Imprimir acórdão
Processo n.º 60/01
2ª Secção Relator - Paulo Mota Pinto Acordam em conferência no Tribunal Constitucional: I. Relatório Em 22 de Fevereiro de 2001, F... e C..., melhor identificados nos autos, interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação da 'inconstitucionalidade material da norma do n.º 2 do artigo 407º do Código de Processo Penal, quando interpretada e aplicada da forma que o foi no acórdão recorrido' – isto é, o Acórdão de 2 de Fevereiro de 2000 do Tribunal da Relação de Lisboa, que considerou que o recurso para ele interposto não tinha subida imediata, devendo aquela 'ser diferida para o momento da subida do recurso da decisão final' na sequência do que fora defendido pelo Ministério Público na parecer aí emitido, no qual suscitou tal questão prévia. Por despacho de 21 de Março de 2000, o Ex.mº. Desembargador-Relator indeferiu tal requerimento de interposição de recurso considerando, designadamente que: o 'O Acórdão recorrido acolhe a tese jurisprudencial unânime que nesta Instância tem merecido a questão prévia, respaldada, no presente, por um aresto do Tribunal Constitucional (...)' [a referência era feita ao Acórdão n.º 964/96, publicado no Diário da República, II Série, de 23 de Dezembro de 1996]; o 'A posição doutrinária do Ilustre Recorrente é brilhantemente defendida, mas está, ainda, desacompanhada. Aonde, então, a decisão surpresa?' o 'E se a questão da inconstitucionalidade não foi suscitada durante o processo e de forma funcionalmente adequada, i.e., no caso, no momento processual que se lhe abriu – a resposta ao Parecer – de forma a que o Tribunal dela ainda conhecesse, a pretensão é manifestamente infundada.' Trouxeram então os recorrentes reclamação a este Tribunal Constitucional, invocando que, em resposta à posição do Ministério Público no Tribunal a quo, ' nada lhes impunha, lógica ou juridicamente que, ainda que a título premonitório, adiantassem argumentos que nada tinham a ver com a posição expendida pelo Douto Magistrado do Ministério Público', e acrescentando que a não aceitação da posição defendida pelo seu patrono nos autos, muito embora 'ainda desacompanhada', constituiu para eles uma decisão-surpresa. Mantido o despacho reclamado, subiram os autos a este Tribunal, tendo o relator solicitado ao Tribunal a quo certidão das peças processuais necessárias a apurar da verificação dos requisitos do recurso de constitucionalidade interposto. O representante do Ministério Público em funções neste Tribunal pronunciou-se no sentido de se indeferir a reclamação, porque 'o reclamante dispôs de plena oportunidade processual para suscitar, em termos procedimentalmente adequados – na sequência da notificação que lhe foi feita do parecer exarado nos autos pelo representante do Ministério Público – a questão de constitucionalidade a que reportou o recurso de fiscalização concreta interposto. E – como se refere na decisão ora impugnada – não pode obviamente perspectivar-se como
‘decisão-surpresa’, de conteúdo ‘insólito’ e ‘imprevisível’, com que o recorrente não pudesse razoavelmente contar – em termos de o dispensar do ónus de suscitação da questão de constitucionalidade ‘durante o processo’ – a mera adesão a tese largamente maioritária sobre a interpretação da norma questionada.' Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos O entendimento do requisito 'suscitação da inconstitucionalidade de uma norma durante o processo', exigido na alínea b) do n.º 1 do artigo 280º da Constituição e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (que foi a norma invocada pelo recorrente para fundar o recurso que pretende interpor), não suscita dúvidas, tendo sido precisado pela jurisprudência deste Tribunal em variados arestos. No Acórdão n.º 90/85
(publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Julho de 1985) disse-se, assim, que tal exigência que tem de entender-se
'não num sentido puramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância), mas no sentido funcional (...) tal que ( salvo, porventura, na referida situação excepcional [em que o interessado não disponha de oportunidade processual para levantar a questão antes de proferida a decisão]) essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão.' A primeira questão que se tem de pôr é, pois, a de saber se a questão de constitucionalidade em causa nos presentes autos – da norma do n.º 2 do artigo
407º do Código de Processo Penal, em certa interpretação – foi suscitada 'de forma funcionalmente adequada', como entendem os recorrentes, em oposição ao decidido no tribunal a quo. O que se traduz, afinal, em saber se a questão de constitucionalidade foi suscitada 'em termos e em tempo de o Tribunal recorrido poder decidir essa questão, e de ser obrigado a decidi-la', para retomar o que se escreveu no Acórdão n.º 132/98 ( publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 39º vol., pp. 673-679), onde se pode também ler a seguir:
'como os recursos visam a reapreciação de questões decididas pelo tribunal recorrido, e não o julgamento de questões novas, isso significa que a questão da inconstitucionalidade deve ser suscitada, em regra, antes de proferida a decisão de que se recorre. Só em casos de todo anómalos e excepcionais, em que a parte não teve oportunidade processual da suscitar essa questão antes de proferida decisão sobre a matéria a que ela respeita, se admite que a mesma seja levantada em momento posterior.' Ora, consultando os autos, verifica-se que os recorrentes só no requerimento de recurso de constitucionalidade suscitaram 'a inconstitucionalidade material da norma do n.º 2 do artigo 407º do Código de Processo Penal' – e numa fórmula não muito explícita, isto é, apenas 'quando interpretada e aplicada da forma que o foi no acórdão recorrido', sem, porém, enunciarem tal interpretação. Não o fizeram antes – como reconhecem na presente reclamação, invocando antes a sua
'surpresa' com a interpretação adoptada no tribunal recorrido –, apesar de estar já em questão a defesa, pelos ora reclamantes, da interpretação do artigo 407º, n.º 2 do Código de Processo Penal em termos de o critério material da
'inutilidade absoluta' do recurso se dever reportar à eventual afectação de direitos fundamentais. Pelo que – reconhecer-se-á –, sobre a questão de constitucionalidade do referido artigo 407º, n.º 2, na aludida interpretação, o tribunal a quo não se pronunciou, nem tinha de se pronunciar, não tendo sido com ela confrontado. E pelo que, em via recurso – ou seja, para reexame da decisão sobre a questão de constitucionalidade –, não pode este Tribunal reapreciar a decisão do tribunal recorrido. Isto, a menos, como se deixou acima referido, que se tratasse de um daqueles casos 'anómalos e excepcionais' em que a parte não teve oportunidade processual de suscitar a questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido. É o que defendem os reclamantes. Tais situações foram assim descritas no citado Acórdão n.º 132/98:
'É o que sucederá, nomeadamente, quando a parte é surpreendida com a aplicação de uma norma jurídica que era absolutamente impensável que fosse ser convocada para o julgamento do caso; ou quando a decisão faz uma interpretação inteiramente insólita da norma que esse julgamento convoca.' (itálicos aditados) E no Acórdão n.º 646/94 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29º vol., pp. 409-414), salientou-se que
'Só o carácter insólito ou imprevisível da interpretação podem, na verdade, levar a considerar a situação como anómala, capaz, por isso, de dispensar o cumprimento do referido ónus, pois que só com tal interpretação o recorrente se pode dizer surpreendido(...) As interpretações razoáveis (e, por isso, prováveis) dos preceitos legais que o julgamento do caso convoca, ainda que sejam várias, essas têm as partes o ónus de as tomar em consideração, adoptando, em face delas, a estratégia processual que tiverem por mais adequada (cf. acórdãos nºs 479/89 e 385/94, publicado no Diário da República, II série, de 24 de Abril de 1992, o primeiro, e por publicar, o segundo).' No presente caso, num recurso em que o Ministério Público junto do tribunal ad quem suscitou a questão prévia do regime de subida, o recorrente foi admitido a contraditar as suas razões, tendo tido, portanto, oportunidade para se pronunciar sobre tal questão. Não suscitou, porém, nesse momento, a inconstitucionalidade da interpretação inversa da sua – na qual se que reconhece ainda desacompanhado –, pelo que, não tendo cumprido tal ónus, não pode dar sequência à sua insatisfação com um recurso de constitucionalidade: sem tal suscitação, o tribunal ora reclamado não teve de se pronunciar sobre tal questão e, sem tal pronúncia prévia não há matéria para reapreciação por parte deste Tribunal. O que, obviamente, sem excluir uma invocada 'surpresa' do recorrente, não implica que ela tenha que relevar processualmente. É que, como se sabe, o critério da surpresa não pode ser subjectivo, mas sim objectivo: só há surpresa relevante quando se reconhecer que o interessado não podia representar a possibilidade de aplicação da norma, ou interpretação da norma, em causa, pelo seu carácter inesperado ou insólito (e não apenas por dela discordar).
É pois, certo que, até pela circunstância de, no próprio processo, tal interpretação já ter sido defendida pelo Ministério Público – a mais de ser maioritária na doutrina e jurisprudência, como o próprio recorrente reconheceu – não pode invocar-se surpresa relevante, pesem embora as diferentes expectativas do recorrente. Não constituindo este, assim, um dos casos de excepção ao requisito de suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo, necessário à admissão do recurso que se pretendeu interpor ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, não pode a presente reclamação ser deferida. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide, em conferência, desatender a presente reclamação e, por conseguinte, condenar os reclamantes em custas (artigo 84º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional), com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa,
24 de Outubro de 2001 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa