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Processo n.º 720/13
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Central Administrativo Sul, em que é recorrente A. e recorrido o Município de Elvas, foi interposto o presente recurso, ao abrigo das alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 23 de maio de 2013.
2. Pela Decisão Sumária n.º 558/2013, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto. Tal decisão tem, para o que agora releva, a seguinte fundamentação:
«1. De acordo com a alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Suscitação que há de ter ocorrido de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (artigo 72.º, n.º 2, da LTC). Requisito que não se pode dar como verificado nos presentes autos, justificando-se a prolação da presente decisão (artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC).
O recorrente pretende a apreciação da constitucionalidade “das normas conjugadamente contidas na alínea i) do n.º 1 e do n.º 2 do art. 27.º do CPTA de que se fez aplicação, interpretadas no sentido de que não obstante o tribunal designar a decisão como sentença, a mesma é insuscetível de recurso, já que proferida por juiz singular (relator) com invocação da alínea i) do n.º 1 do art. 27.º do CPTA, com o que era obrigatório o uso de reclamação para a conferência, sendo irrelevante a qualificação que o tribunal emissor da decisão dá à mesma, mais considerando que sob o termo «despacho» constante do n.º 2 do art. 27.º do CPTA também se integram por interpretação extensiva as «sentenças»”.
Sucede, porém, que na reclamação para o Tribunal Administrativo Central Sul, o recorrente não questionou a constitucionalidade da dimensão interpretativa (das dimensões interpretativas) que reporta ao artigo 27.º, n.ºs 1, alínea i), e 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Sustentou apenas que a interpretação seguida no despacho, então reclamado, era manifestamente inconstitucional, não tendo especificado a interpretação cuja constitucionalidade pretendia questionar.
E nem sequer se pode dar como cumprido do ónus da suscitação prévia e de forma adequada por via da reprodução de passagens que se imputam ao acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 14 de julho de 2010, proferido no âmbito do Proc. N.º 6360/10 (note-se que do texto que está disponível em www.dgsi.pt não resultam as passagens que o recorrente transcreve). O que decorre de tais passagens é que há uma aplicação inconstitucional daqueles dois preceitos legais quando se aplicam os mesmos no sentido de considerar que apesar de um tribunal apelidar certo ato seu de sentença e essa ser uma decisão de mérito que remete para um regime de recurso jurisdicional, um tribunal superior entender que a qualificação dada não estava, afinal, correta e que como tal, as reações jurisdicionais dessas não se poderiam ter conformado com essa qualificação que os próprios tribunais haviam dado. Ou seja, pressupõe-se aqui que haja uma divergência entre o tribunal recorrido e o tribunal de recurso quanto à qualificação de “sentença” dada a determinado “ato”. Hipótese que, manifestamente, não se verifica nos presentes autos (cf. a decisão recorrida, fl. 74 e ss.)».
3. Da decisão sumária vem agora o recorrente reclamar para a conferência (artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC), com os seguintes argumentos:
«3. O ora reclamante não submeteu à apreciação do Tribunal Constitucional um processo interpretativo utilizado pontualmente na decisão recorrida, mas antes o conteúdo interpretativo atribuído ao art. 27.º, n.ºs 1, alínea i) e 2 do CPTA, o qual é identificado;
4. Questiona-se, sem dúvida, se a constitucionalidade daquelas normas quando interpretadas em qualquer uma das seguintes interpretações normativas:
a) no sentido de considerar que, apesar do tribunal apelidar o seu ato de sentença e essa ser uma decisão de mérito que remete para um regime de recurso jurisdicional, entender o tribunal superior que a qualificação dada não estava correta, e que, como tal, a reação jurisdicional dessa não se poderia ter conformado com a qualificação que o próprio tribunal havia dado;
b) no sentido de que, não obstante o tribunal designar a decisão como sentença, a mesma é insuscetível de recurso, já que proferida por juiz singular (relator) com invocação da alínea i) do n.º 1 do art. 27.º do CPTA, com o que era obrigatório o uso de reclamação para a conferência, sendo irrelevante a qualificação que o tribunal emissor da decisão dá à mesma, mais considerando que sob o termo “despacho” constante do n.º 2 do art. 27.º do CPTA também se integram por interpretação extensiva as sentenças;
5. O ora reclamante impugnou, efetivamente, a decisão judicial, por ela ter aplicado uma norma, de modo a ultrapassar o sentido possível das palavras da lei, uma vez que julgou que uma interpretação normativa do termo “despacho” referida no n.º 2 do art. 27.º, abrange as “decisões” a que se refere a alínea i) do seu nº 1;
6. Assim é que a ora reclamante, na reclamação que apresentou no Tribunal Central Administrativo Sul colocou este tribunal perante a exata e específica questão de inconstitucionalidade normativa que pretende ver apreciado no recurso interposto para o Tribunal Constitucional. Com efeito,
7. Logo no n.º 4 daquela reclamação, relativamente ao despacho de não admissão do recurso ao abrigo dos artigos 27.º, n.º 1, alínea i) e 29, n.º 1 do CPTA, escreveu expressamente que:
“É deste despacho que se reclama por, no entender da ora reclamante, ser ilegal por representar uma completa dissonância com o sistema de recursos vertido no art. l42.º, n.º 1 do CPTA, e por a interpretação nele seguida ser manifestamente inconstitucional, por atentar contra os princípios derivados de confiança e estabilidade e acesso ao direito e justiça vertidos nos artigos 2º e 20º da CRP”;
8. Tendo densificado essa sua alegação na matéria vertida nos números 16 a 24 dessa mesma peça processual, onde se pode ler: “Ainda que se entenda que o n.º 2 do art. 27.º CPTA permite uma interpretação extensiva, ao ponto de abarcar sob o termo “despachos”, as sentenças, ou seja, usar o termo “despachos”, num sentido idêntico ao de “decisões” na alínea i) do n.º 1 do art. 27.º CPTA (...) é uma aplicação inconstitucional do n.º 2 do art. 27.º do CPTA e da alínea i) do n.º 1 do art. 27.º do CPTA, aplicar os mesmos no sentido de considerar que apesar de um Tribunal apelidar certo ato seu de sentença e essa ser uma decisão de mérito que remete para um regime de recurso jurisdicional, entender um Tribunal superior que a qualificação dada não estava, afinal correta e que, como tal, as reações jurisdicionais dessas não se poderiam ter conformado com essa qualificação que os próprios tribunais haviam dado”;
“Esse entendimento atenta, designadamente, contra os princípios do Estado de Direito Democrático (art. 2.º CRP) e seus corolários ao nível dos princípios derivados de confiança e estabilidade e acesso ao direito (art. 20.º CRP), já que a confiança das partes processuais se vê posta em causa perante quaisquer decisões jurisdicionais, já que deixam de poder confiar na qualificação que os tribunais – órgãos de soberania com competência para administrar a justiça – fazem dos seus próprios atos;”
“A enveredar-se pelo entendimento defendido no despacho de que se reclama, estar-se-ia « (...) perante a imposição de um ónus processual às partes no processo de ultrapassarem as qualificações que os próprios tribunais façam dos seus atos, obrigando a que, mesmo sem que essa qualificação tenha sido posta em causa por tribunal superior, as partes julguem e apurem o erro do julgador e enveredem por meio de reação em discordância com o que o próprio tribunal que terá de admitir o meio de reação dispôs em qualificação desse ato»”;
“Enveredar e consagrar tal imposição às partes no processo é claramente inconstitucional por criação de um sistema de indefesa face às garantias de acesso ao direito e justiça (art. 20.º CRP) e ulteriormente face à própria garantia da tutela jurisdicional efetiva (art. 268.º, n.º 4), por violação de um parâmetro de proporcionalidade nas imposições colocadas às partes no processo, quanto às condições em que podem utilizar os meios de reação”; (...) É claramente abusivo e coloca em causa o uso das garantias recursivas ou de reação, colocar a obrigação às partes de usarem meios contenciosos em discordância com a qualificação do ato que o próprio órgão de soberania que julga a questão impôs, quando o nosso sistema de reação contra decisões judiciais assente exclusivamente no pressuposto de qualificação do ato como “despacho” ou “sentença” para conduzir as partes no processo aos meios que poderão usar; (...)”; Defronta o princípio da confiança e da estabilidade jurídica do processo – o due process – definir em lei processual que a seleção de meios contenciosos se faz por apelo a um critério de nominação do ato pelo tribunal, para, posteriormente, quando o particular se conforma com essa nominação não vincula e há mesmo o dever de contrariar uma qualificação jurisdicional”;
(...) a interpretação e aplicação das normas de processo e que é seguida pelo despacho reclamado, «leva a conclusões contrárias aos ditames do Estado de Direito, em que os princípios pro actione não habilitam tais condutas processuais que promovam a indefesa e incerteza das partes que recorrem ao processo para a sua tutela»;
“Perante a contradição no texto da decisão entre a qualificação dada de “sentença” e a invocação do art. 27.º, n.º 1 do CPTA, não se pode deixar de se admitir o recurso jurisdicional tempestivamente interposto pelos ora reclamantes, sob pena de ser posta em causa a garantia da tutela jurisdicional efetiva, prevista no art. 268.º, n.º 4, o direito de acesso ao direito e à justiça previsto no art. 20.º, e de ser posto em causa os ditames do Estado de Direito Democrático consagrado no art. 2.º, todos da CRP”.
9. De tais referências resulta que, relativamente ao despacho de não admissão de recurso de decisão individualmente tomada pelo juiz de primeira instância, o ora reclamante suscitou concretamente a questão da inconstitucionalidade da interpretação das normas convocadas para a decisão da causa e por ela aplicadas, tendo-o feito de modo direto, explícito e percetível através da indicação das disposições legais sobre cuja interpretação se faz recair a suspeita do vício de inconstitucionalidade;
10. O ora reclamante colocou, assim, o tribunal recorrido perante a exata e específica questão da inconstitucionalidade normativa que pretendem ver agora apreciada, ou seja: a apreciação da constitucionalidade da norma extraída do art. 27.º, n.º 2 do CPTA, quando interpretada no sentido que o legislador ao usar aí o termo “despacho” pretendeu abarcar as “decisões” a que se refere a alínea i) do seu n.º 1;
11. E o Tribunal Central Administrativo Sul embora não se tenha pronunciado sobre a inconstitucionalidade expressamente suscitada pelo ora reclamante, sufragou interpretação de que, do confronto da expressão “proferir decisão”, constante da alínea i) do n.º 1 do art. 27.º do CPTA, com a expressão “despachos”, contida no n.º 2 do mesmo artigo, não se pode retirar que o legislador utilizou tais conceitos em sentido diferente;
12. Pelo que o recurso interposto para o Tribunal Constitucional tem por objeto a inconstitucionalidade da referida norma, quando aplicada e interpretada com aquele sentido e alcance».
4. Notificado da reclamação, o recorrido não respondeu.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Foi proferida decisão de não conhecimento do objeto do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, por não se poder dar como verificado o requisito da suscitação prévia e de forma adequada da norma cuja apreciação foi requerida por referência ao artigo 27.º, n.ºs 1, alínea i), e 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
Para contrariar o decidido, o reclamante começa por identificar duas interpretações normativas (ponto 4. da reclamação), sendo certo que só a segunda (identificada na alínea b) do ponto 4.) corresponde à identificada no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional (cf. fl. 87). De resto, como já se deixou dito, a primeira interpretação normativa (a identificada na alínea a) do ponto 4.) nem sequer corresponde à norma aplicada pelo tribunal recorrido como ratio decidendi (cf. decisão recorrida, fl. 74 e ss. e o que se conclui infra no parágrafo seguinte). Com efeito, não aplicou aquele preceito legal «no sentido de considerar que, apesar do tribunal apelidar o seu ato de sentença e essa ser uma decisão de mérito que remete para um regime de recurso jurisdicional, entender o tribunal superior que a qualificação dada não estava correta, e que, como tal, a reação jurisdicional dessa não se poderia ter conformado com a qualificação que o próprio tribunal havia dado» (enunciado que coincide com o reproduzido no n.º 16 da reclamação do despacho de não admissão do recurso).
O reclamante remete depois para os n.ºs 4 e 16 a 24 da reclamação do despacho de não admissão do recurso, passagens que foram expressamente consideradas na decisão que é agora objeto de reclamação. Reiterando o já dito anteriormente, note-se que a interpretação normativa identificada nos n.ºs 16 a 24, especificamente no n.º 16, pressupõe uma divergência entre o tribunal recorrido e o tribunal de recurso quanto à qualificação de “sentença” dada a determinado “ato”, sendo manifesto que esta hipótese não se verifica nos presentes autos (cf. a decisão recorrida, fl. 74 e ss.). Além de que importaria sempre concluir que a transcrição de uma passagem de uma decisão judicial é suficiente para dar como cumprido o ónus da suscitação prévia e de forma adequada de uma questão de inconstitucionalidade.
Como a interpretação normativa que se identifica no referido n.º 16 não coincide com a identificada no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, é de reiterar que o reclamante sustentou apenas que a interpretação seguida no despacho, então reclamado, era manifestamente inconstitucional, não tendo especificado a interpretação cuja constitucionalidade pretendia questionar. Tal especificação ocorreu só no requerimento de interposição de recurso, quando pede a apreciação das “normas conjugadamente contidas na alínea i) do n.º 1 e do n.º 2 do art. 27.º do CPTA de que se fez aplicação, interpretadas no sentido de que não obstante o tribunal designar a decisão como sentença, a mesma é insuscetível de recurso, já que proferida por juiz singular (relator) com invocação da alínea i) do n.º 1 do art. 27.º do CPTA, com o que era obrigatório o uso de reclamação para a conferência, sendo irrelevante a qualificação que o tribunal emissor da decisão dá à mesma, mais considerando que sob o termo «despacho» constante do n.º 2 do art. 27.º do CPTA também se integram por interpretação extensiva as «sentenças»”.
Há que reiterar, pois, a decisão que é objeto da presente reclamação.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 25 de novembro de 2013. – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria Lúcia Amaral.