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Processo nº 794/99
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - A ..., identificado nos autos, interpôs, no Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra, recurso contencioso de anulação do acórdão do Plenário do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, de 30 de Junho de 1997, que, negando provimento a recurso hierárquico oportunamente deduzido, manteve a deliberação do Conselho Geral da referida Ordem, no sentido de suspender a sua inscrição como advogado, considerando existir incompatibilidade entre o exercício da advocacia e as funções de revisor oficial de contas.
Na respectiva petição, imputou o interessado ao acto recorrido vícios de violação de lei, consubstanciados seja nos artigos 68º e 69º do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pelo Decreto-Lei nº 84/84, de 16 de Março), defendendo que o artigo 68º deve ser conjuntamente entendido com o artigo 69º, definindo este, de modo taxativo, as concretas incompatibilidades, limitando-se o primeiro a “dar o alcance” ao segundo, “como se de um preâmbulo legal se tratasse”, seja, no plano jurídico-constitucional, dos artigos 47º, nº
1 e 18º, nºs. 2 e 3, da Constituição da República (CR).
O Tribunal, por sentença de 23 de Junho de 1998, negou provimento ao recurso, por considerar inverificados os vícios imputados ao acto.
Interposto recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, continuou a sustentar-se a tese de inconstitucionalidade, concluindo-se, então, que a aplicação dos artigos 68º e 69º do E.O.A., na interpretação que lhes foi dada na decisão recorrida, afronta a Constituição, nomeadamente os seus artigos 18º, nºs. 2 e 3, 47º, nº 1, e 165º, nº 1, alínea b), uma vez que:
a) viola o direito à liberdade de escolha da profissão, que abrange, em concreto, o seu exercício;
b) viola o regime jurídico-constitucional específico dos direitos, liberdades e garantias, que impõe reserva de lei restritiva formal qualificada;
c) tem como insindicável pelos Tribunais o exercício de poderes delegados, como se de originários se tratasse, e cujo limite seria exclusivamente a vontade da Ordem dos Advogados.
A 1ª Secção do Contencioso Administrativo (primeira Subsecção) do Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 21 de Outubro de
1999, negou provimento ao recurso, após julgar improcedentes todas as conclusões no mesmo formuladas pelo recorrente.
2. - Inconformado, interpôs este recurso para o Tribunal Constitucional, do acórdão em causa, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade das normas dos artigos 68º e 69º do E.O.A., por violação do disposto nos artigos 18º, nºs. 2 e 3, 47º, nº 1, e 165º, nº 1, alínea b), da Constituição da República.
Notificado para uma melhor determinação do objecto do recurso, veio o recorrente aos autos esclarecer:
“A norma cuja validade constitucional se impugna é a que foi extraída do artº
68º do E.O.A. (aprovado pelo DL. Nº 84/84, de 16 de Março), na acepção normativa, que foi aplicada tanto pelo acto contenciosamente sindicado como pelo acórdão jurisdicionalmente recorrido, segundo a qual a estatuição de incompatibilidade da advocacia com o exercício da profissão de Revisor Oficial de Contas (declarada pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados) não ofende o direito fundamental de liberdade de escolha de profissão reconhecido no artº 47º nº 1 da CRP por ser uma restrição material constitucionalmente admissível e ainda no entendimento segundo o qual o órgão decidente da Ordem dos Advogados
(Conselho Geral da Ordem dos Advogados) pode definir a existência duma incompatibilidade dessa categoria por não sair ofendido, conquanto respeitante ao direito de livre escolha de profissão reconhecido no artº 47º nº 1, o princípio de reserva de lei da Assembleia da República consagrado para a instituição de restrições aos direitos liberdades e garantias consagrado no artº
18º nº 2 e no artº 165º nº 1 al. b) Constituição da República Portuguesa. Entre outras, essas questões interpretativas foram colocadas, de forma desenvolvida, ao tribunal ora recorrido em contestação do decidido na sentença da 1ª instância, nas suas alegações de recurso, como delas se colhe, constituindo a referida expressão linguística usada nas suas conclusões apenas um modo prático de as sintetizar ou resumir enquanto o tribunal então recorrido havia julgado que não existia a violação do referido direito constitucional. Ora, o recorrente entende que o significado normativo de tal preceito do artº
68º do E.O.A., tal qual foi determinado e aplicado pelo acórdão recorrido, ofende materialmente o direito de livre escolha de profissão consagrado no artº
47º nº 1 e que a definição normativo-constitutiva por banda do E.O.A. (pelos seus órgãos) de que o exercício da profissão de revisor oficial de contas é incompatível com a advocacia viola o princípio da reserva de lei da Assembleia da República decorrente do artº 18º nº 2 e 165º nº 1 al. b), todos estes preceitos da Constituição da República Portuguesa.”
Notificado, alegou oportunamente o recorrente, que assim concluiu:
“a) O direito à liberdade de escolha de profissão abrange também o direito de liberdade de escolha de mais do que uma profissão e do exercício de mais do que uma profissão, estando nesse caso a acumulação da profissão de ROC e de Advogado. b) Este direito pertence ao catálogo dos direitos, liberdades e garantias fundamentais (artº 47º nº 1 da CRP) e, como tal, está sujeito ao regime estabelecido constitucionalmente no artº 18º nºs. 2 e 3 da CRP para a sua restrição, da exigência de lei geral e abstracta da Assembleia da República ou Decreto-Lei do Governo emitido sob autorização do Parlamento (artº 165º nº 1 al. b) da CRP), c) tendo a sua restrição de conter-se dentro dos limites adequados necessários e proporcionais à protecção de outros interesses públicos próprios de outros direitos constitucionalmente consagrados. d) A definição de incompatibilidades profissionais é, por si própria uma operação de restrição à liberdade de exercício de profissão, estando sujeita à referida reserva de lei formal qualificada. e) «O princípio de reserva de lei é adverso à utilização de conceitos indeterminados, na medida em que podem conduzir à subversão da intenção normativo-constitucional que a mesma tem subjacente» por deslocar o centro da ponderação dos interesses públicos e privados em presença para a Administração e por via do controlo contencioso, para os tribunais. f) Neste caso essa ponderação político-legislativa que a reserva de lei pretende assegurar acaba por ser exercida por um órgão da administração autónoma de base corporativa, agudizando mais o gravame. g) A utilização de conceitos indeterminados no domínio da restrição de direitos, liberdades e garantias é susceptível de fazer perigar dimensões de segurança jurídica, protecção da confiança, preeminência e igualdade dos direitos fundamentais num Estado de Direito. h) Em matéria de incompatibilidades deve vigorar o princípio da tipicidade ou da taxatividade. i) Enquanto conceitos normativos indeterminados potenciadores da definição por banda da Ordem dos Advogados de categorias de profissões, como a dos Revisores Oficiais de Contas, incompatíveis com a actividade da advocacia, os conceitos utilizados no artº 68º do EOA são inconstitucionais por não serem um modo adequado, necessário e proporcional para obstar à ameaça de lesão séria e grave dos interesses públicos tutelados por outros direitos comunitários absolutos. j) Esses conceitos apenas podem ser vistos como sensores das situações de incompatibilidade a denunciar pela OA ao órgão legislativo para fixação normativa. l) A significação normativa de erigir esses conceitos indeterminados a elementos de definição de incompatibilidades só é constitucionalmente legítima nos casos extremos em que houvesse de assegurar a legítima defesa do sistema em tal matéria de incompatibilidades, funcionando como última ratio para a prevenção de danos sérios, actuais, intoleráveis e irreparáveis aos bens constitucionalmente protegidos que não se verificam no caso da acumulação das profissões de revisor oficial de contas e de advogado. m) Os problemas deontológicos que possam colocar-se no âmbito da acumulação de funções, mormente, pelo dever de participar criminalmente, através da Ordem dos ROCs, crimes públicos conhecidos no exercício das funções de ROC e o dever de sigilo do advogado apenas poderão justificar constitucionalmente (ou seja pela sujeição às regras dos nºs. 2 e 3 do artº 18º da CRP) o impedimento da acumulação em concerto ou caso a caso das prestações de serviço próprias das respectivas funções n) ou seja, ser resolvidos em pura sede disciplinar. o) Consequentemente, o significado normativo do artº 68º da EOA, tal como foi determinado e aplicado pelo tribunal recorrido, ofende materialmente o direito de livre escolha de profissão consagrado no artº 47º nº 1 da CRP e a definição normativo-constitutiva por banda da OA de que a categoria profissional de revisor oficial de contas é incompatível com a advocacia viola também o princípio da reserva de lei da Assembleia da República decorrente do artº 18º nºs. 2 e 3 e 165º nº 1, al. b), igualmente da CRP. Termos em que, com o douto suprimento de Vossas Excelências, se requer seja dado provimento ao recurso e julgada inconstitucional a interpretação/aplicação normativa do referido preceito feita pelo tribunal recorrido e seja, igualmente, mandado reformar o acórdão recorrido em conformidade com a decisão de constitucionalidade tomada.”
Por sua vez, em contra-alegações, pronunciou-se o Conselho Superior da Ordem dos Advogados no sentido de não se mostrarem violados os preceitos constitucionais convocados pelos recorrentes na interpretação e aplicação feitas dos artigos 68º e 69º do E.O.A..
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir, sendo certo que as alterações ao Estatuto introduzidas pela Lei nº 80/2001, de 20 de Julho, que, designadamente, republica, em anexo, o texto integral do mesmo
(artigo 6º e Anexo II), não interferem com os dados do problema sub judice.
II
1.1. - Segundo o requerimento de interposição do recurso, pretende-se ver apreciada a constitucionalidade das normas dos artigos 68º e 69º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
No entanto, posteriormente, o recorrente veio esclarecer circunscrever-se o objecto da sua impugnação à primeira dessas normas, “tal como foi determinada e aplicada pelo acórdão recorrido”, ou seja, com o sentido da incompatibilidade do exercício da advocacia com a actividade de revisor oficial de contas.
Deste modo, o Tribunal só irá pronunciar-se a respeito da conformidade constitucional da norma do artigo 68º, de acordo com a qual:
“O exercício da advocacia é incompatível com qualquer actividade ou função que diminua a independência e a dignidade da profissão”.
A análise será, por conseguinte, feita em obediência aos limites da questão enunciada: na tese do autor do recurso, a dimensão normativa que se entendeu dar ao preceito, de que resulta a incompatibilidade do exercício concorrente das duas actividades, ofende “o direito de liberdade de escolha de mais do que uma profissão e do exercício de mais do que uma profissão”, ambos decorrentes do direito à liberdade de escolha de profissão consagrado no nº 1 do artigo 47º da Constituição.
E – acrescenta-se –, porque se trata de um direito que integra o catálogo dos direitos, liberdades e garantias, para que possa ser objecto de restrições encontra-se sujeito ao regime previsto nos nºs. 2 e 3 do artigo 18º da Lei Fundamental – que de igual modo estariam violados –, do mesmo passo que se colocaria em causa o âmbito da reserva de lei, tal como definida se encontra na alínea b) do nº 1 do artigo 165º do texto constitucional.
1.2. - O acórdão recorrido entendeu o artigo 68º do Estatuto da Ordem dos Advogados como norma que, para além das incompatibilidades fixadas no nº 1 do artigo 69º, “enuncia um preciso quadro legal de incompatibilidades do exercício da advocacia, exercitável a se pelos órgãos competentes da Ordem dos Advogados”.
Escreveu-se, então, com apoio no acórdão deste Tribunal nº 169/90, publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Setembro de
1990, que o máximo que se pode dizer é que o legislador não foi coerente consigo próprio, “pois que, ao definir o âmbito das incompatibilidades de outras actividades com o exercício da advocacia, anunciou que elas seriam as decorrentes da necessidade de preservar aqueles valores (os valores da independência e da dignidade da profissão de advogado) e, logo no artigo seguinte, mostrou-se infiel a esse programa, uma vez que estabeleceu incompatibilidades que não podem justificar-se à luz desses valores ou interesses”.
Só que – acrescenta-se – essa incongruência legislativa não gera inconstitucionalidade.
O artigo 68º consagra, assim, nos termos do aresto recorrido, uma regra geral sobre incompatibilidades destinada a proteger situações não necessariamente subsumíveis ao elenco fixo previsto no artigo 69º. Aí se escreveu que “o sentido prático e útil, a razão de ser e a finalidade” da norma (do artigo 68º) assenta “no fluir da realidade e da evolução social, política e económica”, impeditivo da fixação pelo legislador de “todas as funções e actividades incompatíveis com o exercício da advocacia” e que, de algum modo, diminuam a independência e a dignidade da profissão de advogado.
Nestes termos, o exercício da advocacia não estaria acautelado, em ordem à consagração da independência que subentende, apenas na formulação enunciativa do artigo 69º (onde nem sempre se surpreende a mesma ontologia), mas também naquela formulação geral, onde têm cabimento situações como a do caso vertente, relativa ao exercício da actividade de revisor oficial de contas.
É, por conseguinte, com base nas premissas deste enquadramento assim concebido, que importa saber se a norma questionada respeita os cânones constitucionais, nomeadamente em face dos parâmetros convocados, sendo certo que está em causa a compatibilização do exercício da advocacia com o da actividade de revisor oficial de contas, em nome da preservação da independência da profissão de advogado.
2.1. - Na interpretação adoptada surpreende-se, na verdade, a dificuldade de predeterminar de que maneira o interesse colectivo, na preservação do valor de independência no exercício da advocacia, se repercute nesta ou naquela profissão, tal a “quase infindável massa de profissões, em diversificação cada vez maior na nossa época, e perante a quase imprevisível variação de circunstâncias”, nas palavras de Jorge Miranda (cfr. Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 3ª ed., Coimbra, 2000, pág. 203).
De qualquer modo, a preservação desse interesse não será feita de modo a frustrar o conteúdo essencial do direito à liberdade de profissão, no âmbito de uma sociedade democrática, em termos de se impor a alguém, contra sua vontade, uma certa profissão ou de impedir alguém, arbitraria e desrazoavelmente, de exercer ou de continuar a exercer a sua profissão.
Ora parece inquestionável que o mandato judicial, na medida da sua contribuição para a realização de justiça como tarefa fundamental do Estado, pressupõe uma disciplina não apenas ditada em função da protecção do estatuto dos próprios advogados e da inerente dignidade profissional, mas também moldada pelo interesse público geral.
A esta luz, a liberdade de trabalho comporta liberdade de escolha do género de trabalho, na qual, aliás, não se esgota – sendo certo, como observa a Doutrina, que o texto constitucional não se refere expressa e autonomamente àquela primeira liberdade (assim, v.g., Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, pág. 261; Rogério Ehrhardt Soares, “ A Ordem dos Advogados. Uma Corporação Pública” in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124, págs. 227 e segs., maxime 267).
A liberdade de escolha foi, por sua vez, caracterizada no acórdão deste Tribunal nº 46/84 (publicado no Diário da República, II Série, de 13 de Julho de 1984) como consistindo no direito de escolher a forma de actividade que se preferir, a implicar a faculdade de se mudar de trabalho, quando se desejar, e a compreender a possibilidade de ajustar o que mais convier, tanto no que toca à duração da jornada de trabalho, como no que respeita à retribuição ou a quaisquer outras condições.
Obviamente, porém, uma e outra destas liberdades recortam-se de acordo com os limites que as comprimem no seu conteúdo. E o texto constitucional, dirigido à liberdade de escolha de profissão, logo ressalva as restrições impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à própria capacidade de cada um.
Ou seja, o legislador ordinário tem, em princípio, legitimidade para condicionar ou restringir o exercício de um direito fundamental como aquele que está em causa, só assim não ocorrendo se ultrapassar os parâmetros estabelecidos pelo próprio artigo 47º, nº 1, da Constituição, ou se proceder desnecessária, desrazoável e desproporcionadamente, de modo a não observar os limites dos nºs. 2 e 3 do artigo 18º daquele texto.
Assim ponderou este Tribunal, no acórdão nº 474/89, publicado no Diário da República, II Série, de 30 de janeiro de 1990:
“Não podendo [...] pôr em dúvida a legitimidade do princípio do legislador para condicionar ou restringir o exercício dos direitos fundamentais em causa, segue-se que uma regulamentação condicionante ou restritiva [...] do acesso a determinada actividade profissional [...] só será constitucionalmente censurável se não puder de todo em todo credenciar-se à luz do especificamente determinado no [...] artigo 47º, nº 1 [...] ou a extravasar os limites que a Constituição, no seu artigo 18º, nºs. 2 e 3, põe, em geral, às normas restritivas de direitos, a saber: o da necessidade e proporcionalidade da restrição; o seu carácter geral e abstracto, e não retroactivo, e o do respeito pelo conteúdo essencial do preceito constitucional consagrador do direito”.
2.2. - É patente a preocupação do legislador, estatutariamente vertida, no sentido de relevar a função ético-social da advocacia, assegurando, nessa medida, um comportamento profissional e cívico do advogado que o distinga como servidor da justiça e do direito, seja no exercício da profissão ou fora dela (como destaca António Arnaut – Estatuto da Ordem dos Advogados Anotado, 5ª ed., Coimbra, 2000, pág. 72).
Esse objectivo reflecte-se quer ao longo do Capítulo V do Título I do diploma, dedicado à deontologia profissional, designadamente na imposição do segredo profissional (artigo 81º), quer no sistema de incompatibilidades estabelecido e, bem assim, nos impedimentos criados quanto ao exercício da advocacia (a que o artigo 73º respeita).
As incompatibilidades previstas no diploma assentam, pois, numa matriz de natureza ética e deontológica.
E se bem que não tenha sido empregada uma técnica de prévia tipificação das incompatibilidades, remetendo-se, eventualmente, em segundo momento, para quaisquer outras, a criar por legislação especial, em reconhecimento da dinâmica social que não se compadece com uma elencagem fixa e pré-estabelecida, reconheceu-se a necessidade de se criarem delimitações inequívocas entre as diferentes actividades, de modo a não conflituarem interesses de diversa natureza, preservando-se, nomeadamente, as condições de disponibilidade susceptíveis de assegurar o exercício cabal e correcto de uma determinada função ou actividade.
A verdade é que está sempre subjacente o objectivo de não permitir que o exercício simultâneo da advocacia com outras actividades ou funções faça perigar os valores ético-deontológicos que à advocacia devem assistir, sendo certo que é nessa perspectiva que esses valores se impõem, como, de resto, se colhe da leitura do acórdão do plenário do Conselho Superior da Ordem dos Advogados. O objecto da norma, como se ponderou no acórdão nº 143/85 deste Tribunal – publicado no Diário da República, II Série, de 3 de Setembro de
1985 – é o de estabelecer incompatibilidades de exercício de outras actividades com a advocacia e o seu sentido é o de proteger a advocacia, e não ao invés, pois que se trata de matéria que integra o estatuto da advocacia (no mesmo sentido, Alfredo Castanheira Neves, “O Estatuto da Ordem dos Advogados. Questões Polémicas” in Revista da Ordem dos Advogados, ano 52, 1992, pág. 834).
E, de certo modo, corresponde ao regime similar que o exercício da actividade de revisor oficial de constas estatui em matéria de incompatibilidades. O artigo 66º do Decreto-Lei nº 422-A/93, de 30 de Dezembro, tem a profissão de revisor oficial de contas como “incompatível com qualquer outra que possa implicar a diminuição da independência, do prestígio ou da dignidade da mesma ou ofenda outros princípios de ética e deontologia profissional”.
Independentemente do que se possa entender sobre a natureza meramente exemplificativa ou estritamente taxativa do elenco constante do artigo 69º (e, esta última, é tese que alguns defendem; assim Paulo Castro Rangel, “O Princípio da Taxatividade das Incompatibilidades” in Revista da Ordem dos Advogados, ano 54, Dezembro de 1994, pág. 779 e segs.) e a conceder-se, ainda, que a liberdade de escolha de profissão abrange o direito de exercer mais do que uma, o certo é que – e este é o caso subjacente –, no âmbito das coordenadas que o artigo 68º traça, é perfeitamente representável a limitação do exercício simultâneo de várias profissões, como, aliás, defendem Gomes Canotilho e Vital Moreira – ob. cit., pág. 263 – e Jorge Miranda dá a entender – ob. cit., pág. 504.
2.3. - O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar, ainda que sobre diferentes enfoques, em relação ao regime das incompatibilidades com o exercício da advocacia.
Com efeito, o citado acórdão nº 143/85 declarou inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma da alínea i) do nº 1 daquele artigo 69º, “na parte em que considera incompatível com o exercício da advocacia a função docente de disciplinas que não sejam de Direito”. Considerou-se, então, inserir-se o regime de incompatibilidades no âmbito de protecção do estatuto de advogado: a defesa da independência e da dignidade da profissão passam pela garantia da disponibilidade e da dedicação do advogado ao seu mister, preservando-se, do mesmo passo, a sua competência e a correlativa reputação profissional.
Mais tarde, o Tribunal viria a pronunciar-se sobre a incompatibilidade para o exercício da advocacia que pende sobre os funcionários ou agentes de quaisquer serviços públicos, de natureza central, regional ou local, ainda que personalizados, ou seja, sobre a parte ainda subsistente da alínea i), que o primeiro aresto parcialmente eliminou do ordenamento jurídico.
Assim, no acórdão nº 169/90, também já citado (adoptando orientação posteriormente retomada pelo acórdão nº 106/92, publicado no mesmo jornal oficial, II Série, de 15 de Julho de 1992), se decidiu (por maioria, como no primeiro caso) não declarar a inconstitucionalidade da norma, na sua projecção subsistente, após reconhecer a legitimidade (constitucional) das incompatibilidades previstas no Estatuto da Ordem dos Advogados, não necessariamente, apenas, no enfoque da independência e dignidade profissionais, mas igualmente quando decretadas em nome da defesa de valores e interesses outros, como (no caso) os próprios da função pública.
Para o efeito, teve-se, designadamente, em conta que, não sendo o artigo 68º um preceito constitucional, não funciona como parâmetro constitucional das normas contidas no artigo 69º, sendo certo que a Constituição não proíbe o legislador de, ao alinhar as incompatibilidades de outras funções ou actividades – como as funções públicas – com o exercício da advocacia, tome em consideração os valores ou interesses dessas outras funções ou actividades.
No ponto de vista constitucional, escreveu-se, “o legislador, se quiser que o exercício de funções públicas seja, em regra, incompatível com o exercício da advocacia, tanto pode dizê-lo quando, no estatuto da advocacia, enumera as funções ou actividades que com ela são incompatíveis, como quando trata do estatuto do pessoal da Administração Pública”.
3.1. - Se é verdade que a norma do artigo 68º fornece a ratio legis para uma parte significativa das incompatibilidades estabelecidas na norma imediata, assim contribuindo para demarcar o campo semântico da interpretação destas (ou de parte destas), não é menos certo que a norma também vale por si e, nessa medida, é, aliás, muito importante na afirmação dos valores que contém e do interesse colectivo que prossegue.
Se a considerarmos, nomeadamente, em estrita articulação com a norma do artigo 76º do Estatuto, bem se pode entender que deveriam ser retirados da profissão “todos aqueles que, pelas funções desempenhadas, não oferecessem objectivamente uma garantia de respeito e conformidade com os valores constantes das disposições legais citadas, sendo vital acautelar que o exercício da profissão de advogado se processasse sem a acumulação com outras funções objectivamente capazes de levantar, perante os outros advogados, magistrados e público em geral, dúvidas quanto à possibilidade de ser mantida a fidelidade aos princípios éticos basilares da profissão, impedindo situações de
‘promiscuidade’ susceptíveis de fazer surgir aos olhos da opinião pública dúvidas quanto à transparência que a figura do advogado deve sempre reflectir”
(cfr. Susana Faria Maltez, Advogados Vogais do Conselho Superior da Magistratura. Uma Questão de Constitucionalidade, Coimbra, 2001, pág. 58).
Como quer que seja, nem o nº 1 do artigo 47º se mostra ofendido, nem a solução encontrada no acórdão recorrido vai além da necessidade, da adequação e da justa medida em relação aos fins pretendidos, pelo que não é pertinente a convocação do artigo 18º, nºs. 2 e 3, do texto constitucional.
3.2. - Por fim, interessa saber se há inconstitucionalidade por violação à reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República neste domínio.
A este propósito, invoca-se a alínea b) do nº 1 do artigo 165º do texto constitucional mas o preceito de correcta convocação é o da alínea b) do nº 1 do artigo 168º, de idêntico teor, por ser este o correspondente à versão em vigor ao tempo da aprovação do Decreto-Lei nº 84/84, de 16 de Março, originário da revisão constitucional operada pela Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro, nos termos do qual é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar, salvo autorização ao Governo, sobre matéria de direitos, liberdades e garantias.
Ora, aquele decreto-lei, que aprovou o Estatuto da Ordem dos Advogados, foi editado pelo Governo ao abrigo da autorização legislativa concedida pela Lei nº 1/84, de 15 de Fevereiro, a qual, nos termos do disposto nos artigos 164º, alínea e), 168º, nº 1, alíneas b) e f), e 169º, nº 2, da versão da Constituição então vigente, o autorizou a proceder à revisão da matéria constante do Estatuto Judiciário (aprovado pelo Decreto-Lei nº 44 278, de 14 de Abril de 1962) sobre o mandato judicial (artigo 1º), fixou o sentido da legislação a criar, como seja, de acordo com a alínea a) do seu artigo 2º, o de
“reestruturar o exercício da advocacia, de modo à completa satisfação das disposições constitucionais, nomeadamente para a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos”.
Sustenta o recorrente que a norma do artigo 68º esgota-se substantivamente na medida em que determina não dever o exercício da advocacia afectar negativamente a independência e a dignidade da profissão. Ou seja, as restrições elencadas no artigo 69º representariam outras tantas restrições à liberdade de escolha e de exercício da profissão e uma formulação indeterminada como a constante do artigo 68º faria perigar dimensões de segurança jurídica, protecção de confiança, preeminência e igualdade de direitos fundamentais em Estado de direito, nessa medida desrespeitando a reserva de lei formal constitucionalmente imposta.
Crê-se, no entanto, que a dúvida suscitada tem a sua origem no conteúdo material da norma questionada, que não se mostra constitucionalmente desconforme, tendo em conta os limites de conformação do legislador ordinário, na definição das situações entendidas como prejudiciais à concessão do objectivo proposto de tutela de independência e de dignidade da advocacia, conjugadamente com a protecção do interesse colectivo que se intenta defender.
4. - A situação vertente distingue-se da contemplada no acórdão nº 457/93 (publicado no Diário da República, II Série-A, de 13 de Setembro de 1993), relativa à norma que concedia ao Conselho Superior da Magistratura a possibilidade de proibir o exercício de actividades estranhas à função, mesmo que não remuneradas, desde que, pela sua natureza, fossem susceptíveis de afastar a independência e a dignidade da função judicial.
Isto, antes de mais, porque então estavam em causa actividades não profissionais e se colocava o problema da sua restrição, no
âmbito dos direitos, liberdades e garantias, por forma casuística, que poderia vir a ser diversa nas diferentes ordens de tribunais; e, ademais, tal matéria integrava-se na reserva legislativa da Assembleia da República, por respeitar ao
“estatuto dos juízes”.
Assim, no caso dos autos justifica-se uma relativamente menor determinabilidade da lei, pois não só não está em causa esta dimensão da reserva, como o problema se reconduz ao regime de incompatibilidades adveniente de uma acumulação de actividades profissionais.
III
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 15 unidades de conta.
Lisboa,21 de Dezembro de 2001 Alberto Tavares da Costa José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida