Imprimir acórdão
Processo n.º 613/2012
1ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A. e B. foram condenados, no 2º juízo criminal do tribunal judicial de Vila Nova de Gaia, em pena de prisão, suspensa na sua execução, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social. Recorreram os arguidos para o Tribunal da Relação do Porto, o qual, por acórdão datado de 20 de junho de 2012, julgou improcedente o recurso e confirmou a decisão recorrida.
Da decisão proferida pelo Tribunal da Relação recorreram os arguidos para o Tribunal Constitucional, por intermédio de um requerimento com o seguinte teor:
1. Por sentença depositada em 21 de junho de 2010, proferida pelo 2.º Juízo Criminal de Vila Nova de Gaia, no âmbito do processo n.º 6651 /08.8TAVNG, os ora RECORRENTES foram condenados pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelo artigo 107.º, n.º 1, da Lei n.º 15/2001, de 5 de junho (RGIT). Inconformados com a decisão proferida, os aqui RECORRENTES interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto, tanto da matéria de facto, como da matéria de Direito.
2. Por acórdão de 20 de junho de 2012, embora alterando diversos pontos da matéria de facto no sentido pretendido pelos RECORRENTES, o Tribunal da Relação do Porto considerou improcedente a apelação, mantendo a sentença recorrida.
3. Entendeu o Tribunal da Relação do Porto, no que aqui importa, que a ilicitude da conduta dos Recorrentes não poderia considerar-se afastada por via do instituto do conflito de deveres previsto no artigo 36.º do Código Penal (CP).
4. Manteve, assim, o Tribunal da Relação do Porto a aplicação da norma inconstitucional criada pelo Tribunal de Primeira Instância, segundo a qual: “A causa de exclusão do artigo 36.º do CP não é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, pelo facto de a obrigação de entrega das contribuições ser uma obrigação legal e, por isso, sempre superior à obrigação de manter as empresas em atividade, pagando as suas despesas correntes, designadamente a obrigação de pagamento dos salários dos trabalhadores”.
5. Norma que sobressai da sentença, ao afirmar-se que: “os superiores interesses do Estado e da coletividade subjacentes à cobrança de impostos/tributos e à sua obrigatoriedade de pagamento por parte dos contribuintes […] sobrepõem-se claramente ao dever de cumprimento dos contratos e aos interesse na sobrevivência económica e financeira de uma entidade particular […]” (p. 18 da Sentença).
6. E que sobressai no Acórdão do Tribunal da Relação na seguinte passagem: “No caso, os recorrentes viram-se «divididos» entre o dever de entregar à Segurança Social as quantias descontadas nos salários dos trabalhadores da sociedade recorrente e o dever de manter esta em atividade, pagando as suas despesas correntes de funcionamento, mormente aqueles salários. A superioridade do primeiro daqueles deveres parece-nos evidente […]. Por outro lado, as obrigações ficais têm natureza legal, enquanto que as obrigações para com trabalhadores (ou fornecedores) têm natureza contratual; por outro, o incumprimento dos primeiros pode gerar responsabilidade contraobrigacional e/ou criminal, enquanto que o mero incumprimento das segundas pode gerar apenas responsabilidade civil; por outro, ainda, no primeiro caso estão em causa interesses de natureza pública, enquanto que no segundo interesses de essencialmente natureza privada. […] Sendo, pois, de menor valor o dever que os recorrentes optaram por cumprir, temos de concluir que a ilicitude da sua conduta não é afastada pelo n.º 1 do art.º 36.º (pp. 21, 24 e 25 do acórdão).”
7. Esta norma - que constitui uma restrição aos princípios gerais de exclusão da ilicitude e da culpa, que decorrem, desde logo, do CP - é inconstitucional por violação do princípio da presunção de inocência, do princípio da igualdade e da proporcionalidade, previstos nos artigos 32.º, n.º 2, 13.º e 18.º, n.º 2, da Constituição, respetivamente, violando igualmente os artigos 3.º, 7.º e 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e os artigos 6.º, n.º 2, e 14.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, restringindo de forma manifestamente desproporcional o direito à liberdade previsto no artigo 27.º da Constituição.
8. Para aplicação do artigo 36.º do CP, tem sempre que se colocar a questão de saber se, no caso concreto, o ARGUIDO podia licitamente cumprir o dever de pagar os salários dos trabalhadores, mantendo a laboração da empresa, em detrimento da entrega das prestações tributárias - dois deveres de índole jurídico-legal. Os deveres conflituantes visam proteger interesses, pelo menos, de igual valor, valorados de uma norma intensa pela ordem jurídica em geral, não se podendo, em abstrato e genericamente, concluir que um prevalece sempre sobre o outo (até pela proteção constitucional de todos os bens jurídicos em presença).
9. Os ora RECORRENTES invocam a inconstitucionalidade da norma nas alegações de recurso (cfr. p. 22, e conclusão XXXIII., das alegações).
2. Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de novembro: LTC), decidiu-se sumariamente não conhecer do objeto do recurso, quer por se entender que a “norma” cuja inconstitucionalidade se pedia que o Tribunal apreciasse não vinha claramente reportada a um certo preceito legal, quer por se entender que, de todo o modo, não havia coincidência entre a questão de constitucionalidade que se suscitara durante o processo (nas alegações apresentadas perante o tribunal que proferira a decisão recorrida) e aquela outra que agora, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, se pedia que o Tribunal Constitucional apreciasse.
Mais precisamente, e quanto a este segundo fundamento, disse-se:
“[A] dimensão normativa que integra o objeto do presente recurso, tal como delimitado pelos recorrentes no requerimento de interposição do mesmo, não coincide, de todo em todo, com a norma indicada na Conclusão XXXIII das alegações do recurso interposto para o tribunal a quo. Com efeito, enquanto nesta última se questiona a exclusão da aplicação das causas de exclusão da ilicitude e da culpa ao caso dos autos, já a norma indicada pelos recorrentes no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade pressupõe justamente a aplicação das causas da ilicitude e da culpa (embora, em ponderação, se determine pela não verificação dos seus pressupostos).” (fls. 539 dos autos).
3. É desta decisão que agora se reclama, nos termos do disposto pelo nº 3 do artigo 78.º-A da LTC.
A reclamação tem o seguinte teor:
1. Peticionaram os Recorrentes, no seu requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a declaração de inconstitucionalidade da norma criada pelo Tribunal a quo, e mantida pelo Tribunal da Relação do Porto, no sentido de que “a causa de exclusão do artigo 36.º do CP não é aplicável ao crime de abuso de confiança fiscal contra a segurança social, pelo facto de a obrigação de entrega das contribuições ser uma obrigação legal e, por isso, sempre superior à obrigação de manter as empresas em atividade, pagando as suas despesas correntes, designadamente à obrigação de pagamento dos salários dos trabalhadores”.
2. Segundo a decisão sob reclamação, a questão que os Recorrentes pretendam ver apreciada não se reportaria a nenhum precito legal individualizável.
3. A identificação dessa base legal constituiria, segundo a decisão reclamada, um momento insuprível do controlo da constitucionalidade de uma norma.
4. Ora, tendo os Recorrentes alegadamente incumprido tal pressuposto, considerou a referida decisão sumária que não poderia conhecer do objeto do recurso.
5. No entendimento dos Recorrentes, que ora se pugnará, não assiste razão para uma tal decisão, uma vez que o preceito legal a que a questão de inconstitucionalidade se reporta está devidamente individualizado.
6. É que os Recorrentes arguiram a inconstitucionalidade do artigo 36.º do Código Penal, quando interpretado no sentido ínsito, tanto na decisão do Tribunal de 1.ª Instância, como no acórdão do Tribunal da Relação – formulando corretamente a norma a apreciar pelo Tribunal Constitucional.
7. Na verdade, consta da conclusão XXIII do recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto o seguinte: “Não é legítimo defender-se, como se faz na sentença recorrida, que o dever legal de pagar as contribuições à Segurança Social (e os impostos) se sobrepõe ao dever de pagar aos trabalhadores”.
8. Por seu turno, na conclusão XXIV, refere-se que “a ilicitude da conduta dos ARGUIDOS está, como tal, afastada, devendo os mesmo ser absolvidos do respetivo crime e, consequentemente, do pedido cível deduzido pelo ASSISTENTE, nos termos do disposto no artigo 36.º, n.º 1, do CP”.
9. E, finalmente, na conclusão XXXIII, os Recorrentes escreveram que “ao excluir-se a aplicação das causas de exclusão da ilicitude e da culpa nos casos em que os gerentes, não podendo cumprir as duas obrigações em concurso, procedem ao pagamento dos salários dos trabalhadores, em detrimento do pagamento das contribuições à Segurança Social, como faz o Tribunal a quo, cria-se uma norma inconstitucional por violação do princípio da presunção da inocência, do princípio da igualdade e da proporcionalidade, previstos nos artigos 32.º, n.º 2, 13.º, 18.º, n.º 2, da CRP, respetivamente, violando igualmente os artigos 6.º, n.º 2 e 14.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”.
10. De onde resulta que a base legal à qual se imputa a norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada é precisamente o artigo 36.º do Código Penal – preceito legal que surge perfeitamente identificado.
11. Simplesmente, a decisão sumária de que ora se reclama centrou a sua atenção somente na conclusão XXXIII das alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto, sendo certo que esse ponto não esgota nem consome a invocação da norma inconstitucional (cf. ponto 5 do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional).
12. Dito isto, salvo melhor opinião, não pode o recurso interposto para o Tribunal Constitucional ser recusado com fundamento na circunstância de os Recorrentes não terem reportado a questão de inconstitucionalidade a um preceito legal individualizável, como se conclui com clareza das conclusões XXIII, XXIV e XXXIII do recurso interposto para o Tribunal da Relação e do ponto 4 do recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
13. Mais acrescenta a decisão sumária que, “independentemente deste facto, (mesmo que, por hipótese, tal norma tivesse sido devidamente reportada a determinado preceito legal), sempre se haveria de entender que a dimensão que integra o objeto do recurso de constitucionalidade, tal como delimitado pelos recorrentes no requerimento de interposição do mesmo, não coincide, de todo em todo, com a norma indicada na Conclusão XXXIII das alegações de recurso interposto pata o tribunal a quo”.
14. Segundo a decisão sob reclamação, enquanto que nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação se questiona a exclusão da aplicação das causas de exclusão da ilicitude e da culpa ao caso dos autos, na “norma indicada pelos recorrentes no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade pressupõe justamente a aplicação das causa de exclusão da ilicitude e da culpa (embora, em ponderação, aplicando-as, se determine pela não verificação dos seus pressupostos)”.
15. Também neste segmento têm os Recorrentes de discordar da decisão reclamada.
16. A questão de inconstitucionalidade suscitada, quer no Tribunal de 1.ª. Instância, quer no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, é somente uma, a saber: a inconstitucionalidade do artigo 36.º do CP quando interpretado no sentido de se dever excluir as consequências decorrentes da aplicação desse mesmo dispositivo legal (afastar o caráter ilícito da conduta), por se considerar que a obrigação legal de entregar as contribuições à Segurança Social é sempre superior à obrigação de manter as empresas em atividade, pagando as suas despesas correntes, designadamente à obrigação de pagamento dos salários dos trabalhadores.
17. Esta interpretação encerra em si mesma a ponderação abstrata, aplicável em todas as situações em que estão em confronto dois deveres desta natureza, concluindo sempre pela prevalência de uma determinada obrigação legal, a que se atribui maior peso, sem a devida fundamentação, sobre outra obrigação legal, pressupondo, nessa medida, o não afastamento da ilicitude da conduta que é imputada ao arguido em processo penal.
18. Ora, é precisamente contra essa interpretação, que afasta a aplicação de uma causa de exclusão da ilicitude sem uma ponderação fundamentada dos dois deveres em presença no contexto do caso concreto, efetuada pelo Tribunal de 1.ª Instância e mantida pelo Tribunal da Relação do Porto, que os Recorrentes se insurgem, pugnando pela inconstitucionalidade da norma então criada, tomando precisamente por referência o artigo 36.º do CP.
19. Esta questão é suscitada, tal qual, quer nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação, quer no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
20. Ou seja, quando na motivação de recurso pra o Tribunal da Relação do Porto, e respetivas conclusões, os Recorrentes se referem à exclusão da aplicação das causas de ilicitude e da culpa, não querem referir-se à sua exclusão tout court, desprovida de qualquer ponderação.
21. Simplesmente advogam que é contrário à Constituição considerar que nunca existe conflito de deveres quando, à obrigação legal de pagamento de impostos ou contribuições se opõe qualquer outra obrigação legal ou não legal.
22. O objeto do recurso de constitucionalidade, tal como delimitado pelos Recorrentes no requerimento de interposição de recurso, coincide, efetivamente, com a norma indicada na Conclusão XXXIII das alegações de recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto, porquanto a questão manteve-se sempre inalterada – o grau superlativo da referida obrigação legal em detrimento de todas as demais obrigações, como modo de excluir a existência de uma situação de conflito de deveres.
23. Assim, não pode igualmente, o recurso interposto para o Tribunal Constitucional ser recusado com base neste último fundamento.
4. Notificado da reclamação, veio o Ministério Público no Tribunal Constitucional pugnar, com dúvidas, pela sua admissibilidade. Por um lado, entendeu que se não podia assertivamente concluir que os requerentes tivessem, no requerimento de interposição do recurso, identificado com o rigor necessário a norma objeto do mesmo; mas, por outro lado, não deixou de reconhecer razão aos reclamantes, na parte em que estes alegam que “a questão de constitucionalidade suscitada, quer no tribunal de 1ª Instância, quer no requerimento de interposição do recurso, é só uma”.
Com efeito, concluiu assim o Ministério Público:
(…)
É um facto, que a forma como a questão de constitucionalidade foi apresentada, pelos recorrentes, no recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto, não é exatamente a mesma utilizada no recurso posteriormente interposto para este Tribunal Constitucional: dubitativa, no primeiro caso, mais assertiva, no segundo.
Poder-se-á, por isso, tal como o fez a Decisão Sumária agora reclamada, considerar que tal questão, na sua primitiva formulação, acabou por não integrar, formalmente, a ratio decidendi do acórdão recorrido.
Julga-se, todavia, que o sentido é o mesmo, em ambos os casos, pelo que tal fundamento - de a questão de constitucionalidade não integrar a ratio decidendi do acórdão recorrido - não deveria, no entender deste Ministério Público, servir de fundamento para não conhecer do objeto do recurso de constitucionalidade interposto.
(…)
Assim, embora com algumas dúvidas, conclui-se que a reclamação para a conferência, em apreciação, poderá merecer provimento, reponderando-se, desta forma, o sentido da Decisão Sumária 496/12, de 25 de outubro, que determinou a sua apresentação.
Cumpre apreciar e decidir
II – Fundamentação
5. A questão que os ora reclamantes colocam ao Tribunal está longe de ser, para a sua jurisprudência, nova. Pelo menos nos Acórdãos nºs 312/2011 e 577/2012 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), ambos tirados em Conferência, teve o Tribunal a ocasião de fundamentar por que razão, quanto a requerimentos de interposição de recursos em que se colocavam problemas próximos do recortado nos presentes autos, não podia o Tribunal conhecer do respetivo objeto, nos termos, desde logo, do disposto no artigo 70.º, nº 1, alínea b) da LTC.
Com efeito, no Acórdão nº 312/2011 esteve em causa requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade em que se apresentava o seguinte pedido:
[que o Tribunal aprecie] a inconstitucionalidade material da norma constante do art. 36.º do Código Penal, na interpretação segundo a qual o dever de pagar impostos e prestações à Segurança Social e o dever de retribuição do trabalho e/ou pagamento de despesas essenciais para a continuidade da laboração, optando o empregador pelo dever de pagar os salários, não é considerada uma verdadeira neutralização da ilicitude da conduta, por intervenção da causa de exclusão da ilicitude do conflito de deveres, por violação do princípio da subsidiariedade do direito penal e do respeito pela ordem axiológica constitucional, bem como do direito constitucionalmente protegido dos trabalhadores à retribuição previsto no art. 59.º da CRP:
Por seu turno, no Acórdão nº 577/2012, pedia-se que o Tribunal apreciasse (para além de outra) a seguinte “norma”:
(…) no que respeita à aplicação do artigo 36.° do CP, o Tribunal da Relação do Porto manteve, ainda, a aplicação da norma inconstitucional criada pelo Tribunal de Primeira Instância, segundo a qual: «a causa de exclusão do artigo 36.° do CP não é aplicável ao crime de abuso de confiança fiscal, pelo facto de a obrigação de pagamento de impostos ser uma obrigação legal e, por isso, sempre, independente das circunstâncias do caso concreto, superior à obrigação de manter as empresas com os pagamentos em dia, nomeadamente à obrigação dos pagamentos dos salários dos trabalhadores».
Em relação a ambos os pedidos, foi decidido que o Tribunal não conheceria do objeto do recurso por se não encontraram reunidos os respetivos pressupostos de admissibilidade. Para tanto, foi dada no Acórdão nº 577/2012 a seguinte fundamentação:
7. No que respeita à segunda questão colocada, importa começar por recordar a delimitação decorrente da formulação apresentada pelo recorrente, na sequência do convite ao aperfeiçoamento que lhe foi dirigido. Pretende o recorrente ver apreciada «a aplicação da norma inconstitucional criada pelo Tribunal de Primeira Instancia, segundo a qual: ”a causa de exclusão do artigo 36.º do CP não é aplicável ao crime de abuso de confiança fiscal, pelo facto de a obrigação de pagamento de impostos ser uma obrigação legal e, por isso, sempre, independente das circunstâncias do caso concreto, superior à obrigação de manter as empresas com os pagamentos em dia, nomeadamente à obrigação dos pagamentos aos salários aos trabalhadores”».
7.1. Na decisão sumária reclamada entendeu-se que o recorrente colocava questão estritamente contida no domínio interpretativo infraconstitucional, a saber, a verificação dos pressupostos da causa de exclusão da ilicitude jurídico-penal contemplada no artigo 36.º do Código Penal. E, assim sendo, decidiu-se que o recorrente não colocara questão de constitucionalidade normativa dirigida ou suportada em interpretação do artigo 36.º do Código Penal, com a consequente inverificação de pressuposto exigido para o conhecimento do recurso, nessa parte.
O recorrente insurge-se contra esse entendimento, dizendo, no essencial, que não questionou, nesta sede, a bondade da decisão quanto à sua situação em concreto, mas sim «a conformidade constitucional do preceito interpretado no sentido de considerar, à partida, um determinado dever superior a outro». A questão normativa de constitucionalidade radica, na ótica do recorrente, em que, na interpretação do Tribunal a quo, «é como se tal exclusão decorresse diretamente da norma aplicável ao caso».
Porém, essa leitura não se mostra conforme com os termos da decisão recorrida, na sua relação com o disposto no art.º 36.º, n.º 1 do Código Penal e equação dos respetivos pressupostos, face ao caso em presença. Em especial, não se descortina qualquer posição de partida, apriorística, que releve como introdução de pressupostos não escritos no referido preceito.
Vejamos.
7.2. Dispõe o n.º 1 do artigo 36.º do Código Penal que não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas de autoridade, satisfaz dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrifique.
Essa previsão contempla autonomamente no ordenamento penal o conflito de deveres, configurado como tipo justificador. Comungando da natureza de instrumento delimitador (negativo) do conteúdo de ilícito, funcionalmente complementar do tipo incriminador, ainda que estruturalmente distinto, própria das causas de justificação (Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2007, pp. 384-387 e segs.; e Temas Básicos da Doutrina Penal, 2001, pp. 220-225), o conflito de deveres juridico-penalmente relevante encontra-se, nos termos do artigo 36.º, n.º 1 do Código Penal, condicionado no seu efeito justificador a diversos pressupostos.
Radica aí, na distinção entre a configuração – abstrata - dos pressupostos estabelecidos pelo artigo 36.º, n.º1 do Código Penal para a atuação da causa de justificação e o momento ulterior da sua aplicação ao caso concreto, o cerne da discordância do recorrente relativamente ao entendimento afirmado na decisão sumária.
7.3. A argumentação do recorrente na reclamação, reafirmada na resposta à notificação que lhe foi dirigida, assenta na seguinte linha de raciocínio: i. A sentença considerou que o artigo 36.º do Código Penal não é aplicável ao crime de abuso de confiança, pelo facto da obrigação de pagamento de impostos ser uma obrigação legal; ii. O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto afastou igualmente a aplicação do artigo 36.º do Código Penal por entender que tal disposição legal não tinha lugar quando um dos deveres em causa é constituído pela obrigação legal de pagar impostos, face ao que intitula de «dever funcional das empresas manterem os pagamentos em dia, designadamente o pagamento dos salários»; iii) Por fim, em jeito de conclusão, considera-se que o «Tribunal recorrido afasta a verificação do conflito de deveres sempre que estão em confronto os deveres supra identificados, independentemente de qualquer circunstância concreta».
Denota-se, logo, nesta argumentação, e em particular na sua conclusão, duas afirmações contraditórias: o Tribunal não teria verificado a presença de conflito de deveres, o que encontra correspondência na crítica de que teria sido afirmado, e aplicado, critério normativo de exclusão do perímetro do tipo justificador, fundado na presença do «dever de pagar impostos»; mas, ao mesmo tempo, o recorrente procura sustentar a ilegitimidade da consideração de «um dever superior a outro», o que passa por admitir que, afinal, o Tribunal a quo considerou a presença de deveres concorrentes.
7.4. Com efeito, e a contrário do que afirma o recorrente, a decisão recorrida acolhe a verificação no caso de vários deveres de ação, contemporaneamente incidentes sobre o recorrente: o dever jurídico-penal de entregar as prestações tributárias, por um lado, e os deveres assumidos na esfera empresarial, incluindo a obrigação de pagamento de salários a trabalhadores, por outro. Esse entendimento encontra expressão literal na alusão a «dois deveres» e resulta igualmente da remissão fundamentadora para o Acórdão do STJ de 13/12/2001 (Processo 01P2448; sumariado em www.dgsi.pt).
Diz-se nesse Acórdão: «O conflito de deveres que exclui a culpa é, necessariamente, um conflito de deveres para com os outros. Por isso, na atuação dos arguidos, que integraram montantes de IVA liquidados no património da sociedade de que eram sócio gerentes, e os afetaram a outras finalidades, para assegurar a continuação da laboração da empresa, designadamente ao pagamento dos salários dos trabalhadores, não se verifica qualquer conflito de deveres juridicamente relevante; com efeito, um dos deveres conflituantes – o de assegurar o funcionamento do negócio – não é alheio mas próprio (a satisfação do interesse dos trabalhadores é secundária relativamente à daquele interesse próprio prevalente)».
Assim, o entendimento de que a o Tribunal da Relação do Porto não chegou a equacionar a figura do conflito de deveres pois, à partida, recusou a ponderação do disposto no artigo 36.º do CP, na sua função de tipo justificador, ou contratipo, por decorrência da verificação de uma obrigação legal de índole tributária, invariavelmente superior a outros deveres ou obrigações, não encontra correspondência com a decisão recorrida.
7.5. Mas, não se fica por aí a ausência de identidade entre o fundamento decisório acolhido pelo Tribunal a quo e a questão colocada à apreciação deste Tribunal.
Aceitando, como se viu, a concorrência de distintos deveres de ação, o Tribunal a quo procedeu à ponderação dos específicos interesses em conflito e concluiu que os deveres em colisão com o dever sacrificado não assumiam, na sua ótica, «idêntica natureza», em função da tutela do que considerou «interesse patrimonial próprio». E, por decorrência dessa concreta valoração, concluiu que não se encontravam preenchidos os pressupostos de atuação da causa de justificação tipificada no artigo 36.º do Código Penal.
Assim, a decisão recorrida, ao contrário do que se pretende no requerimento de interposição de recurso, não sustenta o seu juízo na fonte da obrigação, mormente numa dicotomia entre a natureza de obrigação legal do pagamento de impostos e outras obrigações. Como se disse, o afastamento do tipo justificador decorreu de outras razões, a saber, da prevalência do dever sacrificado, pela sua natureza de interesse patrimonial alheio, sobre outros interesses patrimoniais próprios conflituantes, tidos como incluindo os deveres para com os trabalhadores e para com os credores em geral.
7.6. Não colhe, por outro lado, o entendimento de que, ao confirmar a decisão da 1ª instância, o Tribunal a quo renovou a mesma ratio decidendi. Como se explicitou supra, os fundamentos são distintos, embora suportem o mesmo sentido decisório, de inverificação de conflito de deveres justificante da atuação típica penal, face ao disposto no artigo 36.º, n.º1 do Código Penal.
7.7. Aqui chegados, perfilam-se dois fundamentos para o não conhecimento do recurso interposto, no que respeita à segunda questão colocada.
7.7.1. Com efeito, afastada, como se demonstrou, qualquer posição apriorística por parte do Tribunal a quo, suscetível de configurar critério normativo extraído interpretativamente do preceituado no artigo 36.º, n.º1 do Código Penal, deparamos com questão dirigida verdadeiramente à definição in casu do dever de atuação jurídico-penalmente prevalente.
Essa ponderação constitui, como se entendeu na decisão sumária, operação de subsunção do caso concreto à previsão normativa do artigo 36.º do Código Penal, numa das suas vertentes essenciais: igualdade ou superioridade do dever satisfeito. E, ao invés do que pretende o reclamante, não constitui ponto de partida mas sim ponto de chegada, construído em função dos concretos deveres em conflito e da sua hierarquização, no quadro da situação global dos autos.
Assim, apesar do reclamante sustentar que não questionou a bondade da solução encontrada, esse é, efetivamente, o objeto que delimitou no recurso de constitucionalidade, dirigido a questionar o ato de julgamento, na sua dimensão de aplicação ao caso concreto do artigo 36.º, n.º 1 do Código Penal (cfr., perante problema similar ao destes autos, o Acórdão n.º 312/2011).
Ora, como se disse na decisão sumária, a discussão interpretativa infraconstitucional e a definição do melhor Direito encontra-se vedada a este Tribunal Constitucional.
Cumpre, pelo exposto, confirmar a decisão sumária de não conhecimento também dessa questão, por não constituir questão de constitucionalidade normativa.
7.7.2. Ainda que assim não fosse, pelas mesmas razões afirmadas quanto à inadmissibilidade da primeira questão colocada no recurso de constitucionalidade, denota-se a ausência de outro dos pressupostos do recurso em apreço, na medida em que a interpretação que se pretende questionar não integra a ratio decidendi do Acórdão recorrido.
Ausente o pressuposto de efetiva aplicação pela decisão recorrida da interpretação cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, sempre se encontra afastada a cognoscibilidade do recurso nessa parte, face ao disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
6. Nenhum motivo há para que se não reitere, no presente caso, esta fundamentação.
Na sua reclamação, vêm os ora reclamantes sustentar, basicamente, que é claro qual o preceito legal no qual sediam a norma cuja inconstitucionalidade pretendem que o Tribunal aprecie; e que, para além disso, se perfazem, in casu, os restantes pressupostos de admissibilidade dos recursos interpostos para o Tribunal ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70.º da LTC, uma vez que a norma na qual o tribunal a quo fundou a sua razão de decidir é a mesma norma cuja inconstitucionalidade (arguida durante o processo) se pretende agora que o Tribunal Constitucional aprecie.
No entanto, vale também para os presentes autos o que se disse no Acórdão nº 577/2012.
O artigo 36.º, nº 1do Código Penal prevê as circunstâncias em que pode ocorrer um conflito de deveres, o que, a verificar-se, exclui a ilicitude de certo comportamento, que, de outro modo, seria penalmente censurável. Todavia, tal previsão de circunstâncias – que se consubstancia num quadro abstrato de pressupostos – só pode atuar como causa justificativa mediante a ponderação que, nos casos concretos, o juiz da causa vier a fazer entre os diversos deveres que se apresentem em confronto.
Sendo assim – e uma vez que também aqui, nos presentes autos, se mostra impossível afirmar que o juízo proferido pelo tribunal a quo se sustentou numa “valoração” fixa feita a priori, suscetível de “dispensar” a necessária ponderação casuística dos concretos deveres em confronto – o que os reclamantes pedem ao Tribunal Constitucional é, ao fim e ao cabo, resposta para a questão de saber qual seja a melhor interpretação do direito ordinário. Mas essa é tarefa que, como bem sabe, a ordem jurídica não comete à justiça constitucional.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a reclamação. Custas pelos reclamantes, fixadas em vinte (20) unidades de conta da taxa de justiça.
Lisboa, 22 de maio de 2013. – Maria Lúcia Amaral – José da Cunha Barbosa – Joaquim de Sousa Ribeiro.