Imprimir acórdão
Processo nº 435/01
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, proferiu o Relator a seguinte Decisão Sumária:
'1. A B..., S. A., veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional, ‘ao abrigo da al. b) do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional’, relativamente aos ‘doutos acórdãos’ de 15-03-2001 e de 10-05-2001, do Supremo Tribunal de Justiça, dizendo logo no respectivo requerimento que a ‘questão da inconstitucionalidade foi suscitada na peça de reclamação nos termos dos arts
668º e 669º nº 2 do CPC contra o douto acórdão de 15-03-1001, sendo certo que, perante o que vinha apurado e considerado das instâncias, era absolutamente imprevisível que o douto acórdão ora recorrido viesse a considerar ter sido a própria ré quem praticou os factos’. E depois acrescenta de útil no mesmo requerimento, após fazer um relato quanto à matéria de facto:
‘7- Ora, a questão de constitucional idade é saber se em tais circunstâncias a norma do art.729º do CPC admite o julgamento definitivo da causa e, se assim for, por permitir que sejam julgados pelo Supremo factos que não aconteceram em oposição aos fixados pelas instâncias há ou não violação de normas e princípios constitucionais, constantes do art. 6° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e nos arts 20º , 205º e 208º da Constituição. Nesta divergência sobre quem praticou os factos pode prevalecer o entendimento do Supremo, diverso do das instâncias, e a causa ser definitivamente julgada com base no que não aconteceu (numa ficção da realidade ), quando as instâncias definiram o que aconteceu? Ou a norma que permitir julgar o que não aconteceu - o que aconteceu foi determinado pelas instâncias - viola o direito constitucional ? No caso em apreço, ou o Supremo usurpa poderes das instâncias, ou no mínimo há dúvida sobre o que aconteceu. E sendo assim, é constitucional a norma que permite o julgamento definitivo ? A recorrente entende que a norma viola o direito constitucional referido ao permitir que o Supremo julgue factos que as instâncias não apuraram ou na dúvida sobre os factos que aconteceram.
8- O douto acórdão ora recorrido face aos factos referidos fez a ponderação seguinte:
‘A não ser que tais expressões possam e devam ser entendidas no sentido que normalmente, se utiliza quando alguém promove uma construção para si próprio. Isto é, quando alguém constrói, independentemente de o fazer de modo directo ou por intermédio de outrem, ainda que seja através de empreiteiro diz-se que ‘está a construir’ um edifício ou qualquer outra obra’. Por sua vez a própria A. havia já considerado na conclusão 4, das suas contra-alegações de apelação:
‘está assente que o empreiteiro - procedeu ao depósito de terras num terreno pertencente à Quinta do Olival’. O art. 729º sofre da referida inconstitucionalidade por autorizar que o Supremo fixe aos factos um sentido contrário àquele que as instâncias e as partes lhes atribuem. Viola o direito constitucional de defesa, ínsito no art. 20º, a norma processual referida, ao consentir que - fixando as instâncias um sentido dos factos, aceite pela A., com o qual as instâncias e as partes estão todos de acordo - o Supremo lhes fixe sentido contrário. Isto ao mesmo tempo que admite que os factos podem ter o sentido com o qual todos concordam e lhes atribuem. A referida norma processual, ao admitir essa intromissão do Supremo na fixação do sentido dos factos - contrário ao acordo das partes com o sentido fixado, e julgado, pelas instâncias - ofende o direito de defesa da recorrente e sofre por isso de inconstitucionalidade. Tendo a própria A. concedido com o sentido dado pelas instâncias, de que aqueles factos foram praticados pelo empreiteiro não pode essa concessão ser, pelo Supremo, retirada à ré, sem que a norma em causa ofenda o seu direito constitucional de defesa’
2. Vê-se aqui que, por um lado, a norma em causa é a do artigo 729º do Código de Processo Civil, relativamente aos termos em que julga o tribunal de revista quanto à matéria de facto, e, por outro lado, o acórdão recorrido só pode ser o de 10 de Maio de 2001, pois é a própria recorrente a invocar que a ‘questão da inconstitucionalidade foi suscitada na peça de reclamação nos termos dos arts
668º e 669º nº 2 do CPC contra o douto acórdão de 15-03-1001’. Sendo isto assim, e no quadro do tipo de recurso de constitucionalidade interposto pela recorrente, tudo está em saber, como ela diz, se ‘era absolutamente imprevisível que o douto acórdão ora recorrido viesse a considerar ter sido a própria ré quem praticou os factos’. Ora, parece que não, pois o artigo 729º é fundamental na consideração em globo de um recurso de revista, como vem desenhado no presente caso, e a parte recorrente tem o ónus de confrontar o tribunal ad quem com as questões atinentes
à decisão de facto. A recorrente, porém, não o fez, quando podia e devia fazê-lo, na medida em que nas alegações do recurso de revista foca exactamente a matéria de facto fixada pelas instâncias – é o próprio Supremo Tribunal de justiça a dizer que o
‘objecto do recurso, como decorre das conclusões da revista, está confinado à questão de saber se os danos decorrentes dos depósitos de terras entulho na Quinta do Olival, devem, ser tidos como causados por actividade integrada nos trabalhos concessionados ou, se pelo contrário, tal actividade é alheia à empreitada e respeita a um outro acordo entre o empreiteiro e terceiro não necessariamente abrangido na execução do projecto’-, mas não discute a interpretação e a aplicação do artigo 729º, no plano da sua
(in)constitucionalidade (sendo essa norma in casu previsivelmente aplicada na decisão do Supremo, saber se ela autoriza ou não a ‘intromissão do Supremo na fixação do sentido dos factos’, talqualmente se exprime a recorrente, era um ponto que poderia ser perfeitamente avançado nas alegações do recurso de revista). Só no requerimento apresentado ‘nos termos dos arts 668º e 669º nº 2 do CPC’, pedindo a reforma do acórdão de 15 de Março de 2001, adiantou que ‘o processo não pode ser definitivamente julgado com base em factos inverídicos quando contém em si elementos suficientes de determinação e apuramento dos factos verdadeiros’ e, se tal acontecesse, ‘por permitido na aplicação das normas dos arts. 722º nº 2 e 729º, nº 3, teria então forçosamente de se concluir pela inconstitucionalidade delas, por violação do disposto no art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e nos arts. 20º, 205º e 208º da Constituição’ (e ainda que se admita, por mera hipótese e comodidade de raciocínio, ser este um modo processualmente adequado de suscitar uma questão de inconstitucionalidade normativa, tal poderia ser feito logo nas alegações do recurso de revista). Tudo basta para concluir não poder tomar-se conhecimento do presente recurso, por não ter sido respeitado o pressuposto específico da suscitação de questão de inconstitucionalidade durante o processo.
3. Termos em que, DECIDINDO, não tomo conhecimento do recurso e condeno a recorrente nas custas, com a taxa de justiça fixada em sete unidades de conta.' B. Veio a recorrente, 'nos termos do artº 78º-A, nº 3 da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, alterada pela Lei nº 143/85, de
26 de Novembro, pela Lei (Orgânica) nº 85/89, de 7 de Setembro, pela Lei
(Orgânica) nº 88/95, de 1 de Setembro, e pela Lei (Orgânica) nº 13º-A/98, de 26 de Fevereiro), dela reclamar para a conferência', pretendendo sustentar, no essencial, que '[N]ão tendo havido possibilidade de a recorrente antecipar a linha de raciocínio do Supremo Tribunal de Justiça e a tal se opor nas alegações, dado que surge de forma totalmente inesperada na decisão final - e não, como referido na douta decisão sumária recorrida, antes dela - não dispôs a recorrente de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade durante o processo, isto é, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal ‘a quo’ sobre a matéria a decidir, pelo que lhe assistirá ainda o direito ao recurso de constitucionalidade (cfr. Ac. TC de
17.04.97).' Para o efeito, a recorrente alinha a seguinte ordem de considerações:
'Com efeito, o que releva para efeitos de verificação da referida situação excepcional que justifica a dispensa do ónus de suscitar a questão de inconstitucionalidade antes da decisão final do .processo não é a delimitação do objecto do recurso de revista (correctamente) feita pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 15 de Março de 2001, a fls. 596 e 597, que a decisão transcreve a fls. 669 (matéria de direito ), mas sim o que, surpreendentemente, em matéria de facto, é referido por esse Supremo Tribunal a fls. 601 e 602 do mesmo acórdão. Efectivamente, o Supremo Tribunal de Justiça veio a concluir a fls. 601 e 602 do acórdão de 15 de Março de 2001 que fora a recorrente a realizar materialmente os trabalhos (desaterros, movimentos de terra e depósitos de entulhos), ao arrepio da matéria de facto assente nas instâncias, a saber, que fora entidade contratada pela recorrente no âmbito da concessão da construção da auto-estrada Porto-Amarante (Base I do Dec-Lei n° 351/91, de 20 de Agosto), lanço Amarante-Penafiel, ou seja, Bento Pedroso Construções, S.A, por contrato de empreitada celebrado em seis de Dezembro de 1993, cfr. doc. de fls 51 a 85, quem materialmente realizou os trabalhos - e não a própria recorrente.
(...) Por via deste inesperado atalho em matéria de facto, não entrou, assim, o Supremo Tribunal de Justiça na questão de direito que demarcara como objecto do recurso de revista, a saber, se os trabalhos se encontravam abrangidos pela concessão e compreendidos no plano geral da obra ou se eram alheios à empreitada contratada e respeitantes a um acordo celebrado com terceiro no puro âmbito da autonomia privada do empreiteiro. Assim sendo, com a conclusão precipitada e contrária à matéria de facto fixada nas instâncias, o Supremo Tribunal de Justiça suprimiu a real questão, que, assim, ficou por decidir .
É óbvio, a todos os títulos, que nenhuma parte pode esperar que o Supremo Tribunal de Justiça - tribunal de revista - modifique a matéria de facto fixada pelas instâncias, pelo que não é, de todo, razoável exigir que a recorrente antecipasse a orientação daquele Supremo Tribunal, mediante juízo de prognose coincidente, arguindo a inconstitucionalidade da interpretação normativa do art.
729° do Código de processo Civil por violação dos artigos 20°, 205° e 208° da CRP e do art. 6° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (ex vi art. 16° da CRP) em momento anterior à decisão final.' C. Não foi apresentada nenhuma resposta da parte recorrida. D. Cumpre decidir. A argumentação da recorrente, apostada agora em demonstrar que afinal não dispôs
'de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade durante o processo, isto é, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal
‘a quo’ sobre a matéria a decidir, pelo que lhe assistirá ainda o direito ao recurso de constitucionalidade', não consegue abalar os fundamentos e a conclusão da Decisão reclamada. Isto porque, e repetindo o que aí ficou dito, conforme, aliás, se colhe do primeiro acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Março de 2001, o Supremo, começando por enunciar que a análise do recurso 'respeita no essencial, a questões relativas aos factos cujo conhecimento, neste plano, está vedado ao Supremo Tribunal por força do que dispõe a norma do nº 2 do art. 722º do CPC', limitou a 'apreciar os factos provados, para o efeito de se avaliar se é ou não a R sujeito da obrigação de indemnizar pelos danos causados à A pelos trabalhos de construção da auto-estrada', para concluir depois que de todos eles 'parece resultar que a questão está resolvida à partida e no sentido da imediata atribuição da responsabilidade à própria R pois é isso que logo decorre da matéria de facto provada' ('Na verdade, provando-se que a R está a proceder à construção do troço da auto-estrada, que, nesse contexto, procedeu a desaterros e ao depósito de terras e entulhos por forma a perturbar o normal curso do ribeiro provocando as inundações e os consequentes prejuízos da R, está-se a imputar directamente, todos os danos causados a uma actividade desenvolvida pela própria R' – acrescentou-se logo a seguir). Ora, a recorrente havia questionado essencialmente nas conclusões das alegações do recurso de revista que as 'respostas aos quesitos 41º e subsequentes podem ser diferentes se o tribunal fizer as constatações, in loco, do depósito de terras e das danificações alegadas pela A.' e que se o Tribunal se tivesse deslocado ao local 'teria imediatamente compreendido a impossibilidade de responsabilizar a R (concessionária da auto-estrada) por eventuais danos provocados por aquela obra do depósito, realizada no desconhecimento da recorrente, muito para fora dos terrenos públicos e por acordo – que não o da concessão – com o proprietário que dela é o verdadeiro dono' ('O depósito de terras está fora do âmbito da empreitada e foi regido por critérios próprios independentes e autónomos das directrizes da empreitada tratando-se, antes, de outra obra com outro dono não podendo a R ser responsabilizada por danos que tal depósito possa ter provocado' – é a afirmação fundamental da recorrente). Daqui resulta que, jogando-se todo o juízo de censura sobre os termos em que julga o tribunal de revista, no quadro legal do questionado artigo 729º, era este aqui fundamental na consideração em globo desse recurso e a parte recorrente tinha o ónus de confrontar o tribunal ad quem com as questões atinentes ao julgamento da decisão de facto (fê-lo nas referidas conclusões, mas sem adiantar um juízo de prognose sobre o sentido da aplicação indispensável in casu desse artigo 729º, nomeadamente quanto a saber se tal preceito 'ao admitir essa intromissão do Supremo na fixação do sentido dos factos - contrário ao acordo das partes com o sentido fixado, e julgado, pelas instâncias - ofende o direito de defesa da recorrente e sofre por isso de inconstitucionalidade', como se expressa a recorrente, apenas no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade). Com o que não pode proceder a presente reclamação. E. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se a reclamação e condena-se a reclamante nas custas, com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta. Lisboa, 20 de Novembro de 2001 Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa