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Processo n.º 602/12
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., S.A., melhor identificada nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, da decisão do tribunal arbitral tributário, de 31 de julho de 2012, pretendendo ver apreciada a “inconstitucionalidade da norma do artigo 14.º, n.º 1, da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, maxime com a interpretação que foi aplicada na decisão recorrida, na medida em que esta implica a tributação em sede de derrama mesmo nos casos em que não exista matéria coletável para efeitos de IRC, designadamente por existirem prejuízos fiscais de exercícios anteriores ainda não totalmente deduzidos ao lucro tributário do ano em causa”.
2. Notificada do indeferimento da reclamação graciosa interposta contra a liquidação de IRC e de Derrama n.º 20112910072719, requereu a (ora) recorrente a constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, previsto no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT), do artigo 102.º, do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
Instado a pronunciar-se sobre a questão, o tribunal arbitral concluiria que “a não consideração dos prejuízos fiscais de exercícios anteriores na base de cálculo da derrama municipal não viola os princípios da capacidade contributiva, igualdade tributária e tributação pelo lucro real”. Inconformado com a decisão, o recorrente requereu ainda a respetiva aclaração, nos termos do artigo 669.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 29.º, alínea e), do RJAT, pedido esse indeferido pelo tribunal arbitral em despacho com data de 20 de setembro de 2012. Seguiu-se, finalmente, o recurso de constitucionalidade cujo mérito agora se aprecia.
3. Notificada para alegar nos termos do artigo 79.º, da LTC, a recorrente apresentou as seguintes conclusões:
«(...)
I. O Douto Tribunal Arbitral interpretou de forma inconstitucional o artigo 14.º, n.º 1, da NLFL, ao considerar que, na medida em que o texto da lei estatui que a derrama incide sobre o lucro tributável e não sobre a matéria coletável (como defendeu e defende a Recorrente), há lugar à liquidação deste imposto mesmo quando, em virtude da existência de prejuízos fiscais reportáveis de exercícios anteriores, não haja manifestação de capacidade contributiva / rendimento para efeitos de tributação em sede de IRC.
II. A dedução de prejuízos fiscais de exercícios anteriores visa neutralizar os efeitos perniciosos da periodização do lucro tributável na tributação das empresas e é imposta pelos princípios da capacidade contributiva, da tributação do rendimento real e da igualdade, estabelecidos nos artigos 103.º, 104.º, n.º 2, e 13.º da CRP.
III. Tais princípios constitucionais impõem que a tributação do rendimento real das empresas tenha em consideração os prejuízos de exercícios anteriores, tanto no caso do IRC como no caso da derrama – a qual é igualmente um imposto sobre o rendimento (necessariamente real) das empresas.
IV. O princípio da capacidade contributiva é caracterizado consensualmente pela doutrina e pela jurisprudência deste Douto Tribunal como um princípio estruturante do sistema fiscal que exprime e concretiza o princípio da igualdade tributária e que tem assento implícito na “Constituição Fiscal”, por força da conjugação dos artigos 103.° e 104.° da CRP.
V. Sendo que o imposto só deve começar onde comece a força económica do seu sujeito passivo, a dedutibilidade de prejuízos fiscais impõe-se ao legislador ordinário e, bem assim, à Administração Fiscal, porque a sua inadmissibilidade implicaria que a tributação das empresas incidisse não sobre o rendimento das empresas mas apenas sobre as manifestações positivas periódicas do mesmo.
VI. A impossibilidade de dedução do prejuízo de exercícios anteriores ao lucro tributável fere, no que à tributação do rendimento concerne, não só aqueles princípios mas igualmente a própria noção de lucro enquanto base de incidência do imposto.
VII. Ademais, constitui um desvio à incidência do imposto – constitucionalmente determinada – sobre o rendimento real e efetivo das empresas a favor de uma tributação incidente sobre meras manifestações periódicas e isoladas de saldos patrimoniais positivos.
VIII. A tributação das empresas pelo lucro real é, pois, alcançada com a necessária consideração dos lucros e prejuízos numa perspetiva de médio prazo e não numa perspetiva míope que não alcança mais do que um exercício fiscal.
IX. A derrama municipal é um imposto, tributo unilateral, assente no princípio da capacidade contributiva, e não um tributo comutativo, assente no da equivalência ou benefício.
X. Mesmo que o benefício tivesse algum relevo em sede de derrama municipal, que não tem, o lucro anual não seria um indício da medida da vantagem que as empresas auferem das utilidades públicas locais, uma vez que esta, a existir, é tomada independentemente do facto de as empresas apresentarem lucro ou prejuízo e independentemente da forma como o seu rendimento real é distribuído pelos vários exercícios.
XI. A dedução de prejuízos, que permite preservar a incidência do IRC dos efeitos perniciosos da especialização dos exercícios, é constitucionalmente imposta para a determinação da matéria coletável da derrama.
XII. O Tribunal Arbitral considerou que, sendo a derrama um imposto autónomo, distinto do IRC, não lhe é aplicável o princípio da solidariedade de exercícios, o qual é, na perspetiva da ora Recorrente, decorrência do princípio da capacidade contributiva.
XIII. O princípio da capacidade contributiva é um princípio material, de quilate superior, que prevalece sobre a regra formal da especialização de exercícios.
XIV. A solidariedade de exercícios, de que deriva o reporte de prejuízos, é uma manifestação do princípio da capacidade contributiva, pois só poderá ser verdadeiramente apurada através de mecanismos que atenuem os efeitos da periodização do lucro tributável.
XV. O respeito, nos termos enunciados, pelo princípio da capacidade contributiva e da tributação do rendimento real não fere o princípio constitucional da autonomia do poder local previsto no artigo 238.º da CRP.
XVI. Pois ao estabelecer que a derrama incide sobre a matéria coletável, e não a sobre a coleta do IRC, permite ainda aos Municípios definir a sua receita fiscal de forma independente das opções tributárias do Estado (nomeadamente, as relativas à determinação das diferentes taxas do IRC).
XVII. A douta sentença arbitral considerou – erradamente, na perspetiva da ora Recorrente – que não ocorreu qualquer violação do princípio da igualdade tributária – decorrência do artigo 13.º da CRP – com base numa interpretação lógico-formal do mesmo.
XVIII. Decidiu igualmente – de forma errada na perspetiva da ora Recorrente – que o princípio da igualdade tributária não tem aplicabilidade quando a situação dos contribuintes é alargada de um exercício para dois.
XIX. O princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de ‘uniformidade’ — o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério — preenchendo aquela capacidade o critério unitário da tributação (maxime que a incidência e a repartição dos impostos ocorra segundo a capacidade económica ou “capacidade de gastar” de cada um e não segundo o que cada um eventualmente receba em bens ou serviços públicos, como sucede de acordo com o critério do benefício).
XX. O princípio da capacidade contributiva é o critério sobre o qual deve assentar o apuramento da igualdade entre as empresas para efeitos de imputação tributária.
XXI. A dedução de prejuízos de exercícios anteriores é igualmente imposta pelo princípio da igualdade pois este impõe, por um lado, (i) que duas empresas que realizem o mesmo lucro ao longo de um período de 2 anos sejam tributadas na mesma medida, independentemente do modo como este se reparta por cada um desses anos, e, por outro lado, (ii) que dois sujeitos passivos de IRC, com a mesma capacidade contributiva num mesmo exercício, sejam tributados no mesmo montante, algo que não ocorre se se adotar o entendimento perfilhado na decisão arbitral recorrida.
XXII. A interpretação do artigo 14.º, n.º 1, da NLFL tal como elaborada na recorrida sentença arbitral discrimina, também, entre sujeitos passivos de IRC com a mesma capacidade contributiva, consoante esta seja originada diretamente ou por intermédio de entidades sujeitas a transparência fiscal.
XXIII. Tal desigualdade é tanto mais manifesta quando se compara a tributação dos rendimentos de uma sociedade sujeita e não isenta de IRC em sede de derrama, consoante estes sejam apurados diretamente ou indiretamente, através de imputação da matéria coletável de uma sociedade civil não constituída sob forma comercial de que aquela primeira seja sócia.
XXIV. A matéria coletável (e não o lucro tributável), por ter em consideração os prejuízos fiscais de anos anteriores, constitui um índice adequado da capacidade contributiva – já que os resultados reais das empresas não se podem medir por “fotografias” tiradas anualmente - e assegura que o imposto da qual é base respeita o princípio da igualdade.
XXV. A consideração de que a dedução dos prejuízos fiscais de exercícios transatos não produz quaisquer efeitos na obrigação fiscal de derrama conduz a uma diferenciação material na tributação das empresas que não é legitimada por qualquer outro princípio constitucional a que o sistema fiscal português deva respeito e fere o princípio da igualdade tributária.
XXVI. É a capacidade contributiva, numa perspetiva de médio prazo, que deverá servir de base ao apuramento do respeito (ou não) pelo princípio da igualdade, sob pena de, caso assim não se considere, tal princípio ser vazio de conteúdo.
(...)»
Em sentido oposto pronunciou-se a entidade recorrida – a Autoridade Tributária e Aduaneira – pugnando pela improcedência do recurso:
«(...)
I. Não tem sustentação legal a posição assumida pela Recorrente segundo a qual o doutro Tribunal Arbitral interpretou de forma inconstitucional o art. 14º n.º 1 da NLFL.
II. Porquanto não existe qualquer inconstitucionalidade na aceção acolhida pela Nova Lei das Finanças Locais de estabelecer como base de incidência da derrama municipal o lucro real e não a matéria coletável.
III. Nem é forçoso que os princípios constitucionais imponham que a tributação do rendimento para efeitos de derrama municipal tenha em consideração os prejuízos de exercícios anteriores.
IV. A derrama municipal é, como consensualmente admitido pela doutrina, um imposto autónomo face ao IRC, socorrendo-se apenas do regime jurídico deste último quanto à sua operacionalidade.
V. Deixou, pois, de ter natureza de imposto extraordinário, passando de adicional ao IRC para ser um adicionamento, segundo os ensinamentos de RUI DUARTE MORAIS, in Passado, Presente e Futuro da Derrama, Fiscalidade n.º 38, abril - junho 2009, págs. 110 e 111.
VI. Assim, o princípio da capacidade contributiva não está dependente, como alega o Recorrente, do princípio da solidariedade de exercícios.
VII. Solidariedade de exercícios que consubstancia a fonte do direito à dedução dos prejuízos fiscais.
VIII. Nem é forçoso que a perspetiva de continuidade e de solidariedade de exercícios das empresas, presente na tributação em sede de IRC, tenha que estar presente derrama municipal.
IX. Até porque, tratando-se de um imposto local, impõe-se considerar o princípio da capacidade contributiva em conjugação com o princípio do benefício.
X. Porquanto, não são irrelevantes as infraestruturas existentes no município para a laboração das empresas, seja qual for o seu setor de atividade.
XI. Infraestuturas que pesam nos orçamentos municipais e que determinam muitas decisões ao nível do respetivo endividamento.
XII. Infraestruturas, cujas qualidade e características influenciam bastas vezes a decisão empresarial de situar o seu estabelecimento neste ou naquele município.
XIII. Ou seja, na derrama municipal o princípio do benefício assume uma importância relevante, sem que saia beliscado o princípio da capacidade contributiva.
XIV. Também, aceitar a tese da Recorrente e dedução dos prejuízos de anos anteriores, poria em causa o princípio da autonomia do poder local previsto no art. 238º da CRP.
XV. Pois teremos de atender ao princípio da domiciliação da atividade da empresa.
XVI. Atendendo a que a derrama é um imposto municipal, cuja criação está prevista em lei da Assembleia da República (tratando-se, por isso de um verdadeiro imposto), mas lançado pelo Município, que dispõe, igualmente, do poder de aplicar a taxa.
XVII. Havendo a possibilidade de serem considerados os prejuízos fiscais de anos anteriores, para efeitos de tributação de determinado exercício, se houvesse mudança de domicílio para outro município, os prejuízos gerados naquele viriam afetar a capacidade financeira deste.
XVIII. Também não se vislumbra em que medida a perspetiva de continuidade de funcionamento das empresas alegada pela requerente constitui uma exigência constitucional, por imposição do princípio da capacidade contributiva. Se o fosse, em sede de IRC, teria de ter um correspetivo instituto no IRS, o que não acontece.
XIX. Já quanto ao princípio da tributação pelo rendimento real, acompanhamos a posição perfilhada por esse Douto tribunal Constitucional segundo a qual o rendimento fiscalmente relevante não é, em si próprio, uma realidade de valor fisicamente apreensível, mas antes um conceito normativamente modelado e contabilisticamente mensurável.
XX. Quanto à alegada violação do princípio da igualdade aceita-se que o mesmo consiste em “dar tratamento igual ao que é igual e tratamento desigual ao que é desigual”.
XXI. Razão pela qual não se vislumbra qualquer violação do princípio da igualdade no postulado imposto pelo artigo 14º da Nova Lei das Finanças Locais em fazer incidir a derrama municipal no “lucro tributável.
(...)»
II. Fundamentação
4. O objeto do presente recurso de constitucionalidade é integrado pela norma constante do n.º 1, do artigo 14.º, da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro (Lei das Finanças Locais, doravante, LFL), quando interpretada no sentido de que, tendo a derrama municipal como base de incidência o lucro tributável, não é possível a dedução dos prejuízos fiscais de exercícios anteriores, por violação dos princípios da igualdade tributária (cfr. artigo 13.º, da CRP), da capacidade contributiva, e da tributação das empresas pelo lucro real (cfr. artigo 104.º, n.º 2, da CRP). A norma em crise tem a seguinte redação:
«(...)
Artigo 14.º
Derrama
1. Os municípios podem deliberar lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5% sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território.
(...)»
5. A derrama municipal é uma figura tributária com forte tradição no nosso direito financeiro local, circunstância não desconhecida pela jurisprudência constitucional que, inclusivamente, no Acórdão n.º 57/95 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), a classificou como um “costume constitucional”. A questão de constitucionalidade supra enunciada tem, porém, raízes mais recentes, visto que, ao contrário do que sucede na nova LFL, a base de incidência da derrama municipal sempre foi a coleta do Imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) e não o lucro tributável. Isso mesmo é comprovável, entre outros, a partir do artigo 18.º, n.º 1, da Lei n.º 42/98, de 6 de agosto, que assumia, com efeito, a seguinte redação:
«(...)
Artigo 18.º
Derrama
1 – Os municípios podem lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 10% sobre a coleta do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que proporcionalmente corresponda ao rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola.
(...)»
A derrama assume-se atualmente como um imposto municipal, expressão, portanto, da autonomia financeira de que gozam as autarquias locais e concretamente os municípios, nos termos dos artigos 238.º, n.º 4, e 254.º da CRP. Como é sobejamente reconhecido, a autonomia financeira das autarquias locais é uma faculdade concretizadora do princípio da autonomia local (cfr. artigo 6.º, n.º 1, da CRP), de acordo com a qual aquelas devem possuir “receitas suficientes para a realização das tarefas correspondentes à prossecução das suas atribuições e competências” (Casalta Nabais, “A autonomia financeira das autarquias locais”, BFDUC, vol. 82, 2006, p. 29).
Essas receitas podem ser, entre outras, receitas fiscais, concretizando-se os poderes tributários reconhecidos pelo legislador constituinte às autarquias locais quer num verdadeiro poder tributário – leia-se, no poder de criar ou conformar impostos – quer num direito à receita dos impostos (Casalta Nabais, “A autonomia financeira das autarquias locais”, cit., p. 33). Neste sentido, a derrama surge como uma manifestação da primeira modalidade de poder tributário referida, porquanto o município, para além de se afirmar como o sujeito ativo da relação tributária - isto é, como o titular do crédito de imposto – tem um domínio praticamente absoluto sobre os seus elementos essenciais, circunstância que reforça a natureza municipal da derrama. Como é bom de ver, esta qualificação não é perturbada pelo facto de a cobrança deste tributo continuar a pertencer, por razões de comodidade, à administração tributária central (DGCI).
Trata-se, hoje, para além disso, de um mecanismo corrente de financiamento dos municípios, visto que a derrama perdeu o caráter extraordinário de que se revestia à luz do artigo 18.º, n.º 2, da Lei n.º 42/98, de 6 de agosto, nos termos do qual apenas poderia ser lançada “para reforçar a capacidade financeira ou no âmbito da celebração de contratos de reequilíbrio financeiro”.
Antes da aprovação da nova LFL, a doutrina qualificava a derrama como um imposto acessório, embora houvesse quem (já) propusesse uma qualificação distinta – a de imposto dependente. A diferença entre ambos prende-se com o grau de vinculação ou de subordinação relativamente ao imposto principal: assim, um imposto diz-se acessório quando fique demonstrado que, inexistindo a dívida principal (ou a dívida originada pelo imposto principal), inexiste dívida subordinada, e diz-se dependente quando, mesmo na ausência da dívida principal, possa existir dívida subordinada (Sousa Franco, “Os poderes financeiros do Estado e do Município: sobre o caso das derramas municipais”, Estudos em Homenagem à Dra. Maria de Lourdes Correia e Vale, Lisboa, 1995, p. 69). Independentemente desta divergência, existia consenso no sentido de que, do ponto de vista jurídico-financeiro, a derrama se configurava como um adicional ao IRC e não como um adicionamento. A diferença entre as duas figuras não constitui novidade: um imposto reputa-se adicional quando incide sobre a coleta do imposto principal, e adicionamento quando incide sobre a matéria coletável daquele.
Não há dúvida que a nova LFL veio alterar substancialmente este quadro. À luz dos novos dados normativos, a derrama assume-se como um imposto autónomo, no sentido de dependente – leia-se, não acessório – fundando a doutrina tal convicção na circunstância de que todos os seus elementos essenciais constam da lei ou dependem da vontade dos municípios, cujo interesse é determinante na decisão quanto ao respetivo lançamento. A sua relação com o IRC cinge-se, portanto, para efeitos do seu cálculo e por razões de simplicidade, a uma base tributável comum, que não prejudica nem obsta à existência de relações jurídico-tributárias autónomas entre os dois impostos (Saldanha Sanches, “A derrama, os recursos naturais e o problema da distribuição de receita entre os municípios”, Fiscalidade, n.º 38, 2009, p. 137).
É certo que a derrama incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, de onde decorre que nos casos em que não haja lugar a tributação do rendimento, também não haverá obrigação de pagamento da derrama, por falta de base de incidência. No entanto, relativamente a qualquer outra vicissitude com repercussão no IRC – v.g., invalidade da liquidação, deduções à matéria coletável e à coleta, reduções de taxa – a derrama adquiriu estatuto de imunidade, desligando-se efetivamente do imposto principal (Saldanha Sanches, “A derrama, os recursos naturais e o problema da distribuição de receita entre os municípios”, cit., p. 138).
Depois, tendo a derrama passado a ser calculada a partir do lucro tributável – e não já a partir da coleta – há que concluir que a mesma se converteu, de uma perspetiva jurídico-financeira, num adicionamento ao IRC, perdendo a sua natureza de adicional (Sérgio Vasques, “O sistema de tributação local e a derrama”, Fiscalidade, n.º 38, 2009, p. 121; Jónatas Machado/Paulo Nogueira da Costa, “As derramas municipais e o conceito de estabelecimento estável”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. L. Saldanha Sanches, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p. 854). Finalmente, cumpre sublinhar que a derrama incide, nos termos do n.º 1 do artigo 14.º, sobre a proporção do rendimento da empresa gerado na área geográfica do município, circunstância que explica que alguma doutrina tenda a perscrutar em tal critério uma manifestação do princípio do benefício, no sentido de que o montante de imposto a pagar por cada empresa a cada município visa compensar os custos consideráveis em que este incorreu para que aquela pudesse gerar rendimento (Saldanha Sanches, “A derrama, os recursos naturais e o problema da distribuição de receita entre os municípios”, cit., p. 140; Rui Duarte Morais, “Passado, presente e futuro da derrama”, Fiscalidade, n.º 38, 2009, p. 113).
6. De acordo com a interpretação sufragada pela decisão recorrida, incidindo a derrama sobre o lucro tributável, deixam de poder tomar-se em consideração quaisquer prejuízos fiscais de anos anteriores. De facto, ao abrigo do artigo 15.º, do CIRC, a matéria coletável das entidades mencionadas na alínea a), do n.º 1, do artigo 3.º obtém-se mediante dedução, ao lucro tributável, dos prejuízos fiscais e dos benefícios fiscais eventualmente existentes e que consistam em deduções naquele lucro. Já o lucro tributável corresponde, nos termos do artigo 17.º, “à soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas no mesmo período e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos” nos termos do CIRC. O mesmo é dizer, portanto, que tendo o legislador ordinário optado por fazer incidir a derrama sobre o lucro tributável, e não sobre a matéria coletável, a norma em crise veda efetivamente a dedução de prejuízos fiscais prevista no artigo 52.º, do CIRC, operação que pressupõe o apuramento prévio do lucro tributável nos termos supra assinalados.
Tudo está em saber, neste sentido, se esta é uma opção constitucionalmente legítima, ou se é possível opor-lhe os princípios constitucionais da igualdade tributária, da capacidade contributiva e da tributação das empresas pelo lucro real (cfr. artigos 13.º e 104.º, n.º 2, respetivamente). Por outras palavras, é mister analisar se é possível extrair dos princípios enumerados imperativo constitucional que vede soluções que obstem àquela dedução.
Ora, talqualmente afirmou o Acórdão n.º 84/03 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), “o princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária”. Isto porque se o princípio da igualdade tributária pressupõe o tratamento igual de situações iguais e o tratamento desigual de situações desiguais, a capacidade contributiva é o tertium comparationis – leia-se, o critério – que há de servir de base à comparação. Neste sentido, o princípio da capacidade contributiva opera tanto como condição ou pressuposto quanto como critério ou parâmetro da tributação (cfr. o Acórdão n.º 601/04, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Opera como pressuposto ou condição visto que impede que a tributação atinja uma riqueza ou um rendimento que não existe; vale como critério ou parâmetro porque determina que a exação do património dos contribuintes se faça de acordo com a sua “capacidade de gastar” (ability to pay). Ou seja, contribuintes com a mesma capacidade de gastar devem pagar os mesmos impostos (igualdade horizontal), e contribuintes com diferente capacidade de gastar devem pagar impostos diferentes (igualdade vertical). Outro dos corolários deste princípio é precisamente a tributação do rendimento líquido do contribuinte, de onde deflui uma exigência de dedução das despesas necessárias à angariação do próprio rendimento (cfr. o Acórdão n.º 601/04, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Tributar o lucro real das empresas, por seu turno, significa atingir a matéria coletável auferida pelo sujeito passivo, pelo que a tributação do lucro real é, também, uma decorrência necessária do princípio da capacidade contributiva (cfr. o Acórdão n.º 162/04, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Trata-se, no entanto, de um princípio cuja principal concretização é afastar a tributação das empresas pelo seu lucro normal, isto é, tributar o rendimento que estas poderiam ter obtido em condições normais de exploração, independentemente, pois, das condições concretas em que desenvolveram a sua atividade (Xavier de Basto, “O princípio da tributação do rendimento real e a Lei Geral Tributária, Fiscalidade, n.º 5, 2001, p. 10). A questão tem sido objeto de discussão na jurisprudência constitucional, a propósito dos métodos indiretos de apuramento da matéria coletável (cfr. os artigos da Lei Geral Tributária), assumindo tal jurisprudência que a tributação pelo lucro real é um princípio que admite “desvios”, entenda-se, é compatível com alguma “normalização” no apuramento da matéria coletável (cfr. os Acórdãos n.º 84/03 e 85/10, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Já o reporte de prejuízos, previsto no artigo 52.º, do CIRC, justifica-se em razão de uma lógica de solidariedade dos exercícios. Ou seja, não obstante a regra ser a da periodização do lucro acompanhada da correspondente anualidade do imposto, os efeitos fiscais desta periodização tendem a ser minimizados através de algumas medidas, entre as quais se integra o reporte de prejuízos (para a frente e para trás). Permite-se, assim, a comunicação dos prejuízos de um exercício aos lucros de outro exercício, “como forma de o imposto sobre os lucros ser equitativo e respeitar, afinal, a capacidade contributiva dos sujeitos sobre que incide” (Freitas Pereira, “O regime fiscal do reporte de prejuízos – princípios fundamentais, Estudos em Homenagem à Dra. Maria de Lourdes Correia e Vale, Lisboa, 1995, p. 223) e o princípio da tributação segundo o lucro real. Fácil é de ver, porém, que o reporte de prejuízos, apesar de mais adequado ao modo como flui o rendimento das empresas, é fator de erosão de receitas fiscais, pelo que a previsão do reporte bem como os limites a que se acha sujeito (v.g., reporte para a frente e/ou para trás, limitação temporal do reporte, prioridade da dedução dos prejuízos fiscais mais antigos) hão de compatibilizar-se com o desiderato dos impostos, que passa pela satisfação das necessidades financeiras do Estado (cfr. artigo 103.º, n.º 1, da CRP).
7. Neste sentido, o legislador ordinário, ao ligar a derrama à categoria do lucro tributável, pretendeu evitar que, através do reporte de prejuízos, as empresas pudessem furtar-se ao pagamento deste imposto, reduzindo as receitas próprias do município e, desta forma, comprometendo a efetivação da autonomia local. Socorreu-se, pois, da mesma técnica que está subjacente à derrama estadual (cfr. o artigo 87.º-A, do CIRC) - uma taxa adicional aplicável ao lucro tributável superior a 1 500 000 euros sujeito e não isento de IRC – com a diferença que, ao contrário desta, a derrama municipal é um imposto autónomo de que o município é titular ativo.
Não há, porém, uma conexão suficientemente forte entre os princípios da igualdade tributária e da tributação das empresas pelo lucro real, por um lado, e a figura do reporte de prejuízos fiscais, por outro, ao ponto de se poder afirmar que a assunção do lucro tributável como matéria coletável de um dado imposto frustra o respetivo conteúdo normativo. Indubitavelmente, havendo reporte de prejuízos, verifica-se uma maior adequação da tributação à vida económica das empresas, mas isso não basta para que se afirme, na ausência daquela faculdade, uma violação daqueles princípios.
Mesmo que assim não se entendesse, sempre seria argumentável que a lesão infligida às exigências normativas subjacentes à igualdade tributária e à tributação do lucro real das empresas em virtude da ausência de reporte é mínima, visto que em causa não está o principal imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, e justificável à luz dos (outros) princípios fundamentais que promove, maxime, do princípio da autonomia local. Ou seja, tal lesão justifica-se em razão da necessidade de não erodir as receitas fiscais dos municípios, algo que sucederia amiúde caso as empresas pudessem, neste imposto em concreto, reportar os prejuízos fiscais dos exercícios anteriores.
Daí que haja de concluir-se pela não inconstitucionalidade da norma em crise – o artigo 14.º, n.º 1, da LFL – admitindo, portanto, que a figura do reporte de prejuízos fiscais não é constitucionalmente imposta pelos princípios da capacidade contributiva, da igualdade tributária e da tributação das empresas segundo o lucro real, e que, assim sendo, quer a sua consagração, quer a medida dessa consagração, integram a margem de livre conformação do legislador ordinário no domínio fiscal.
III: Decisão
8. Atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional o n.º 1 do artigo 14.º, da Lei das Finanças Locais, na parte em que aí se estabelece que, tendo a derrama municipal como base de incidência o lucro tributável, não é possível o reporte dos prejuízos fiscais, por violação dos princípios da igualdade tributária, da capacidade contributiva, e da tributação das empresas pelo lucro real.
b) Por conseguinte, negar provimento ao recurso.
c) Condenar a recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) Ucs.
Lisboa, 9 de abril de 2013.- José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Joaquim de Sousa Ribeiro.