2 de Março, com a interpretação com que foram aplicados na decisão recorrida', por alegada violação dos princípios consagrados nos artigos 6º, nº 1; 65º, nº 2, alínea c); 66º, nº 2, alínea b); 80º, alínea a);
202º, nº 2; 203º; 235º, nº 2; 241º e 277º da Constituição'.
6. Já neste Tribunal foi a recorrente notificada para alegar, o que fez, tendo concluído nos seguintes termos:
'1. O douto acórdão do STA considera, tal como já ocorrera na decisão para aí recorrida, que o momento do «inquérito público», regulado no art. 13º do Dec. Lei nº 208/82, de 26 de Maio, se destina a conferir aos «proprietários do solo
... o direito de exigir que os seus interesses fossem tomados em consideração e que a administração reflectisse sobre eles.
2. Nada disso nos diz o referido artigo, pelo que tal interpretação extensiva contraria o princípio constitucional da subordinação da Administração Pública «à Constituição e à lei», nada podendo fazer de modo que não esteja expresso na lei.
3. No caso – tal como no art. 14º do Dec. Lei nº 69/90, de 2 de Março -, a lei ou nada diz, ou refere que a Câmara Municipal «pondera» os resultados do inquérito público, não havendo nova consulta à população.
4. Procedendo de forma diversa, isto é, com o sentido que o douto acórdão retirou da norma neles contida, estes dois artigos 13º e 14º, relativos ao
«inquérito público», seriam inconstitucionais, por contrariarem o disposto no art. 266º, nº 2 da CRP.
5. Na situação em apreço, um único proprietário de um terreno abrangido pelo PDM de Lagos veio interpor recurso da versão final aprovada, ratificada e publicada, o que, para o douto acórdão, terá representado «profundas divergências de opinião» e «insanáveis», consubstanciando precisamente a previsão do art. 14º do DL 208/82.
6. Trata-se de um pressuposto errado, pois a opinião contrária de um único proprietário de solo – e unicamente a propósito do seu prédio e do seu interesse privado – jamais – poderá preencher o conceito de «divergências» com as
«soluções fundamentais» referidas neste art. 14º.
7. Essas «soluções fundamentais» respeitam, naturalmente, ao todo que é o PDM e não apenas ao que, nesse plano, possa Ter sido decidido para uma área em que se ache abrangido o terreno dum particular, matéria que só caberia num processo de loteamento urbano ou de aprovação de empreendimento turístico.
8. Com esse sentido dado pelo douto acórdão, colocando o interesse particular acima dos objectivos gerais – e tanto quanto possível abstractos – do PDM, a norma do art. 14º do DL 208/82 seria igualmente inconstitucional, por sobrepor o
«poder económico ao poder político democrático», contrariando o princípio fundamental contido no art. 80º, a) da CRP.
9. Pretende ainda o douto acórdão que o plano «proposto à assembleia municipal para aprovação» - art.s 15º dos DL 208/82 e 69/90 – tenha obtido, antes, consenso dos «proprietários das fracções do solo objecto de Planos», através do
«direito de serem ouvidos no processo».
10. Seria como que uma «aprovação» desses proprietários, prévia à aprovação da Assembleia Municipal que, assim, passaria a Ter uma função mais de
«ratificação», agora conferida ao «poder central».
11. Na prática, uma tal norma, contida na interpretação que o douto acórdão assim fez dos artigos 15º dos dois diplomas em apreço, retiraria às autarquias locais o poder de prosseguir os «interesses próprios das populações respectivas», através da elaboração e aprovação dos planos de ordenamento do território municipal, que a Constituição consagrou no seu art. 235º, nº 2.
12. E, sendo o PDM também um regulamento, como a doutrina e a douta decisão recorrida também defendem, acabando por ser os donos dos terrenos a impor o texto que melhor defendesse os seus interesses pessoais, tal noção, retirada da mesma interpretação feita desses art.s 15º, feriria também o «poder regulamentar» contido no art. 241º da Constituição.
13. Sobre a opção do Município de lagos em prosseguir a elaboração do plano «nos termos da legislação agora revogada», esses termos serão, obviamente, os formalismos, principalmente os prazos, mas não o espírito da lei, que esse teria de ser o agora aprovado.
14. Se acaso fosse possível preencher uma hipotética lacuna na lei agora revogada, mas ainda adoptada – pela opção permitida no art. 31º do DL 69/90 -, haveria, tão somente, que recorrer a este diploma para nele encontrar resposta para tal «lacuna».
15. Porém, socorrendo-se do art. 10º do Código Civil, o douto acórdão quis decidir «segundo a norma aplicável aos casos análogos». Mas, em vez de seguir o regime consagrado na nova lei para os «inquéritos públicos», onde expressamente se dizia como proceder, socorreu-se de uma situação que, na lei antiga, lhe pareceu análoga, mas nem o era.
16. Assim, deixou o douto acórdão de interpretar os referidos art.s 14º e 15º do DL 208/82 e 31º do DL 69/90, à luz do que a Constituição lhe exige, através dos princípios da legalidade e da independência, consagrados nos artigos 202º e 203º da Constituição.
17. Esta inconstitucionalidade do art. 202º resulta, indirectamente, da posição tomada pelo douto acórdão, sensibilizado pela posição defendida pelo Banco e instintivamente carreando argumentos para defendê-la, em vez de se reportar friamente à lei, que dizia o que deveria ser feito e nada dizia quando nada mais havia para fazer.
18. Este tomar partido pelos interesses do Banco, ao ponto de interpretar assim a norma contida nos artigos 13º, 14º e 15º do DL 208/82 e dos artigos 14º, 15º e
31º do DL 69/90, também contraria os princípios da «subordinação ao interesse geral» e da «correcta localização das actividades ... e da valorização da paisagem», consagrados nos artigos 65º, nº 2, al. c) e 66º, nº 2, al. b) da Constituição.
19. Finalmente, por todas as razões expostas, aquelas normas, na interpretação feita pelo douto acórdão, ao privilegiar o interesses privado do Banco, feriu o princípio constitucional da «autonomia das autarquias locais», consagrado no art. 6º, nº 1, da CRP.
20. Deste modo, infringindo o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados, é inconstitucional a norma contida nos artigos 13º, 14º e 15º do DL
208/82 e dos artigos 14º, 15º e 31º do DL 69/90, quando interpretado com o sentido que lhes foi dado pelo douto acórdão.
21. Suscita-se, ainda, a ilegalidade e inconstitucionalidade dos artigos 18º, nº
2 do DL 208/82 e 2 e 62º, 1 da própria Constituição, na interpretação que deles foi feita no douto acórdão, por violação daqueles princípios fundamentais, porquanto «os direitos e liberdades fundamentais» de cada um e «o direito à propriedade privada» não podem sobrepor-se ao interesse geral'.
7. Notificado para responder, querendo, às alegações da recorrente, disse o recorrido a concluir:
'Contrariamente ao que a Recorrente pretende fazer crer, o direito de participação dos particulares através do inquérito público não transfere para o público a competência para deliberar atribuída às assembleias municipais no uso das atribuições que a lei, designadamente a Constituição, lhes confere, antes sim, assegura aos particulares interessados, o direito de serem ouvidos no processo que conduz às deliberações das assembleias municipais no âmbito dos procedimentos de aprovação e ratificação dos planos directores municipais'.
Corridos os vistos, cumpre decidir. II. Fundamentação
8. Importa, antes de mais, decidir se pode conhecer-se do objecto do recurso, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. art. 76º, nº 3 da LTC). O recurso previsto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe, além do mais, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica - ou de uma sua dimensão normativa - e que, não obstante, a decisão recorrida a tenha aplicado, como ratio decidendi, no julgamento do caso. Importa, por isso, começar por averiguar se a recorrente suscitou, durante o processo, qualquer questão de constitucionalidade normativa em termos de permitir o recurso para o Tribunal Constitucional, designadamente a inconstitucionalidade da norma - ou interpretação normativa - que, no seu entender, a decisão recorrida extraiu dos artigos 13º, 14º, 15º e 18º, nº 2 do DL 208/82 e dos artigos 14º, 15º e 31º do DL 69/90. Ora, é manifesto que não o fez. Se atentarmos no teor das alegações produzidas perante o Supremo Tribunal Administrativo, verificamos que aí não foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa. A recorrente limita-se aí a imputar à própria decisão do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa - e não a normas que esta tenha aplicado, designadamente às que se extraem daqueles13º, 14º, 15º e
18º, nº 2 do DL 208/82 e dos artigos 14º, 15º e 31º do DL 69/90 – a violação de vários preceitos constitucionais. Para o demonstrar basta transcrever as conclusões daquela alegação na parte em que a recorrente se refere a alegadas inconstitucionalidades:
'(...) Nestes termos e nos mais de direito, pelas razões atrás apontadas, se considera que a douta decisão recorrida violou: a) os artigos 13º, 14º e 15º do DL 208/82, de 26/5 e os artigos 14º e 15º do DL
69/90, de 2/3, ao confundir os objectivos e as exigências legais quanto ao
«inquérito público» e à «aprovação» de um plano director municipal; b) os DL 208/82, D. Reg. 91/82 e DL 69/90, que sempre se referem a um único momento de «inquérito público», além de se contradizer (pág. 14, no final); c) e a própria CRP (6º.1 e 66º.2.b), o art. 39º.2.d) do DL 100/84, 29/3, o art.
15º do DL 208/82 e os artigos 13º, 1 e 15º do DL 69/90, ao retirar à assembleia municipal a competência para deliberar'. (Sublinhados nosso).
Ora, como resulta expressamente do disposto nas diversas alíneas do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, e tem sido por inúmeras vezes repetido por este Tribunal (cfr., a título de exemplo, o acórdão nº 20/96, in Diário da República, II série, de 16 de Maio de 1996), o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade tem por objecto a apreciação da constitucionalidade de normas jurídicas e não das decisões judiciais que as apliquem.
É certo que já depois de proferida a decisão recorrida (concretamente na reclamação da sua nulidade) a recorrente já refere a inconstitucionalidade a uma certa interpretação daqueles artigos - que, aliás, também não concretiza exactamente, preferindo escudar-se na expressão 'na interpretação que deles foi feita no douto acórdão recorrido'. Sucede, porém - e, abstraindo desta última questão -, que de qualquer forma a suscitação, neste momento processual, de uma questão de constitucionalidade normativa já não se pode considerar tempestiva, para efeitos de permitir o recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 70º da LTC. De facto, constitui desde há muito jurisprudência assente neste Tribunal
(veja-se, entre muitos nesse sentido, os acórdãos nºs 62/85, 90/85 e 450/87, in Acórdãos do T.C., 5º vol., p. 497 e 663 e 10º vol., pp. 573, respectivamente) que a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo quando tal se faz em tempo de o Tribunal recorrido a poder decidir e em termos de ficar a saber que tem essa questão para resolver – o que exige que a questão seja suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a mesma inconstitucionalidade respeita (ou seja: em regra, antes da prolação da sentença). Em consequência, tem este Tribunal entendido de forma reiterada, que, em princípio, não constitui meio idóneo para suscitar a questão da inconstitucionalidade o requerimento de arguição de nulidades da decisão ou o respectivo pedido de aclaração ou reforma. Nesse sentido escreveu-se, por exemplo, no supra citado acórdão nº 450/87: 'Deste modo, porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença, e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão, nem torna esta obscura ou ambígua, há-de ainda entender-se - como este Tribunal tem entendido - que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade...'. Por tudo o exposto, torna-se evidente que não pode conhecer-se do objecto do presente recurso, já que a recorrente não suscitou, durante o processo e de forma processualmente adequada, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa em termos de permitir o recurso para o Tribunal Constitucional a que se refere a alínea b) do nº 1 do art. 70º da LTC. III. Decisão Em face do exposto, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Lisboa, 31 de Janeiro de 2002- José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida