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Processo nº 468/01
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. - Nos presentes autos de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, em que são recorrente o Município de Almada e recorridos A e B, foi proferida, em 9 de Outubro último, decisão sumária, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A daquele diploma legal, no sentido do não conhecimento do objecto do recurso.
2. - Transcreve-se o teor da referida decisão:
'1. - O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 2 de Maio de 2000, proferido em acção declarativa de condenação com processo comum ordinário que correu termos no Tribunal Judicial da comarca de Almada, intentada por A e B, contra o Município de Almada, revogou a sentença absolutória da 1ª instância e condenou o réu a pagar aos autores, 'metade da quantia, a liquidar em execução de sentença, correspondente à diferença entre 46.640.000$00 e 791.980.000$00, depois de deduzido o valor relativo às despesas de loteamento e urbanização do terreno, bem como, de promoção do loteamento, e, ainda, o relativo às taxas que cobraria caso se tratasse de loteamento de iniciativa privada'. Interposto recurso de revista pelo demandado, o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 20 de Março de 2001, negou a revista e confirmou o aresto recorrido. Pedida a aclaração do decidido pelo Município de Almada, foi a mesma indeferida, em conferência, por acórdão de 15 de Maio seguinte. Inconformado, o Município de Almada, interpôs 'do douto acórdão que antecede', recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro 'com fundamento na inconstitucionalidade na interpretação dada no acórdão recorrido ao artigo 437º do Código Civil, por violar o disposto no nº 2 do artigo 62º da CRP'. O Conselheiro relator despachou nos seguintes termos:
'Cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais «que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo
[artigo 70º, nº 1, alínea b), da LOTC]. Foi ao abrigo desta norma que o recorrente interpôs o recurso, conforme requerimento de fls. 652 (onde, aliás, se aponta o artigo 437º do Código Civil, norma não referida no acórdão). Certo é, porém, que nenhuma questão de inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo. Como quer que seja, convida-se o recorrente a indicar os elementos previstos no nº 2 do artigo 75º-A da LOTC, sob pena de o recurso ser julgado deserto (nºs. 5 e 7 do mesmo artigo 75º-A).' O recorrente, notificado, reconheceu ter ocorrido lapso na menção do preceito do Código Civil em causa, uma vez que quando se escreveu 'artigo 437º' pretendia escrever-se 'Artigo 473º'. E acrescentou:
'2. Quando aos elementos solicitados no despacho que antecede, esclareça-se, que o que se considera inconstitucional é a interpretação dada ao referido Artigo
473ºdo Código Civil no douto acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça.
3. Pelo que não poderia o ora recorrente ter suscitado anteriormente a aludida inconstitucionalidade, nomeadamente por já não ser possível a apresentação de qualquer peça processual.'
O aludido magistrado admitiu o recurso se bem que tenha considerado que 'em bom rigor, o requerimento [...] não dá satisfação cabal ao convite para que fossem indicados os elementos previstos no nº 2 do artigo 75º-A da LOTC'.
2. - Entende-se ser caso de proferir decisão sumária, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, nº 1, deste último diploma, por não poder conhecer-se do objecto do recurso – sabido que, nos termos do nº 3 do artigo 76º do mesmo texto legal, o despacho proferido, de resto, com dúvidas, não vincula o Tribunal Constitucional.
3. - Com efeito, independentemente da objecção eventualmente oponível ao facto de, no requerimento de interposição do recurso, o interessado manifestar vontade de recorrer do 'acórdão que antecede' – que, em direitas contas, é o acórdão aclaratório – não estão reunidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade. Assim é que o recorrente começou por invocar uma interpretação inconstitucional da norma do artigo 437º do Código Civil, merecendo, desde logo, do Conselheiro relator, convite, ao abrigo do disposto no nº 5 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, no sentido de indicar os elementos previstos no nº 2 deste preceito. Em resposta, o interessado veio rectificar a menção do artigo do Código Civil em questão – o artigo 473º e não o primitivamente indicado, o que atribuiu a lapso
–, mantendo a referência à 'interpretação dada pelo Supremo', acrescentando que não suscitou previamente a questão por 'já não ser possível a apresentação de qualquer peça processual'. Ora, mesmo aceitando que se pretende recorrer do acórdão de 20 de Março de 2001, constata-se que este se limitou a confirmar a existência dos requisitos dos artigos 473º e seguintes do Código Civil., tal como a decisão recorrido o tinha feito, 'que recordou ter sido essa a conclusão já alcançada pelo acórdão da Relação de Lisboa, de 10 de Março de 1994, proferido em recurso de agravo no
âmbito da presente acção, e onde se procedeu a aprofundada análise dos referidos requisitos, concluindo-se pela sua verificação [...]' – cfr. ponto 3.1. do acórdão – fls. 625 dos autos. Deste modo, não só o Supremo Tribunal de Justiça não fez qualquer interpretação normativa inovatória, de modo a perfilar-se uma decisão surpresa, impeditiva de o interessado, em plano de razoável prognose, a poder equacionar e contra-argumentar – o recorrente já dela tinha conhecimento, cumprindo-lhe considerá-la na sua estratégia processual – o que significa suscitação extemporânea do problema, como, na verdade, nunca durante o processo levantou o problema de constitucionalidade, nem, finalmente, convidado a identificar a interpretação normativa que pretende ver apreciada – ónus que lhe compete –, não o fez, limitando-se a reiterar o seu inconformismo com 'a interpretação normativa dada ao artigo 473º do Código Civil'.
4. - Assim sendo, nem ocorreu suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo, nem se recorta a interpretação normativa que se pretende ver apreciada, não obstante o convite expressamente dirigido para esse fim, pressupostos de admissibilidade do recurso em causa, de indispensável verificação.
5. - Em face do exposto e tendo presente o nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso. Sem custas, por isenção legal.'
Os recorridos não responderam.
Cumpre decidir.
3. - Insiste o Município de Almada, ao reclamar para a conferência, que pretende 'ver discutida' a interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça ao artigo 473º do Código Civil, a qual, no seu entender, viola o princípio da justa indemnização consagrado no artigo 62º, nº 2, da Constituição.
Com efeito, observa, não se verificam, no caso vertente, os requisitos contidos nesse preceito do Código Civil: ao considerar-se, à sua sombra, que se verificou enriquecimento sem causa por banda do Município, viola-se o conceito de justa indemnização, 'pois os AA já haviam sido ressarcidos dos prejuízos advenientes da expropriação, tendo em conta o valor real decorrente do bem à data da declaração de utilidade pública'.
Nesta perspectiva, só haveria lugar a observar o disposto no regime do enriquecimento sem causa 'se estivessemos exactamente perante o mesmo bem que foi expropriado e se chegasse à conclusão que os Expropriados não receberam uma indemnização justa', o que não é o caso.
4. - O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça confrontou o problema do eventual enriquecimento sem causa, subscrevendo a tese, jurisprudencialmente apoiada. da necessidade de se verificarem cumulativamente diversos requisitos, tais como a existência de um enriquecimento, que este não tenha causa que o justifique, que tenha sido obtido à custa do empobrecimento de quem pede a restituição e que a lei não faculta ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído.
Surpreende-se na argumentação agora deduzida a intenção de se reapreciar a fundamentação utilizada na decisão recorrida quanto à interpretação da norma impugnada numa dimensão em que o referente normativo oculta a discussão dos elementos de facto que serviram àquela decisão. No entanto não é o acto de julgamento em si, com a implícita ponderação da singularidade do caso concreto, que está em causa, constituindo objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade; muito pelo contrário, o que é suposto sindicar-se neste tipo de recurso tem a ver com a constitucionalidade do critério normativo aplicado.
Com efeito, o aresto recorrido 'examinou' os requisitos que teve de indispensável congregação para preencher o conceito de enriquecimento sem causa para, com base na factualidade apurada, concluir pela sua verificação no concreto caso, juízo que o Tribunal da Relação, no seu acórdão de 2 de Maio de 2000 já formulara e que o Supremo, em revista, corroborou (cfr. fls. 531 e segs. e 606 e segs. dos autos), na sequência do já entendido em anterior acórdão dessa Relação de 10 de Março de 1994 (cfr. fls.168 e segs.).
Assim, pôde escrever-se na decisão recorrida, do Supremo, a certo passo (fls. 625 e segs.):
'3.1. A existência destes requisitos foi afirmada na decisão recorrida, que recordou ter sido essa a conclusão já alcançada pelo acórdão da Relação de Lisboa de 10.3.94, proferido em recurso de agravo no âmbito da presente acção, e onde se procedeu a aprofundada análise dos referidos requisitos, concluindo-se pela sua verificação ( a provarem-se os factos alegados na petição, o que veio a acontecer). Conclusão que, na verdade, a matéria de facto provada consente e apoia. Do referido acórdão de 10.3.94 (cfr. fls. 168-189), respigaremos alguns passos pertinentes. Assim. Afirmou-se o enriquecimento do réu, na medida em que ele 'recebeu pela venda dos lotes, em que dividiu a sub-parcela de 20.000 m2 um preço muito superior àquele com que indemnizou os expropriados ' . No que respeita ao empobrecimento dos autores, considerou-se que 'o empobrecimento de quem reclama a restituição do enriquecimento é 'um sacrifício económico ' deste (..) e poderá consistir na retirada de certos bens do seu património, na não entrada deles nesse património ou no impedimento do exercício de algum direito seu, susceptíveis de avaliação patrimonial' . Ora, os autores 'deixaram de receber uma importância mais elevada do que a indemnização recebida, por não terem podido proceder ao loteamento daquela sub-parcela e à venda dos lotes para construção de edifícios, como pretenderam e disso foram impedidos pelo réu'. Quanto à relação de causalidade entre o enriquecimento do réu e o empobrecimento dos autores, surpreende-se ela na circunstância de 'o valor que ingressa no património de um é o mesmo que saiu, ou deixou de entrar, no património destes'. No tocante à falta de causa justificativa do enriguecimento, ponderou-se que 'a divisão, em lotes para a construção, daquela subparcela, obtida através de uma expropriação, constitui desvirtuação do interesse público que a justificava, fazendo da venda daqueles a terceiros um abuso de direito e, por isso, não pode ser causa justa do seu enriquecimento' . Aceita-se que o facto de o réu ter vendido uma parte dos terrenos expropriados, no mercado livre dos terrenos destinados à construção particular, demonstra que cessou a causa de utilidade pública, que justificou a expropriação desses terrenos.. Ora, é de perfilhar o entendimento de que, uma vez demonstrado que cessou a causa justificativa da expropriação, comprovada fica a falta de causa justificativa do loteamento feito pelo réu e das subsequentes vendas de lotes de terreno, e, como tal, também das deslocações patrimoniais de que beneficiou o Município de Almada. Finalmente, e a propósito da ausência de outro meio legal que possibilite ao empobrecido ser indemnizado ou restituído não pode deixar de reconhecer-se que aos autores só lhes restava a presente acção como meio de obterem a restituição. Basta atentar em que o acto de expropriação em causa ocorreu no período de vigência do Código das Expropriações de 1976 (D L n° 845/76, de 11 de Dezembro), no domínio do qual os expropriados não tinham direito de reversão. Portanto, os autores não tinham direito de reversão sobre a subparcela de cerca de 20.000 m2, sendo que os lotes em questão foram vendidos a terceiros, cuja boa fé não vem posta em causa (dada a similitude, relevante, das situações, vejam-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5.5.67, BMJ, n° 167-432, e do Supremo Tribunal Administrativo de 1.7.66, Acórdãos Doutrinais do ST A, Ano VI, n° 61, pág. 21 e ss., e o Parecer n° 2/58, de 20.2.58, do Conselho Consultivo da PGR, no BMJ, n° 76-300).'
5. - Mesmo que assim se não entendesse, o certo é que, como sublinhou o Conselheiro relator no Supremo Tribunal de Justiça, nenhuma questão de constitucionalidade foi suscitada durante o processo, no sentido funcional que se vem atribuindo a esta exigência, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional. Ou seja, antes de se apreciar, em recurso, uma questão de matriz constitucional, é necessário que essa questão tenha sido apresentada ao Tribunal a quo para sobre ela tomar conhecimento e decidir.
Assim, e em regra, o problema deve ser colocado antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido, o que, também em regra, se esgota com a prolação da sentença.
Só assim não ocorrerá perante circunstâncias excepcionais, anómalas (como, por exemplo, as versadas nos acórdãos nºs. 94/88,
51/90 e 61/92, publicados no Diário da República, II Série, de 22 de Agosto de
1988, 12 de Julho de 1990 e 18 de Agosto de 1992, respectivamente), em que não seria razoável exigir um juízo de prognose suscitado atempadamente, diferindo-se, então, para o momento de interposição do recurso de constitucionalidade a equacionação do problema.
Não é este, manifestamente, o caso, como se conclui das passagens transcritas, uma vez que o Supremo aceitou o entendimento das instâncias, que não foi posto em causa pelo interessado nesta perspectiva.
6. - Em face do exposto, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão sumária que negou provimento ao recurso. Lisboa, 30 de Novembro de 2001 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida