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Proc. nº 55/02 TC – Plenário Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
1 – O Presidente da República requer, ao abrigo do disposto no artigo 278º, nºs 1, 3, 4, 6 e 8 da Constituição e dos artigos 51º, nº 1 e 57º, nº 1 da Lei sobre Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), a apreciação da constitucionalidade da norma constante do artigo único do Decreto da Assembleia da República nº 185/VIII, recebido na Presidência da República no passado dia 11 de Janeiro, para ser promulgado como lei.
2 – O Presidente da República fundamentou as suas dúvidas sobre a constitucionalidade da referida norma nos seguintes termos:
“1 - A norma cuja apreciação de constitucionalidade requeiro constitui uma alteração ao artigo 47º da Lei nº 13/98, de 24 de Fevereiro, pelo que, respeitando ao regime de finanças das regiões autónomas, deverá, se for caso disso, ser promulgada como lei orgânica.
2 - A alteração legislativa insere-se no processo legislativo parlamentar aberto pela proposta de lei nº 109/VIII apresentada pelo Governo e resulta da aprovação dessa proposta de lei por parte da Assembleia da República. A proposta de lei nº 109/VIII foi aprovada na generalidade na sessão parlamentar realizada no passado dia 20 de Dezembro de 2001, e foi também, com as alterações introduzidas pelos Senhores Deputados, aprovada na especialidade e em votação global, na sessão parlamentar desse mesmo dia.
3 - O projecto de acta referente a essa sessão parlamentar não menciona expressamente o número dos Senhores Deputados que aprovaram a proposta, mas nela consta uma declaração proferida pelo Senhor Presidente da Assembleia da República segundo a qual a proposta de lei teria sido votada pela maioria constitucionalmente exigida para a aprovação das leis orgânicas.
4 - Acontece, porém, que, como era do conhecimento público, a 20 de Dezembro de 2001 o Governo já estava demitido por força da aceitação pelo Presidente da República do pedido de demissão apresentado pelo Primeiro-Ministro. É certo que o Decreto do Presidente da República nº
60-A/2001, em que se dá conta da aceitação do pedido de demissão, ainda que tendo a data de 17 de Dezembro e tendo sido publicado no 2º suplemento ao Diário da República nº 290, Série I-A, de 17 de Dezembro, só foi distribuído a 26 de Dezembro de 2001. Porém, era público e notório que o pedido de demissão fora aceite pelo Presidente da República em 17 de Dezembro de 2001, tal como foi publicamente anunciado aos órgãos de comunicação social pela Casa Civil da Presidência da República.
5 - Surge, assim, a dúvida quanto a saber a partir de que momento é que o Governo deve ser considerado demitido. Em princípio, pode considerar-se como data juridicamente relevante aquela em que se verifica a prática, por parte do Presidente da República, do acto político de aceitação do pedido de demissão, apresentado pelo Primeiro-Ministro e que, nos termos do artigo 195º, nº 1, alínea b), da Constituição, implica a demissão do Governo. Nessa altura, o Governo estaria demitido desde 17 de Dezembro, o que, no caso, corresponde, também, à data de assinatura do decreto de demissão e à data do Diário da República em que ele foi publicado. Mas pode também considerar-se que o Governo só é demitido a partir da data de distribuição do Diário da República em que é publicado o Decreto presidencial que confirma a aceitação do pedido de demissão apresentado pelo Primeiro-Ministro. Nessa altura, o Governo só estaria demitido a partir de 26 de Dezembro.
6 - Uma ou outra hipótese parecem ter consequências determinantes na eventual inconstitucionalidade da norma cuja apreciação é requerida. É que a considerar-se que a data juridicamente relevante para o efeito é a data da aceitação efectiva do pedido de demissão, ou seja, 17 de Dezembro, então, por força do artigo 167º, nº 6, da Constituição, as propostas de lei apresentadas pelo Governo à Assembleia da República estão, a partir dessa data, caducas.
7 - Ora, a referida proposta de lei nº 109/VIII só foi aprovada na generalidade pela Assembleia da República no dia 20 de Dezembro, ou seja, numa data em que podia já ter caducado.
8 - Consequentemente, suscita-se a dúvida se, nessa hipótese, a caducidade da proposta de lei nº 109/VIII, e independentemente do sentido das posteriores alterações aprovadas em especialidade e votação final global pelos Senhores Deputados, não inquina decisivamente todo o processo legislativo subsequente que vem dar origem à norma cuja apreciação de constitucionalidade suscito.”
3 – Notificada a Assembleia da República, na pessoa do seu Presidente, para, querendo, se pronunciar sobre o pedido, nos termos do artigo
54º da LTC, foi recebida resposta, subscrita pelo Presidente da Assembleia da República, a oferecer o merecimento dos autos.
Com a resposta foram juntos exemplares dos Diários da Assembleia da República, II Série-A, de 29 de Novembro e 3 de Dezembro de 2001 e projecto de acta da reunião plenária de 20 de Dezembro de 2001.
4 – Com interesse para a decisão do pedido, dá-se por assente o seguinte:
- Na reunião plenária da Assembleia da República de 28 de Novembro de 2001, o Secretário da Mesa comunica que deu entrada na Mesa e foi aceite, entre outras, a proposta de lei nº 109/VIII que procede à revisão da Lei das Finanças Regionais das Regiões Autónomas, tendo a mesma baixado à 5ª Comissão.
- A referida proposta de lei nº 109/VIII altera a redacção dos artigos 2º, nºs 2 e 3, 5º a 9º, 15º, 19º a 22º, 25º, 26º e 30º a 50º da Lei nº
13/98, de 24 de Fevereiro.
- Sobre essa proposta foram emitidos pareceres dos governos regionais da Madeira e dos Açores, datados de 12 e 13 de Novembro, respectivamente.
- Em 20 de Dezembro de 2001, a Comissão de Economia, Finanças e Plano elabora relatório e parecer sobre a mesma proposta de lei, concluindo, nos seguintes termos:
“A Comissão de Economia, Finanças e Plano é de parecer que a proposta de lei nº 109/VIII, procedente do Governo da República – Lei das Finanças das Regiões Autónomas – está em condições de subir a Plenário para apreciação e votação na generalidade, guardando os grupos parlamentares a sua posição para a referida apreciação que versará apenas sobre a alteração ao artigo 47º da Lei nº 13/98, de 24 de Fevereiro”.
- Na reunião plenária da Assembleia da República do mesmo dia foi submetida à votação na generalidade a proposta de lei nº 109/VIII que, nas palavras do Presidente que imediatamente antecederam a votação, “tem um artigo
único, que altera o artigo 47º da Lei das Finanças das Regiões Autónomas (Lei nº
13/98, de 24 de Fevereiro) com a redacção que lhe foi dada pela proposta de alteração cujo primeiro subscritor é o Sr. Deputado Medeiros Ferreira”.
- Aprovada a proposta na generalidade, passou-se, de seguida, à votação, na especialidade, da proposta de alteração, apresentada pelo Deputado Medeiros Ferreira, ao artigo 47º da Lei nº 13/98, de 24 de Fevereiro que foi igualmente aprovada, como aprovada foi na subsequente votação final global a
“proposta de lei nº 109/VIII”.
- O artigo 47º da Lei nº 13/98, nos termos da proposta aprovada, tem a seguinte redacção:
“Artigo 47º
(Apoio especial à amortização das dívidas públicas regionais)
O Governo da República, directamente ou através dos seus serviços ou empresas de que seja accionista, comparticipará, em 2002, num programa especial de redução das dívidas públicas regionais, assegurando, de acordo com a programação a acordar com cada Região, a amortização ou assunção de dívida pública garantida, ou, na sua falta, de dívida não garantida das duas Regiões Autónomas, nos montantes máximos de 32.421.863 euros para a Região Autónoma dos Açores e 32.421.863 euros para a Região Autónoma da Madeira.”
- No 2º Suplemento ao Diário da República nº 290, Série I-A, de 17 de Dezembro, é publicado o Decreto do Presidente da República nº 60-A/2001, de
17 de Dezembro, do teor seguinte:
“O Presidente da República decreta, nos termos do artigo 195º, nº 1, alínea b) da Constituição, o seguinte:
É demitido o Governo, por efeito da aceitação do pedido de demissão apresentado pelo Primeiro-Ministro, António Manuel de Oliveira Guterres.
Assinado em 17 de Dezembro de 2001.
Publique-se.
O Presidente da República, Jorge Sampaio”.
- O referido 2º Suplemento foi distribuído ao público em 26 de Dezembro de 2001.
5 – A questão que o Presidente da República coloca a este Tribunal
é, antes do mais, a de saber em que momento temporal se deve considerar demitido o Governo, por força do disposto no artigo 195º, nº 1, alínea b) da Constituição e em virtude da aceitação do pedido de demissão apresentado pelo Primeiro-Ministro, quando a aceitação deste pedido ocorre em 17 de Dezembro de
2001 (o que adquiriu notoriedade por ter sido anunciada aos órgãos de comunicação social pela Casa Civil da Presidência da República), é da mesma data o suplemento ao Diário da República que publica o respectivo decreto presidencial, mas a distribuição desse suplemento só vem a verificar-se em 26 de Dezembro de 2001.
A questão está, porém. conexionada com o objecto do pedido de apreciação de constitucionalidade - uma norma aprovada pela Assembleia da República, em 20 de Dezembro de 2001, sob proposta do Governo - pelo que, em direitas contas, o que se pretende é saber quando produz efeitos a demissão do Governo no procedimento legislativo iniciado por aquela proposta, considerando o disposto no artigo 167º nº 6 da Constituição (caducidade das propostas de lei com a demissão do Governo).
Isto se diz para que fique claro que o entendimento do Tribunal quanto ao referido momento temporal se há-de compreender como estritamente limitado aos pretendidos efeitos (sem prejuízo de eventuais considerações de ordem geral sobre a eficácia dos actos sujeitos a publicação em jornal oficial), deixando em aberto a questão de saber se, para outros efeitos, a resposta não deva ser outra.
Determinado, assim, o momento da demissão do Governo e, consequentemente, o da caducidade das propostas de lei apresentadas na Assembleia da República, caberá, depois, resolver a questão de saber se a norma em causa foi jurídico-constitucionalmente afectada por aquela caducidade.
6 - O acto através do qual o Presidente da República externou a demissão do Governo, por efeito da aceitação do pedido apresentado pelo Primeiro-Ministro, revestiu a forma de decreto (decreto do Presidente da República).
Trata-se de uma forma que a Constituição consagra, desde a sua versão original, a propósito da “publicidade dos actos” (actualmente, artigo
119º, nº 1, alínea d)), dispondo, para o que ao caso interessa, que os decretos do Presidente da República são publicados no jornal oficial, Diário da República, implicando a falta de publicidade a sua ineficácia jurídica (nº 2 do mesmo artigo 119º).
Mas também a Constituição obriga, expressamente, a que certos actos político-constitucionais do Presidente da República obedeçam à forma de decreto
– são os casos previstos nos artigos 172º, nº 2 e 183º, nº 3.
Quer por força do artigo 119º, quer pelo que resulta de uma longa prática constitucional, quer, ainda, pelo que inculca o disposto nos artigos 172º nº 2 e
183º nº 3, deve entender-se que a forma de decreto se impõe para todas as decisões do Presidente da República “de eficácia externa e que careçam de forma documental autónoma“ (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira in “Constituição da República Portuguesa Anotada” p. 549).
E, de facto, verifica-se, que a forma de “decreto” presidencial tem sido usada para, entre outros, actos de nomeação e exoneração de membros do Governo, de nomeação e exoneração de pessoal diplomático, nomeação de Ministros da República, do presidente do Tribunal de Contas, de chefias militares, de ratificação de convenções e acordos internacionais, de concessão de indultos.
Do mesmo modo, na vigência da Constituição, actos de dissolução da Assembleia da República, de exoneração do cargo de Primeiro-Ministro, de demissão do Governo por virtude da não aprovação de moção de confiança solicitada à Assembleia da República, foram sempre revestidos da forma de decreto do Presidente da República (Decretos nºs 160/77, 75/78, 100-A/78, 52/79,
142-B/79, 107/81, 43/85, 12/87, publicados em suplementos aos Diários da República de 29/12/77, 28/7/78, 15/9/78, 11/6/79, 27/12/79, 14/8/81, 12/7/85 e
29/4/87, respectivamente).
Também com a forma de decreto se publicaram actos de demissão do Governo, “por efeito de aceitação do pedido de demissão apresentado pelo Primeiro-Ministro” (Decretos nºs 136-A/82 e 43-A/85, publicados nos suplementos aos Diários da República de 23/12/82 e 12/7/85, respectivamente).
Ora, neste contexto, e atendendo à superior relevância política do acto, que justifica a utilização de uma “forma” solene, entende o Tribunal Constitucional como natural e constitucionalmente adequada a forma de “decreto” de que se revestiu a decisão presidencial (no mesmo sentido Gomes Canotilho e Vital Moreira “Constituição da República Portuguesa Anotada, p. 765).
7 – Imposta, nos termos referidos, a forma de decreto, poderia entender-se que o artigo 119º, nº 2 da Constituição postulava um único momento para o decreto adquirir, em qualquer caso e para todos os efeitos, eficácia jurídica – o da sua “publicação” em Diário da República , entendida a
“publicação” como a efectiva ou real, ou seja a que se concretiza com a distribuição do jornal oficial.
Com efeito, pode, sem excesso, afirmar-se como pacífica, nos nossos tribunais, a tese segundo a qual os actos sujeitos a publicação adquirem eficácia jurídica com a efectiva distribuição (colocação à disposição do público) do Diário da República que os publica.
Foi ela que vingou, também, nos acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 99/86,
53/87, 435/87 e 303/90 in “Acórdãos do Tribunal Constitucional” 7º vol., tomo II, p. 756, 9º vol., p. 507, 10º vol., p. 509 e 17º vol., pp. 72/73, respectivamente.
Do último acórdão citado, respiga-se, a propósito, o seguinte trecho:
“A necessidade da imposição aos cidadãos das normas jurídicas e a necessidade de certeza do ordenamento jurídico conduzem, assim, a que o direito escrito tenha de ser objecto de publicação e divulgação, operando-se esta quando o jornal oficial que aquela contém é colocado à disposição do público. Tal colocação resulta, entre nós, da distribuição e expedição do Diário da República. Acontece, todavia, que muitos diplomas (designadamente os que não indicam data concreta para a sua entrada em vigor, motivo pelo qual se terá de lançar mão dos períodos de vacatio estabelecidos na lei) são publicados em jornal oficial de determinada data, sob a forma de suplemento, ocorrendo a sua colocação à disposição do público muito depois da data que contêm, isso não obstante o comando do nº 3 do artigo 1º da Lei nº 6/83. Em casos de divergência entre a data declarada de publicação desses diplomas e a data da distribuição do jornal oficial onde se inserem, a fim de se não operar a retroactividade, dever-se-á atender a esta última, ao início da distribuição ou ao envio do Diário da República. Consequentemente, face ao preceituado no nº 3 do artigo 1º da Lei nº 6/83, é de presumir que a data do Diário da República que contém um dado diploma é a data da publicação deste. Porém, se existir divergência entre a data do diploma e o dia em que o jornal oficial que o contém foi colocado à disposição do público, uma vez que se demonstre que esse dia não foi correspondente ao dessa efectiva colocação, será a esta que se terá de referir a publicação (cfr. Pareceres da Procuradoria Geral da República, de 1 de Março de 1979, no Boletim do Ministério da Justiça, nº 290, pp. 115 a 123, e de 10 de Janeiro de 1985, idem, nº 348, pp.
107 e segs.).”
Como se vê da transcrição que se acaba de fazer, foi igualmente esta doutrina a que a Procuradoria Geral da República seguiu nos pareceres citados, justificando-a, basicamente, com o facto de assim se conseguir o objectivo da publicação: ”facultar aos cidadãos a possibilidade de conhecimento das leis para as controlarem e cumprirem” (cit. parecer publicado em 1/3/79).
Na doutrina, vozes como a de Jorge Miranda ( “Decreto”, in “Dicionário Jurídico da Administração Pública”, vol. III, p. 339) e Remédio Pires (in “Revista de Direito Público” ano V, nº 10 pp. 9 e segs.), adoptam a mesma tese (com opinião dissonante, v. Oliveira Ascensão, “O Direito – Introdução e Teoria Geral”, p.
253, para quem as leis cobram eficácia jurídica na data nominal do jornal oficial que as publica).
Esta corrente jurisprudencial e doutrinal acaba por ganhar conforto com a Lei nº
74/98, de 11 de Novembro que, no seu artigo 2º, nº 4 prescreve como termo “a quo” dos prazos de vigência dos “actos legislativos e outros actos de conteúdo genérico” a data da “efectiva distribuição”, quando esta for posterior à data nominal da publicação, disposição, aliás, saudada como “de grande importância no que toca aos suplementos”, no comentário àquela Lei, da autoria de Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, publicado in “Legislação” nº 22 (Separata).
Impõe-se, contudo, observar que toda esta construção tem ponderado especialmente a publicação de actos com conteúdo normativo (a “actos legislativos e de conteúdo genérico” se reporta a citada Lei nº 74/98) com a particular preocupação de salvaguardar o valor da segurança jurídica que apenas se alcançaria com a cognoscibilidade do Direito.
A verdade é que, mesmo aí, já na jurisprudência do Tribunal Constitucional se admitiu a abertura do princípio a ressalvas, fundamentadas no tipo de matérias que o acto legislativo regula. Foi, por exemplo, o caso, apreciado no citado acórdão nº 303/90, onde, a propósito de “normas orçamentais” e “de execução orçamental”, se “admitiu“ que as conclusões e considerações acima transcritas pudessem ser “inflectidas”, em virtude de aquelas normas, “por sua natureza”, como normas constantes das leis do Orçamento do Estado, terem de reportar-se ao período temporal a que respeitam (anualidade correspondente ao ano civil).
Mas, se pode ser assim para os próprios actos normativos, será, desde logo, legítimo colocar a questão de saber se a apontada regra é igualmente aplicável aos actos ou decisões políticas, de conteúdo não normativo, como é caso do decreto do Presidente da República que agora nos ocupa.
Ou, mesmo aceitando que não há, em princípio, razões para subtrair à mesma regra decisões políticas, com eficácia externa, que produzem importantes efeitos na ordem jurídico-constitucional, (não esquecendo que o artigo 119º, nº 1, alínea d) da Constituição se refere a “decretos do Presidente da República”, “tout court”, e estes podem ser forma para os mais variados conteúdos) será, ainda, de indagar sobre se, de entre essas decisões, não haverá algumas que, pela sua natureza e para certos efeitos , no âmbito do relacionamento entre órgãos de soberania – como, no caso, a determinação do momento em que o Governo se deve considerar demitido para se terem por caducadas as propostas de lei por ele apresentadas na Assembleia da República – imponham uma eficácia reportada a momento anterior à sua “publicação efectiva” (e até, numa certa perspectiva, à sua publicação formal) desde logo, pela ponderação de valores ou princípios constitucionais de excepcional relevância, à margem do que dispõe aquele dispositivo constitucional.
De resto, também na jurisprudência do Tribunal Constitucional e no âmbito dos actos políticos se surpreendem já sinais desta interrogação, quando, no citado acórdão nº 53/87, se diz ser “tudo menos líquido” que o facto de o decreto de dissolução da Assembleia da República ter sido publicado posteriormente à sua data nominal releve para efeitos de diferir a produção dos efeitos da dissolução.
E não se deixará de salientar que a Constituição, ela própria, prevê uma situação em que a decisão política do Presidente da República, sujeita embora a publicação no Diário da República, produz efeitos imediatos a partir do momento em que ela é conhecida por outro órgão de soberania – a renúncia ao mandato, através de mensagem dirigida à Assembleia da República (artigo 131º).
Da evocação não se pretende extrair argumento “a contrario sensu”, nem sustentar que a norma seja afloramento de um princípio geral sobre o carácter receptício das declarações, entre si, de órgãos de soberania. Tão só se visa evidenciar que
à própria Constituição não repugna a produção de efeitos de decisões políticas do maior relevo, obrigatoriamente publicáveis em jornal oficial, antes mesmo da publicação dessas decisões.
Contempla, também, a Constituição outro acto político do Presidente da República
(este com evidente natureza normativa e que deve revestir a forma de decreto) cuja eficácia não poderá estar integralmente dependente de um eventual atraso na distribuição do jornal oficial que o publique: a declaração do estado de sítio, prevista no artigo 134º, alínea d).
Ora, o artigo 195º da Constituição, cuja redacção provém da revisão de 82 (sendo até à revisão de 97, o artigo 198º), elenca no seu nº 1 as situações que
“implicam” a demissão do Governo.
Em nenhuma delas, ao contrário do que sucede com a prevista no nº 2 do mesmo preceito, a demissão resulta directamente da iniciativa do Presidente de República.
Com a expressão “implicam”, o artigo 195º deixa claro que a demissão do Governo
é determinada “ope legis” pela ocorrência de qualquer dos factos nele enunciados.
Enquanto a demissão, nos termos do nº 2, é decidida pelo Presidente da República, ouvido o Conselho de Estado e pressupondo necessariamente a ponderação política do “regular funcionamento das instituições democráticas”, nos termos do nº 1 ela impõe-se como mera decorrência das situações nele enunciadas.
Deixando de lado o facto previsto na alínea a) como causa naturalmente necessária da demissão do Governo, os que as alíneas c) a f) contemplam têm um claro significado político de “deslegitimação” daquele órgão de soberania.
Na verdade, enquanto a morte ou a impossibilidade física duradoura do Primeiro Ministro põe termo ao que foi o resultado de uma decisiva opção política do Presidente da República (condicionada embora nos termos do artigo 187º nº 1 da Constituição) - a nomeação do Primeiro-Ministro, a quem compete “dirigir a política geral do Governo, coordenando e orientando a acção de todos os Ministros” (artigo 201º nº 1 alínea a) da Constituição) e que é directamente
“responsável perante o Presidente da República” (artigo 191º nº 1 da Constituição) - a rejeição do programa do Governo (alínea d)), a não aprovação de uma moção de confiança (alínea e)) e a aprovação de uma moção de censura por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções (alínea f)) representam a quebra da relação fiduciária entre o Governo e a Assembleia da República perante a qual o primeiro é politicamente responsável (artigo 190º).
Ora, não porque, em tais circunstâncias, o efeito automático de demissão do Governo fosse logicamente incompatível com a referência ao momento em que os actos que determinam essa demissão são publicados (e estão sujeitas a publicação as referidas moções da Assembleia da República, por força do disposto no artigo
3º, nº 2, alínea m) da Lei nº 74/98), mas pelas razões substanciais que impõem tal automaticidade, entende o Tribunal Constitucional que aquele efeito (ao menos no âmbito das relações entre os órgãos de soberania) há-de reportar-se à data em que ocorrem as suas causas.
O que se passa com a aceitação pelo Presidente da República do pedido de demissão do Governo não é substancialmente diferente.
Com efeito – disse-se já – a nomeação do Primeiro-Ministro representa o exercício de uma escolha política decisiva para a orientação política do País
(cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira “Os poderes do Presidente da República”, p. 48). E é com essa escolha e, subsequentemente, com a não rejeição do programa do Governo pela Assembleia da República, que o Governo adquire o seu título de legitimação democrática e se torna responsável, também, perante o Presidente da República.
Ao aceitar o pedido de demissão do Governo, o Presidente da República não deixa de fazer, aqui também, uma opção para a orientação política do país, reconhecendo, ao menos implicitamente, que as condições políticas vigentes (e foram elas, no caso, geradas pelo resultado das eleições autárquicas do dia
16/12/2001, que notoriamente determinaram o pedido de demissão) impõem novas soluções governativas e a “deslegitimação” do Governo demitido para executar, na sua plenitude, o seu programa (limitado que fica nos termos do artigo 186º, nº 5 da Constituição).
Um tal reconhecimento ocorre desde o momento preciso em que o Presidente da República profere a decisão de aceitação do pedido de demissão que deve ser formalizada, com a assinatura, na mesma data, do respectivo decreto.
A data da assinatura, como data da aceitação do pedido (e não é estritamente necessário que a aceitação ocorra na data do pedido) é, deste modo, ainda uma escolha e um sinal de que se pretende que a demissão do Governo produza (desde logo, para o próprio Governo) efeitos a partir de então.
Objectar-se-á a este entendimento – mesmo sem pôr em causa a produção de efeitos imediatos em relação ao Governo – a imponderação da “exterioridade” da Assembleia da República (produtora da norma cuja apreciação de constitucionalidade se pretende), aqui configurada como um “terceiro” no procedimento que culmina com a aceitação do pedido de demissão.
Mas não se vêem razões suficientemente ponderosas para que o reporte dos efeitos da aceitação do pedido de demissão do Governo à data dessa aceitação se não imponha também à Assembleia da República.
Com efeito, com a decisão presidencial só indirectamente a competência da Assembleia da República é afectada.
Mesmo relativamente às iniciativas legislativas do Governo (propostas de lei) só em rigor se poderia dizer afectada aquela competência se a Assembleia fosse
“dona e senhora” das propostas de lei apresentadas pelo Governo, o que não sucede, pois sempre ao Governo é lícito retirá-las nos termos do artigo 135 nº 1 do Regimento da Assembleia da República, ou seja, até à sua aprovação na generalidade.
Mas o que não pode aceitar-se é que, para esta matéria, no âmbito das relações jurídico-políticas entre órgãos do Estado (e, particularmente, entre órgãos de soberania) se possa transportar o tratamento jurídico que é dado à eficácia dos actos relativamente a terceiros.
As razões de segurança jurídica que determinam a protecção de terceiros e exigem a cognoscibilidade do Direito por parte de quem deve observar as regras de conduta que ele postula e onde a publicidade dos actos assume particular relevo não são aqui invocáveis.
Com efeito, a segurança que aqui se impõe tutelar é antes a que se traduz na certeza de que os órgãos de soberania exercem os seus poderes enquanto se mantêm democraticamente legitimados – e é a que fica, substancialmente, tutelada com a posição assumida.
A solidariedade e cooperação institucionais, a lealdade política entre os órgãos de soberania (condições essenciais para o regular funcionamento das instituições democráticas) pressupõem, necessariamente, modos de relacionamento político entre aqueles órgãos que não exigem, ao menos, no domínio dos actos com efeitos jurídico-políticos constitucionalmente relevantes e para o exercício das suas competências – estando fundamentalmente em causa o exercício de poderes que só é constitucionalmente admissível enquanto provém de órgãos que mantêm, na sua plenitude, legitimidade democrática – que esses actos só adquiram relevo com o conhecimento da sua publicação através da distribuição dos Diários da República que os publicam.
Aliás, pretender um eventual desconhecimento, no domínio de relações que assumem necessariamente um carácter público num Estado de direito democrático é que poria em causa as referidas solidariedade e cooperação institucionais
Em suma, pois, se há fundamento para entender que a demissão do Governo deve reportar os seus efeitos, relativamente quer ao Governo, quer à Assembleia da República, à data em que foi proferida a decisão de aceitação do pedido de demissão (17 de Dezembro de 2001), não se vêem razões constitucionalmente atendíveis para infirmar esse entendimento.
Não se termina sem dizer que à mesma solução se chega, no caso, com a tese segundo a qual deve relevar a data nominal da publicação do Decreto do Presidente da República nº 60-A/2001 em Diário da República (ela é, como se disse, a mesma da decisão de aceitação do pedido de demissão e assinatura do decreto – 17 de Dezembro de 2001); isto para quem entenda, na esteira da referida posição de Oliveira Ascensão, que “razões de certeza” impõem que “a data a que se deve reportar a publicação é a que vem impressa no diploma”,
“atestado oficial que deve merecer crédito” e que “não pode ser substituída por um elemento tão fluido como a data da distribuição”
8 – Aqui chegados, resta, por último, apreciar a questão de saber quais os efeitos da demissão do Governo, operada em 17 de Dezembro de 2001, no procedimento legislativo que culminou com a aprovação da norma constante do Decreto da Assembleia da República nº 185/VIII.
Como se deixou relatado, o procedimento legislativo resultou da iniciativa originária do Governo com a apresentação da proposta de lei nº 109/VIII, que permaneceu na Comissão de Economia, Finanças e Plano, para apreciação e parecer, até 20 de Dezembro 2001, data em que subiu a Plenário.
Já então, portanto, a proposta de lei caducara (em 17 de Dezembro de 2001), nos termos do artigo 167º nº 6 da Constituição; não obstante, a proposta veio a ser posteriormente aprovada, em reunião plenária da Assembleia da República, na generalidade e na especialidade e em votação final global, tudo em 20 de Dezembro de 2001.
O facto de ter sido votada apenas uma proposta de alteração subscrita por deputados (não um “texto de substituição”) não compromete o entendimento de que foi, ainda, a proposta de lei do Governo nº 109/VIII (por aquela alterada) que veio a ser aprovada, sendo igualmente certo que o Governo não renovou a sua proposta.
Com efeito, como modalidade de iniciativa legislativa superveniente, a proposta de alteração – alteração mais, ou menos, substancial em relação à proposta alterada - não deixa de se ligar “geneticamente” à proposta de lei a que necessariamente se reporta (cfr. Jorge Miranda “Manual de Direito Constitucional”, Tomo V p. 250).
Por outro lado, à data em que a proposta de lei caducou, o procedimento legislativo encontrava-se numa fase anterior à sua aprovação, não havendo aqui que tomar posição sobre a questão de saber se, aprovada a proposta de lei na generalidade e/ou na especialidade, já a caducidade não opera (questão a que Jorge Miranda, in cit. “Manual” e Tomo V p. 259, p. 1 e Freitas do Amaral,
“Governo de Gestão”, p. 20 dão respostas divergentes).
Certo é, assim, que a norma em causa foi aprovada quando a respectiva proposta lei já caducara, pelo que ela se mostra inquinada por vício de inconstitucionalidade – violação do artigo 167º, nº 6 da Constituição.
9 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, o Tribunal decide pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma ínsita no Decreto da Assembleia da República nº
185/VIII, por violação do artigo 167º nº 6 da Constituição.
Lisboa,30 de Janeiro de 2002 Artur Maurício Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Bravo Serra Luís Nunes de Almeida Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida quanto à fundamentação, conforme declaração junta) José de Sousa e Brito (vencido, conforme declaração junta) Maria Helena Brito (vencida, conforme declaração de voto junta) José Manuel Cardoso da Costa
Declaração de voto
1. A doutrina segundo a qual a eficácia jurídica dos decretos do Presidente da República, nalguns casos, pode não depender da sua publicação envolve uma interpretação restritiva das normas do artigo 119.º da Constituição, que não deve ser aceite sem razões muito ponderosas. Na minha opinião, os argumentos do presente Acórdão não são suficientes para justificar uma derrogação tão frontal do texto da Constituição. Não me parece, em primeiro lugar, que o decreto de demissão possa produzir efeitos em momentos diferentes, consoante esses efeitos incidam no procedimento legislativo iniciado com uma proposta de lei do Governo ou incidam em procedimentos de outra natureza e no âmbito de outros órgãos públicos. Nada impede, em abstracto, que a eficácia jurídica dum acto se inicie em momentos sucessivos para destinatários diversos. Mas isso só pode acontecer se os efeitos se produzirem de modo paralelo e independente. Não, decerto, quando tais efeitos se traduzem, por um lado, em limitar a competência de certos órgãos (neste caso o Governo e a Assembleia) e, por outro lado, em habilitar outros órgãos (neste caso os Tribunais) a julgar a validade das decisões tomadas pelos primeiros. Se o decreto de demissão valer em momentos distintos para estes vários destinatários, fica aberta a possibilidade de os Tribunais desconhecerem, por falta de publicação oficial, os limites à competência do Governo e da Assembleia decorrentes do acto de demissão. Dir-se-á que a demora normal da publicação não permite que se chegue a esse ponto. Mas a improbabilidade da hipótese não diminui a incongruência do argumento. Em segundo lugar, ainda que se admitisse a antecipação dos efeitos do acto de demissão relativamente ao Governo e à Assembleia da República, seria sempre indispensável a definição do modo pelo qual estes dois órgãos de soberania adquiririam conhecimento oficial do acto de demissão. Este conhecimento oficial pressupõe o uso de um meio de comunicação formal, previamente definido e acessível à consulta dos órgãos destinatários (como é o caso da mensagem de renúncia do Presidente da República, nos termos do artigo 131.º da Constituição). Tal meio de comunicação, todavia, não vem identificado no Acórdão, nem se encontra estabelecido em disposição alguma da Constituição ou da lei. O Acórdão parece, mesmo, prescindir dele, ao reportar os efeitos da demissão ao momento da prolação do acto presidencial. Ora não se concebe que o conhecimento oficial do acto de demissão se obtenha através dos meios de comunicação social ou por qualquer outra forma igualmente difusa, incerta e falível. Em terceiro lugar, e muito especialmente, não me sinto convencida pelo argumento de que a garantia dos deveres de lealdade política e de solidariedade e cooperação institucionais entre os órgãos de soberania sobrelevam as necessidades gerais de segurança no conhecimento das normas jurídicas. O acto de demissão não é, em si mesmo, um acto normativo. Mas desencadeia, enquanto acto-condição ou acto-pressuposto, consideráveis consequências normativas por via da redução constitucional das competências do Governo e da caducidade das suas propostas legislativas no Parlamento. Quanto à preservação da lealdade política do Governo e da Assembleia perante um acto do Presidente da República que fez cessar a legitimidade do Governo, ela não exige verdadeiramente a antecipação dos efeitos jurídicos do acto de demissão. O acto de demissão produz sempre um efeito político imediato, que o Presidente da República está em condições de fazer respeitar independentemente da publicação do seu decreto, nomeadamente através da recusa de promulgação de decretos-leis aprovados após a demissão, ou de leis votadas, também depois desse momento, sob proposta governamental. Esta última consideração permite, também, pôr em dúvida a ideia de que a demissão do Governo, nas demais situações previstas no n.º 1 do artigo 195.º da Constituição, produz efeitos jurídicos imediatos, logo que verificados os factos que lhe dão causa. A deslegitimação do Governo opera-se no próprio momento em que esses factos ocorrem, e esse efeito político é suficiente nas relações entre os órgãos de soberania. Mas daí não se segue necessariamente que os efeitos jurídicos da demissão dispensem a publicação dum acto formal (apuramento de resultados eleitorais, reconhecimento de óbito ou incapacidade física do Primeiro-Ministro, moção da Assembleia da República) que assegure, a todos os
órgãos públicos e à generalidade dos cidadãos, o conhecimento certo e seguro dum facto que determina importantes modificações na ordem jurídica em vigor.
Assim, considero que o Decreto do Presidente da República nº 60-A/2001 só adquiriu eficácia, nos termos previstos no nº 2 do artigo 119º da Constituição, com a sua publicação efectiva, ou seja, a partir de 26 de Dezembro de 2001; não havia, pois, caducado a proposta de lei nº 109/VIII no dia em que foi aprovada, na generalidade, na especialidade e em votação final global, pela Assembleia da República.
2. Sucede, porém, que não foi cumprida a imposição constitucional de audição das Regiões Autónomas quanto à alteração à Lei das Finanças respectivas que veio a ser efectivamente submetida a votação na Assembleia da República. Com efeito, a sua observância quanto à proposta apresentada pelo Governo, dada a diferença substancial entre os dois textos, não a pode dispensar; e não é desrazoável supor que as Regiões, neste caso, tivessem observações a fazer ao texto que foi objecto de votação.
É, aliás, com este sentido que a exigência constitucional de audição é interpretada pela Lei nº 40/96, de 31 de Agosto, que, no seu artigo 7º, impõe nova consulta “sempre que a audição tenha incidido sobre proposta concreta à qual venham a ser introduzidas alterações que a tornem substancialmente diferente ou inovatória”. Considero, portanto, ocorrer a inconstitucionalidade da preterição do direito constitucional de audição das Regiões Autónomas, consagrado no nº 2 do artigo
229º da Constituição.
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Declaração de voto
Votei vencido, por entender que o decreto do Presidente da República nº 60- A/2001, com data do dia 17 de Outubro, que é também a do 2º suplemento ao Diário da República em que foi publicado, só produziu efeitos relativamente à Assembleia da República, nomeadamente a caducidade das propostas de lei, não aprovadas anteriormente na generalidade, no dia 27 de Dezembro, que foi o dia seguinte ao da distribuição do referido suplemento.
Com efeito, o nº 2 do artigo 119º da Constituição dispõe que a falta de publicidade dos actos previstos nas alíneas a) a h) do nº 1 do mesmo artigo , entre eles os decretos do Presidente da República (alínea d)), implica a sua ineficácia jurídica. Resulta do nº 1 do artigo 1º e do nº 2 do artigo 3º da Lei nº 74/98 de 11 de Novembro que a publicidade assim relevante como condição de eficácia é a da publicação na parte A da 1ª série do Diário da República. Quando porém, a efectiva distribuição do Diário da República tiver sido posterior ao dia da sua publicação, é a data da distribuição efectiva que se considera como data da publicidade relevante. É o que se deduz, por identidade de razão, do nº
4 do artigo 2º da Lei nº 74/98, que dispõe que os prazos da entrada em vigor dos actos legislativos e de outros actos de conteúdo genérico se contam a partir do dia imediato ao da publicação do diploma, ou da sua efectiva distribuição, se esta tiver sido posterior. Com efeito, as mesmas razões de segurança e de confiança jurídicas que fundamentam a prevalência da data da distribuição efectiva sobre a da publicação, quanto à entrada em vigor, vale igualmente quanto à aquisição de eficácia jurídica . Um acto das espécies mencionadas no nº1 do artigo 119º que tivesse sido publicado mas nunca tivesse sido distribuído seria juridicamente ineficaz.
A questão que se coloca ao Tribunal é a de saber se o decreto do Presidente da República nº 60-A/2001, que demitiu o Governo, que se tornou eficaz pela distribuição no dia 26 de Dezembro (sendo a data da distribuição provada pelo registo da versão electrónica do Diário da República: artigo 18º da Lei nº 74/98) do Diário da República em que foi publicado, se aplica retroactivamente, quanto à caducidade das propostas de lei que é efeito da demissão do Governo, por força do nº 6 do artigo 167º da Constituição, a partir da data da sua assinatura e publicação, que foram a 17 de Dezembro.
Deve, em primeiro lugar, notar-se que o Decreto do Presidente da República nada diz quanto à data da sua vigência, seja em geral, seja quanto a efeitos determinados. Deve, pois, entender-se que não quis afastar o regime geral de vigência de decretos da mesma espécie. Mas podia tê-lo feito. Um exemplo de decreto do Presidente da República que fixou uma data de produção de efeitos eventualmente retroactiva foi o Decreto do Presidente da República nº
12/87 de 29 de Abril, de dissolução da Assembleia da República, que foi assinado em 28 de Abril de 1987 e publicado em suplemento ao Diário de República, I série-A, datado de 29 de Abril, distribuído no dia 4 de Maio de 1987. O artigo
3º deste Decreto dispunha que o mesmo produzia efeitos na data da sua publicação. Outro exemplo é o do Decreto do Presidente da República nº 1/2002 de
18 de Janeiro, de dissolução da Assembleia da República, que foi assinado em 17 de Janeiro de 2002, publicado no Diário da República, I série-A, datado de 18 de Janeiro, distribuído na mesma data, o qual determina no seu artigo 3º que “o presente decreto produz efeitos no dia imediato ao da sua publicação”.
A prática constitucional revela, como é claro nos exemplos referidos, que não tem que haver “produção automática” de efeitos “à data em que ocorreram as suas causas”, o que deveria levar à produção automática de efeitos na data da assinatura. Tal é a tese defendida pela maioria que fez vencimento no acórdão, o qual, no entanto, também recolhe a fundamentação alternativa, que faz relevar a data nominal da publicação, o que só acidentalmente acontece no caso, e que é logicamente incompatível com a fundamentação anterior.
Há, pois, que averiguar, na falta de disposição especial, que regras se aplicam à entrada em vigor de decretos presidenciais de demissão do Governo.
A tese vencedora da produção automática de efeitos relativamente à Assembleia da República, à data da assinatura do decreto de demissão do Governo, implica, na falta de anterior comunicação oficial à Assembleia da República – como foi a que o Presidente da República fez em 7 de Junho de 1979 (de aceitação do pedido de exoneração do cargo de primeiro ministro, determinando a demissão do Governo: Diário da Assembleia da República, I série, de 8 de Junho de 1979, p. 2678), na data da assinatura do Decreto nº 52/79 de 11 de Junho, publicado em suplemento desta data, distribuído no dia 12 de Junho – implica, sempre que a distribuição do Diário da República seja feita em data posterior à data da assinatura, duas consequências inaceitáveis:
- restrição retroactiva de competências da Assembleia da República, com ofensa dos princípios de segurança jurídica e da protecção da confiança ínsitos no Estado de direito democrático;
- ofensa da regra da publicação no Diário da República como forma de publicidade dos actos descritos no nº 1 do artigo 119º da Constituição. Os princípios da segurança jurídica – que exige a certeza do direito e a manutenção dos actos lícitos – e da confiança jurídica - que exige que as expectativas dignas de protecção não sejam sacrificadas sem que interesses constitucionalmente ponderosos o necessitem - ,que estão ínsitos no princípio do Estado de direito democrático, fundam o princípio da irretroactividade das normas, ao mesmo tempo que o limitam, abrindo caminho a excepções (cfr., por exemplo, o Acórdão nº 287/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17, 1990,
159, 171, ss. e doutrina nele citada). Aqueles princípios, bem como o da irretroactividade deles decorrente, valem não só para normas que regulam o comportamento dos indivíduos, como para as que regulam as acções dos órgãos do Estado, nomeadamente nas suas relações entre si, embora então não seja aplicável a proibição de retroactividade do artigo 18º, nº 3 da Constituição, mas directamente o artigo 2º da mesma. Isto vale, em particular, quanto às normas que atribuem competências constitucionais que não podem ser restringidas retroactivamente sem ofensa da segurança jurídica e da confiança entre órgãos de soberania. No caso presente as competências da Assembleia da República de aprovar as propostas de lei seriam eliminadas retroactivamente, pelo que a Assembleia da República não poderia ter a certeza do direito que regula as suas acções nem de que estas produziriam os efeitos por si deliberados e legalmente previstos. Não seriam no caso respeitadas as suas expectativas quanto à utilidade da discussão e à validade e eficácia dos actos de votação das propostas de lei. Ter-lhe-ia sido retirado debaixo dos pés o tapete legal sobre que trabalhou. Só não será assim se se considerar que o princípio da irretroactividade não se aplica quando o acto da demissão do Governo é notório em todo o seu preciso conteúdo, e, portanto, do conhecimento presumível dos deputados – o que não se demonstra no caso quanto à eventual indicação da data de produção de efeitos - ou quando se presumem “modos de relacionamento político” entre os órgãos de soberania, incluindo comunicações não oficiais do conteúdo dos actos. Dir-se-á que por uma razão ou por outra, por notoriedade ou por intimidade, a confiança não merece protecção. Mas qualquer dos hipotéticos argumentos contraria o princípio de que a publicidade relevante para a eficácia de qualquer dos actos descritos no nº1 do artigo 119º é a da publicação no Diário da República, interpretado como publicação efectiva através da distribuição.
Nem que se diga que aqui os princípios da segurança e da protecção da confiança estão aqui em conflito com o princípio da legitimidade dos órgãos. O argumento, contrapõe-se, é circular: os órgãos agem com legitimidade enquanto respeitam os limites legais e são esses que falta demonstrar.
Não se desconhece que a legitimação política de certos actos constitucionalmente autorizados ao Governo pode faltar no período que intercede entre o conhecimento não oficial da aceitação da demissão e o seu conhecimento oficial. Mas essa eventual falta de legitimação política é controlável através do veto presidencial, sem necessidade de ofender princípios jurídicos.
Resta determinar positivamente a data da entrada em vigor do Decreto do Presidente da República nº 60-A/2001, demonstrado que foi não haver boas razões para aceitar a sua retroactividade quanto à Assembleia da República. Penso que há analogia com os actos legislativos e outros actos de conteúdo genérico a que se refere o artigo 2º da Lei nº 74/98. O decreto de demissão do Governo é um acto normativo como inúmeros efeitos não só ao nível dos órgãos de soberania, mas também ao nível dos indivíduos. Basta pensar nos efeitos da demissão do Governo quanto à cessação de inúmeros cargos e de contratos de pessoal. Por outro lado, penso que o facto da publicação em suplemento com data anterior à da distribuição manifesta a vontade de afastar a vacatio legis de cinco dias do nº 2 daquele artigo 2º. Assim sendo, o Decreto entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.
A tese da maioria vencedora tem um resultado praticamente indesejável: a inconstitucionalidade de uma lei aprovada de boa fé pela quase unanimidade da Assembleia da República. Não creio que tenha sido demonstrado pela maioria que tal resultado resulta da vontade do legislador constitucional, ou da vontade do Presidente da República. José de Sousa e Brito
Declaração de voto
Votei vencida, pelas razões que a seguir enuncio, sucintamente.
1. Entendo, acompanhando nessa parte a doutrina expendida no n.º 6 do acórdão, que deve revestir a forma de decreto o acto através do qual o Presidente da República certifica a demissão do Governo por efeito da aceitação do pedido de demissão apresentado pelo Primeiro-Ministro.
Ora, nos termos do artigo 119º, n.º 1, alínea d), da Constituição, os decretos do Presidente da República devem ser publicados no jornal oficial, Diário da República, e, por força do disposto no n.º 2 do mesmo artigo 119º, “a falta de publicidade dos actos previstos nas alíneas a) a h) do número anterior
[...] implica a sua ineficácia jurídica”.
A exigência constitucional de publicação no jornal oficial, Diário da República, dos actos mencionados no artigo 119º, n.º 2, da Constituição justifica-se pela necessidade de assegurar o conhecimento de tais actos, atenta
“a necessidade da imposição aos cidadãos das normas jurídicas e a necessidade de certeza do ordenamento jurídico” (acórdão do Tribunal Constitucional, n.º
303/90, referido no n.º 7 do acórdão em que se integra esta declaração).
Daí que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, primeiro, a jurisprudência constitucional, depois, e, mais recentemente, a lei, tenham clarificado que a eficácia de certos actos depende da sua publicação efectiva (assim: além do já citado acórdão n.º 303/90, os acórdãos do Tribunal Constitucional, n.ºs 99/86, 53/87, 435/87 e 303/90, referidos no n.º 7 do presente acórdão; os artigos 1º, 3º e 2º, n.º 4, da Lei n.º 74/98, de 11 de Novembro; no mesmo sentido, os pareceres da Procuradoria-Geral da República, n.ºs 265/78 e 5/84, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, n.º 124, de 30 de Maio de 1979, p. 3251 ss, e n.º 234, de 11 de Outubro de 1985, p. 9473 ss). Também a doutrina desde há muito se pronunciou no sentido de que a eficácia dos diplomas depende da sua publicação efectiva (cfr. Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Forma externa dos actos normativos do Governo, “Estudos CETAL”, n.º 1, Lisboa, 1989, p. 22, e mais recentemente, Publicação, identificação e formulário dos diplomas: breve comentário à Lei n.º
74/98, de 11 de Novembro, “Legislação”, n.º 22, Abril-Junho de 1998, p. 57 ss, p. 58-59).
Em minha opinião, esta tese é igualmente adequada para determinar o momento em que se verifica a eficácia jurídica dos decretos do Presidente da República, e, concretamente, para o que agora interessa, do decreto de aceitação do pedido de demissão do Governo (neste sentido, o mencionado parecer da Procuradoria-Geral da República, n.º 5/84, a propósito da eficácia de um decreto do Presidente da República de exoneração de um membro do Governo; também no mesmo sentido, embora em obiter dictum, e de modo não inteiramente conclusivo, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 142/85, Diário da República, II Série, n.º 206, de 7 de Setembro de 1985, p. 8369 ss, p. 8375).
Está em causa, no caso em apreço, um acto de comunicação de um órgão de soberania, um acto com eficácia externa. A produção dos respectivos efeitos há-de por isso depender do conhecimento desse acto pelos cidadãos e pelos outros
órgãos de soberania. As razões substanciais que estão na origem da exigência constitucional da publicação no jornal oficial dos actos de conteúdo normativo valem também em relação ao decreto do Presidente da República através do qual é aceite o pedido de demissão do Governo – designadamente tendo em vista a determinação do momento em que caducam, nos termos do artigo 167º, n.º 6, da Constituição, as propostas de lei apresentadas pelo Governo à Assembleia da República.
Na verdade, embora não possa qualificar-se tal decreto como acto normativo, não pode deixar de considerar-se que estamos perante um acto do qual resultam importantes efeitos políticos e que tem relevantes implicações jurídicas, directamente relacionadas com a competência, de carácter normativo, dos órgãos de soberania, Assembleia da República e Governo (desde logo, tendo em conta o disposto nos artigos 167º, n.º 6, 186º, n.º 5, segunda parte, e 165º, n.º 4, primeira parte, da Constituição da República Portuguesa).
2. Partindo de considerações sobre a necessidade de um decreto do Presidente da República que certifique a demissão do Governo por efeito da aceitação do pedido de demissão apresentado pelo Primeiro-Ministro e sobre a necessidade de publicação de tal decreto, a decisão do Tribunal assenta afinal na noção de notoriedade pública. Mas notoriedade de quê ? Do próprio acto do Presidente da República de aceitação do pedido de demissão ?
A ser assim, como parece, ao aceitar como suficiente a notoriedade do próprio acto do Presidente da República de aceitação do pedido de demissão apresentado pelo Primeiro-Ministro, o acórdão está, na realidade, segundo a minha interpretação, a dispensar o decreto de aceitação desse pedido de demissão.
Aqui reside, em meu entender, o equívoco e a incoerência da fundamentação do acórdão: por um lado, exige, para a efectivação da demissão do Governo, um decreto que certifique a aceitação, pelo Presidente da República, do pedido de demissão apresentado pelo Primeiro-Ministro; por outro lado, considera suficiente para a eficácia da demissão a notoriedade do acto de aceitação, pelo Presidente da República, do pedido de demissão.
3. Como refere o Senhor Presidente da República no pedido de fiscalização preventiva de constitucionalidade em apreciação, “era público e notório que o pedido de demissão fora aceite pelo Presidente da República em 17 de Dezembro de 2001, tal como foi publicamente anunciado aos órgãos de comunicação social pela Casa Civil da Presidência da República”.
Todavia, só “era público e notório que o pedido de demissão fora aceite pelo Presidente da República em 17 de Dezembro de 2001”; não era público e notório que tinha sido assinado pelo Presidente da República o decreto de aceitação do pedido de demissão e, muito menos, qual a data em que tinha sido assinado pelo Presidente da República o decreto de aceitação do pedido de demissão.
No dia 20 de Dezembro de 2001, os Deputados à Assembleia da República saberiam certamente “que o pedido de demissão fora aceite pelo Presidente da República em 17 de Dezembro de 2001”. Mas como poderia a Assembleia da República ter conhecimento do facto relevante para a produção de efeitos da demissão do Governo ? Por outras palavras, como poderia a Assembleia da República ter conhecimento do decreto do Presidente da República através do qual foi aceite o pedido de demissão do Governo e da data em que tal decreto foi assinado ?
A resposta só pode ser uma: no dia 20 de Dezembro de 2001, os Deputados à Assembleia da República não podiam ter conhecimento do decreto do Presidente da República através do qual foi aceite o pedido de demissão do Governo e da data em que tal decreto foi assinado. Por uma razão muito simples: porque o decreto do Presidente da República através do qual foi aceite o pedido de demissão do Governo – o Decreto n.º 60-A/2001 – apenas chegou ao seu conhecimento, como ao conhecimento dos cidadãos, em geral, no dia 26 de Dezembro de 2001, isto é, no dia em que foi distribuído o 2º suplemento do Diário da República, n.º 290, I Série-A.
Um entendimento diferente, implicando a substituição da publicação no jornal oficial pela divulgação através dos órgãos de comunicação social, é, em meu entender, claramente violador do princípio da segurança jurídica e do princípio da confiança, inerentes a um Estado de direito democrático, tal como consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.
4. Concluo, assim, que o Decreto do Presidente da República n.º
60-A/2001, através do qual foi aceite o pedido de demissão do Governo, só é juridicamente eficaz, por força do disposto no artigo 119º, n.º 2, da Constituição, a partir de 26 de Dezembro de 2001 – a data da distribuição e da publicação efectiva do 2º suplemento do Diário da República, n.º 290, I Série-A
(o jornal oficial em que, com data de 17 de Dezembro de 2001, se encontra publicado o referido Decreto n.º 60-A/2001).
Só em 26 de Dezembro de 2001 caducaram as propostas de lei apresentadas pelo Governo à Assembleia da República, de acordo com o disposto no artigo 167º, n.º 6, da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos, no dia 20 de Dezembro de 2001, a Assembleia da República podia ainda aprovar (na generalidade, na especialidade e em votação final global) a proposta de lei n.º 109/VIII, pelo que o Decreto da Assembleia da República n.º 185/VIII não viola a norma do artigo 167º, n.º 6, da Constituição.
Maria Helena Brito