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Processo n.º 746/12
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. e recorrido Banco B., S.A. foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal, de 12 de setembro de 2012.
2. Pela Decisão Sumária n.º 542/2012 decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, do mesmo diploma legal, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto.
Tal decisão, no que agora releva, apresenta a seguinte fundamentação:
“5. O presente recurso suscita questões relativamente a dois requisitos de admissibilidade. A saber:
Ausência de objeto normativo;
Não aplicação da norma pelo Tribunal recorrido.
6. Começa-se por analisar se o recurso tem um objeto normativo.
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, o controlo exercido pelo Tribunal Constitucional tem natureza estritamente normativa, não contemplando a apreciação da conformidade constitucional da decisão judicialmente proferida. O recurso de constitucionalidade delineado pela Constituição não prevê o “recurso de amparo” ou “queixa constitucional”.
Em conformidade, os recursos de constitucionalidade interpostos de decisões de outros tribunais apenas podem ter por objeto “interpretações” ou “critérios normativos” identificados com caráter de generalidade, e nessa medida suscetíveis de aplicação a outras situações, independentemente, pois, das particularidades do caso concreto. A respetiva admissibilidade depende, assim, da identificação da interpretação ou critério normativos – uma regra abstratamente enunciável vocacionada para uma aplicação para lá do caso concreto – cuja desconformidade constitucional se suscita.
Ora tal não ocorre em relação à questão de inconstitucionalidade suscitada pela recorrente relativa à violação da Constituição por parte da decisão recorrida. É verdade que no requerimento de interposição do recurso a recorrente procura formular uma interpretação normativa do artigo 351.º, n.º 1 e n.º 3, do Código do Trabalho. No entanto, o desenvolvimento da formulação adotada no recurso não resiste à particularização do caso concreto. Ao fazer referência ao facto de a recorrente «ter sido despedida por factos ilícitos que não originaram tal sanção disciplinar em outros trabalhadores do Recorrido face a factos ilícitos de igual e até mais grave teor» (cfr. requerimento de recurso, fls. 1480 dos autos), esta refere-se à decisão concreta do Tribunal recorrido e não a qualquer interpretação normativa. Aliás, nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, a recorrente imputa diretamente à decisão recorrida a «violação dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade» (cfr. alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, ponto n.º VI, fls. 1342 dos autos) - por exemplo: «o acórdão recorrido viola o disposto no artigo 53.º da CRP» (cfr. alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, n.º 78, fls. 1342 dos autos); «viola ainda o acórdão recorrido o princípio da proporcionalidade» (cfr. alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, n.º 81, fls. 1343 dos autos); «Está, pois, claramente evidenciada a violação também do princípio constitucional da igualdade por parte do acórdão recorrido» (cfr. alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, n.º 90, fls. 1347 dos autos). A recorrente faz inelutável apelo à decisão que concretizou a mera aplicação da norma às circunstâncias do caso concreto, que reputa de inconstitucional, desta forma eliminando qualquer vislumbre de critério genérico.
A questão colocada encontra-se de tal modo imbricada com os factos concretos em discussão nos autos recorridos – por exemplo, a sanção disciplinar aplicada a outros trabalhadores da recorrida – que perde a sua natureza normativa. Pretende-se, assim, que se sindique o próprio ato de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto. Não se verifica, portanto, um grau de generalidade e abstração suficientes para que se possa dizer que se trata de uma interpretação normativa independente do circunstancialismo estrito dos factos do caso concreto.
A pretensão assim formulada não identifica nenhuma interpretação normativa, limitando-se a remeter para o resultado da interpretação efetuada pelo tribunal. Assim, não apresenta no seu objeto as características de «normatividade» indispensáveis à realização de um controlo de constitucionalidade.
7. Analisa-se, de seguida, a aplicação da alegada norma pelo Tribunal recorrido.
O objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, apenas pode traduzir-se numa questão de (in)constitucionalidade da(s) norma(s) de que a decisão recorrida haja feito efetiva aplicação ou que tenha constituído o fundamento normativo do aí decidido.
Trata-se de um pressuposto específico do recurso de constitucionalidade cuja exigência resulta da natureza instrumental (e incidental) deste recurso, tal como o mesmo se encontra recortado no nosso sistema constitucional, de controlo difuso da constitucionalidade de normas jurídicas pelos vários tribunais, bem como da natureza da própria função jurisdicional constitucional (cf. J. M. M. Cardoso da Costa, A jurisdição constitucional em Portugal, 3.ª edição revista e atualizada, 2007, pp. 31 e ss.).
Na verdade, a resolução da questão de constitucionalidade deverá, efetivamente, refletir-se na decisão recorrida, implicando a sua reforma, no caso de o recurso obter provimento, o que apenas sucede quando a norma cuja constitucionalidade o Tribunal Constitucional aprecie haja constituído a ratio decidendi da decisão recorrida, ou seja, o fundamento normativo do aí decidido.
Ora, no caso dos autos, a recorrente alegou que o Supremo Tribunal de Justiça teria interpretado o «art. 351°, 1 e 3 do Código do Trabalho, na redação da Lei 7/2009, de 12/02, (…) no sentido segundo o qual admite que a Recorrente possa ter sido despedida por factos ilícitos que não originaram tal sanção disciplinar em outros trabalhadores do Recorrido face a factos ilícitos de igual e até mais grave teor e ainda que o ónus da prova relativo à violação do princípio da coerência disciplinar, da igualdade e da proporcionalidade caibam ao arguido num processo disciplinar» (cfr. requerimento de recurso, fls. 1480 dos autos).
Acontece, porém, que esta interpretação nunca existiu. Como afirma o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça: «Na verdade, o que resulta dos procedimentos disciplinares instaurados aos [outros] trabalhadores (…) é a ocorrência de situações que no caso foram consideradas pela entidade competente como fundamento bastante para a não aplicação da sanção de despedimento proposta nas respetivas “notas de culpa”. Trata-se de situações de natureza económica que motivaram e enquadraram os factos ilícitos que eram imputados a esses trabalhadores e que levaram a que o Réu tenha entendido que a sanção adequada nesses casos era uma mera suspensão do exercício de funções com perda de vencimento por determinado número de dias. Não pode, deste modo, considerar-se que a diferenciação dessas situações face à decisão que foi tomada no caso da Autora evidencia um tratamento arbitrário desta e revelador de uma violação dos comandos derivados do princípio da igualdade (…) não havendo paralelismo que permita afirmar terem os ilícitos disciplinares sido praticados pelos seus autores com os mesmos graus de ilicitude e de culpa, não pode afirmar-se que foi postergado pela entidade patronal o princípio da igualdade no domínio disciplinar» (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de setembro de 2012, pp. 30-31, fls. 1469-1470 dos autos).
Assim, importa notar que, conforme resulta do acórdão recorrido supra transcrito, o Tribunal recorrido não aplicou, efetivamente, os preceitos referidos na interpretação reputada de inconstitucional pela recorrente. Em passo algum defende o Supremo Tribunal de Justiça que «que a Recorrente [podia] ter sido despedida por factos ilícitos que não originaram tal sanção disciplinar em outros trabalhadores» - antes considerando que não podia ser estabelecido um tal paralelismo entre as situações descritas pois existiam motivos para as sanções terem sido diferentes.
Por outro lado, apesar de enunciada a referida regra do ónus da prova no acórdão recorrido (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de setembro de 2012, p. 31, fls. 1470 dos autos), esta regra não constituiu ratio do decidido. O Supremo Tribunal de Justiça não estava a fazer uma ponderação entre factos provados e não provados – apenas refere esta passagem como reforço da ideia de que, face aos factos trazidos aos autos e dados como provados, nada indica ter existido a situação discriminatória invocada pela autora. A regra do ónus da prova é por isso enunciada, mas não aplicada. A questão de fundo é, isso sim, a valoração dos factos provados pelo Tribunal recorrido e não a distribuição do ónus da prova (e respetivas consequências).
A interpretação invocada pela recorrente não teve, pois, lugar. Não se cumpre, portanto, este requisito legal para a admissão do recurso.
8. Conclui-se, assim, que a recorrente se limitou a questionar a conformidade constitucional do resultado decisório alcançado sem, todavia, lograr autonomizá-lo do processo interpretativo seguido na decisão impugnada, sendo que a norma em causa não foi aplicada na decisão.
Termos em que, na falta do preenchimento dos requisitos processuais em causa, não é possível conhecer do recurso.”
3. Daquela decisão sumária vem agora a recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC.
Como fundamento da reclamação invoca que:
“2. No que respeita à enunciação do objeto normativo em causa, parece-nos, salvo o devido respeito, que se retira com clareza até das passagens enunciadas na decisão sumária reclamada que a questão da inconstitucionalidade da decisão foi sempre devidamente evidenciada nas alegações de recurso de revista interposta para o Supremo Tribunal de Justiça, mormente nas Partes A) IV da Fundamentação e nas Conclusões XIX a XXIII e que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
3. Parece evidente que as questões colocadas a este nível o foram no sentido “funcional” exigível de modo a poderem ter sido consideradas pelo tribunal de recurso.
4. Efetivamente, pelas razões então ditas, a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra violava de forma clara o disposto no art.° 53.° da CRP., principio esse que irradia para a interpretação no disposto no art. 351° do C.T., bem como os princípios da proporcionalidade e da igualdade que estão também ínsitos à interpretação do referido art. 53° da CRP por remissão e irradiação dos arts. 13° e 18° do mesmo texto fundamental.
5. Parece-nos evidente que o Supremo Tribunal de Justiça, face à matéria dada como provada nos autos e que lhe cabia apreciar, interpretou aquele art. 351°/1 e 3 do C.T. em desconformidade com os critérios e valores que irradiam do disposto nos arts. 53°, 13°, e 18° do texto fundamental, sendo este o grau de generalidade e abstração que se julga ser suficiente para que este colendo Tribunal Constitucional se pronuncie, independentemente do circunstancialismo estrito dos factos do caso concreto.
6. Por ser assim, não pode aceitar-se que o objeto do recurso, face ao referido, não tenha as características de “normatividade” indispensáveis á realização de um controlo de constitucionalidade.
7. No que respeita à aplicação concreta e efetiva do art. 351°/1 e 3 do C.T., sem aquela irradiação normativa decorrentes dos princípios da proibição de despedimentos sem justa causa, da igualdade e da proporcionalidade consagrados nos arts. 53°, 13°, e 18°, da CRP, salvo mais uma vez, o devido respeito, é clara tal efetiva aplicação.
8. Face à matéria dada como provada e que está expressa na matéria em particular dos Factos Provados 49, 74 e 100, é evidente que o Supremo Tribunal de Justiça fez concreta aplicação dos arts. 351° do C.T. descurando a mesma irradiação dos princípios da proibição do despedimento sem justa causa, igualdade e proporcionalidade, enunciando até concretamente que em matéria de ônus de prova cabia à recorrente provar a violação de tais princípios, o que é inaceitável face ao que determina o art. 53° da CRP.
9. Salvo mais uma vez o devido respeito, as questões da normatividade e efetiva aplicação da norma no sentido questionado em termos de constitucionalidade estão devidamente evidenciados nos termos legalmente exigíveis nesta instancia Constitucional, sendo claramente incompreensível que argumentos de natureza puramente formal não inscritos claramente no teor do art. 78°-A da LTC, obstem ao conhecimento do recurso, com a profundidade que só após apresentação das alegações do recurso nesta instancia se estaria em condições de fazer.
10. Reafirma a Reclamante que, a bem da justiça e da dignidade inerente a uma interpretação das normas legais em conformidade com a Constituição, não pode deixar de considerar-se desconforme uma interpretação do art. 351°/1 e 3 do C.T. que admite que a Reclamante possa ter sido despedida por factos ilícitos que não originaram tal sanção disciplinar em outros trabalhadores da sua empregadora face a factos ilícitos de igual e mais grave teor (como profusamente se retira das decisões para que se remete no Facto Provado 100 da matéria Assente), referenciando (apesar de todas essas decisões constarem dos autos e para aí terem sido carreadas a solicitação da Reclamante) que o ónus da prova relativo à violação do principio da coerência disciplinar, da igualdade e da proporcionalidade cabiam à ora Reclamante e arguida no processo disciplinar, e na posterior impugnação da decisão em tribunal.
11. Em termos de justiça material a simples leitura das decisões da empregadora constantes de fls. 623 a 739 e 889 a 1017 dos autos (Facto 100) confirma claramente o desvio da interpretação do art. 351°/1 e 3 do CT com os princípios constitucionais inerentes ao disposto nos arts. 13°, 18° e 53º do texto fundamental.
12. Em termos puramente formais não pode a ora Reclamante aceitar que isso impeça a superior realização da justiça, pugnando por diversa decisão da tomada na posição sumaria de que se reclama.”
4. Notificado o recorrido, pronunciou-se pela improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
5. Analisando a reclamação apresentada, conclui-se que os argumentos aduzidos, traduzindo discordância relativamente ao sentido do decidido, não infirmam, porém, a correção do juízo efetuado de não se verificarem os pressupostos de conhecimento do recurso.
Com efeito, pelo presente recurso, a ora Reclamante pretendia ver «apreciada a inconstitucionalidade do art. 351.º, 1 e 3, do Código do Trabalho, na redação da Lei 7/2009, de 12/02, quando interpretada no sentido segundo o qual admite que a Recorrente possa ter sido despedida por factos ilícitos que não originaram tal sanção disciplinar em outros trabalhadores do Recorrido face a factos de igual e até de mais grave teor e ainda que o ónus da prova relativo à violação do princípio da coerência disciplinar, da igualdade e da proporcionalidade caibam ao arguido num processo disciplinar».
Acontece, porém, que, tal como se entendeu na decisão sumária reclamada, esta interpretação nunca existiu. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça refere : «Na verdade, o que resulta dos procedimentos disciplinares instaurados aos [outros] trabalhadores (…) é a ocorrência de situações que no caso foram consideradas pela entidade competente como fundamento bastante para a não aplicação da sanção de despedimento proposta nas respetivas “notas de culpa”. Trata-se de situações de natureza económica que motivaram e enquadraram os factos ilícitos que eram imputados a esses trabalhadores e que levaram a que o Réu tenha entendido que a sanção adequada nesses casos era uma mera suspensão do exercício de funções com perda de vencimento por determinado número de dias. Não pode, deste modo, considerar-se que a diferenciação dessas situações face à decisão que foi tomada no caso da Autora evidencia um tratamento arbitrário desta e revelador de uma violação dos comandos derivados do princípio da igualdade (…) não havendo paralelismo que permita afirmar terem os ilícitos disciplinares sido praticados pelos seus autores com os mesmos graus de ilicitude e de culpa, não pode afirmar-se que foi postergado pela entidade patronal o princípio da igualdade no domínio disciplinar» (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de setembro de 2012, pp. 30-31, fls. 1469-1470 dos autos).
Deste modo, o Tribunal recorrido não aplicou os preceitos referidos na interpretação reputada de inconstitucional pela recorrente. Em passo algum defende o Supremo Tribunal de Justiça que «que a Recorrente [podia] ter sido despedida por factos ilícitos que não originaram tal sanção disciplinar em outros trabalhadores» - antes considerando que não podia ser estabelecido um tal paralelismo entre as situações descritas pois existiam motivos para as sanções terem sido diferentes.
Concluindo-se, que a reclamação apresentada em nada contraria os fundamentos da decisão sumária, é a mesma de indeferir.
III - Decisão
7. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pela Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 16 de janeiro de 2013. – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria João Antunes – Maria Lúcia Amaral.