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Processo n.º 632/00
2ª Secção Relator - Paulo Mota Pinto Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório No Acórdão do Supremo Tribunal Militar de 4 de Outubro de 2000 foi julgada inconstitucional, e consequentemente não aplicada, a norma contida na alínea c) do artigo 380º do Código de Justiça Militar assim redigida:
'O juiz auditor, logo que receber o processo com o libelo, determinará, por despacho, que a cada um dos réus se entregue, sob pena de nulidade, uma nota de culpa que, além da cópia do libelo e do rol de testemunhas, deverá conter as declarações seguintes:
(...) c) Que devem entregar o rol de testemunhas para prova da defesa no acto de intimação ou dentro de cinco dias, na secretaria do tribunal.' Considerou aquele Alto Tribunal, secundando quer o recorrente A, que entregara o seu rol de testemunhas no Tribunal Militar Territorial do Porto fora de tal prazo, quer o Promotor de Justiça naquele Supremo Tribunal, que a referida alínea c) do artigo 380º do Código de Justiça Militar, na parte em que fixa o prazo de cinco dias para apresentação do rol de testemunhas é inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 32º, n.º 1 e 13º da Constituição. De tal decisão foi interposto recurso de constitucionalidade pelo Promotor de Justiça em funções no Supremo Tribunal Militar ao 'abrigo do disposto no artigo
280º, n. 1, al. a) da Constituição da República Portuguesa, conjugado com os artigos 285º do Código de Justiça Militar, 70º, n.º 1 al. a) e 72º, n.º 1 al. a) da Lei n.º 28/82, de 7 de Setembro, e Lei n.º 13 -A/98, de 26 de Fevereiro.' Neste Tribunal só o Ministério Público produziu alegações, concluindo deste modo:
'1º – A norma contida na alínea c) do artigo 380º do Código de Justiça Militar, na parte em que fixa o prazo de cinco dias para a entrega do rol de testemunhas
é inconstitucional por violação das disposições conjugadas dos artigos 32º, n.º
1 e 13º da Constituição da República Portuguesa.
2º – Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.' Cumpre decidir. II. Fundamentos Escreveu-se no Acórdão recorrido que
'Desde a entrada em vigor, em Abril de 1977, do actual C.J.M., até hoje, não foi o aludido prazo contestado, nem se conhece caso em que, dentro dele, tivesse sido impossível ou até difícil a apresentação do rol de testemunhas. Ao invés, reconhece-se que o dito prazo é curto para as diligências pessoais necessárias à elaboração do rol.' A norma impugnada – alínea c) do artigo 380º do Código de Justiça Militar, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 141/77, de 9 de Abril – estabelece, indirectamente, um prazo de cinco dias para a apresentação do dito rol ao dispor que o juiz auditor determine que cada réu 'deve entregar o rol de testemunhas para a prova da defesa no acto de intimação ou dentro de cinco dias, na secretaria do tribunal'. O prazo previsto no n.º1 do artigo 315º do actual Código de Processo Penal, para o mesmo efeito, é de '20 dias a contar da notificação do despacho que designa dia para a audiência' e um tal prazo, estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 317/95, de 28 de Novembro, tomou o lugar de um prazo de 7 dias, que era o fixado na versão original do Código de Processo Penal de 1987. Este Tribunal já admitiu, porém, que diferentes ramos processuais possam conter diferentes prazos para actos de natureza semelhante ou idêntica (cfr., v.g., o Acórdão n.º 266/93, publicado no Diário da República, II Série, de 10 de Agosto de 1993), que no mesmo direito processual existam tais diferenças de prazos
(cfr., por ex., o Acórdão n.º 186/92, publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Setembro de 1992) e que diferentes sujeitos processuais estejam adstritos a diferentes prazos (cfr., vg., o Acórdão n.º 524/97, publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Dezembro de 1994), desde que haja para isso fundamento material bastante. Em todo o caso, não deixou de considerar, mesmo atendendo à especificidade do processo penal militar, que não era admissível – para efeitos de interposição e motivação do recurso – um prazo
'especial e significativamente mais curto – correspondente a metade – do que o previsto no processo penal comum' (Acórdão n.º 34/96, publicado no Diário da República, II Série, de 29 de Abril de 1996). O mesmo juízo foi, aliás, reiterado no Acórdão n.º 611/96 (publicado no Diário da República, II Série, de
6 de Julho de 1996). Um prazo de cinco dias para o arguido requerer diligências contraditórias em processo de querela foi, também, julgado inconstitucional por este Tribunal no Acórdão n.º 41/96 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 33º,
1996, pp. 235-245) com, entre o mais, a seguinte fundamentação:
'O processo penal de um Estado de Direito há-de ‘assegurar ao Estado a possibilidade de realizar o seu ius puniendi’; mas há-de também ‘oferecer aos cidadãos as garantias necessárias para os proteger contra abusos que possam cometer-se no exercício desse poder punitivo, designadamente contra a possibilidade de uma sentença injusta’(cfr. Acórdão n.º 434/87, publicado no Diário da República, II Série, de 23 de Janeiro de 1988, e no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 371, p. 160). Tal processo há-de ser, assim, um due process of law, no sentido de que, nele, há-de o arguido poder defender-se. Este, o núcleo essencial do princípio da defesa, que, no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, se proclama. A este propósito, escreveu-se no Acórdão n.º 61/88, publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Agosto de 1988: A ideia geral que pode formular-se a este respeito – a ideia geral, em suma, por onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações (judiciais) do princípio da defesa, para além das consignadas nos n.ºs 2 e segs. do artigo 32º – será a de que o processo criminal há-de ser um due process of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possiblidades de defesa do arguido.
(cfr. também o Acórdão n.º 322/93, publicado no Diário da República, II Série, de 29 de Outubro de 1993). Esta cláusula constitucional – que se apresenta com um cunho reassuntivo e residual (relativamente às concretizações que já recebe nos números seguintes do artigo 32º) e que, na sua abertura, acaba por revestir-se de um carácter acentuadamente programático – contém, ao cabo e ao resto, um eminente conteúdo normativo imediato a que se pode recorrer directamente, em casos limite, para inconstitucionalizar certos preceitos da lei ordinária (cfr. Figueiredo Dias, in A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os Tribunais, p. 51). E contém esse conteúdo normativo imediato, justamente, porque aí se proclama o próprio princípio da defesa e, portanto, inevitavelmente, se faz apelo para o seu núcleo essencial, cuja ideia geral é a de que o processo criminal tem de assegurar sempre ao arguido a possibilidade de ele se defender (cfr. também o Acórdão n.º
186/92, publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Setembro de 1992). O princípio das garantias de defesa – afirmou-se no já citado Acórdão n.º 434/87
– será violado ‘toda a vez que ao arguido se não assegure, de modo efectivo, a possibilidade de organizar a sua defesa’; ou seja: sempre que se lhe não dê oportunidade real de apresentar as suas próprias razões e de valorar a sua conduta (cfr. Acórdão n.º 315/85, publicado no Diário da República, II Série, de
12 de Abril de 1986).' No Acórdão n.º 406/98 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol.
40º, 1998, pp. 391-402), considerou-se igualmente inconstitucional um prazo de cinco dias, contados da notificação da acusação, para o arguido requerer a abertura da instrução (embora já com votos de vencido, que sublinharam, designadamente, a diferença de consequências para o arguido decorrentes do não cumprimento do prazo do n.º 1 do artigo 287º do Código de Processo Penal, na versão anterior à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 317/95, de 27 de Novembro, em relação às decorrentes do não cumprimento dos outros prazos referidos). Ora, tendo em conta que as duas ideias-chave que presidiram aos anteriores juízos de inconstitucionalidade foram a violação das garantias de defesa (por se não dar ao arguido uma 'oportunidade real e apresentar as suas próprias razões e de valorar a sua conduta') e a violação do princípio da igualdade, importa aferir agora o modo como a norma em causa – 'no quadro legal em que se inscreve', pois 'é no conjunto desse quadro legal que ela deve ser avaliada
[cfr., neste sentido, o já citado Acórdão n.º 186/92 (...)]', para o dizer como no Acórdão n.º 41/96 – interfere com tais princípios. Ora, para avaliar este quadro legal, torna-se necessário esclarecer, antes do mais, que não está em questão no presente processo um prazo para apresentação da defesa por escrito, a qual pode fazer-se, nos termos da alínea a) do artigo 380º do Código de Justiça Militar, 'seja na secretaria do tribunal dentro de cinco dias, seja na audiência do julgamento'. Trata-se apenas do prazo para entrega do rol de testemunhas, neste aspecto se distinguindo o que está em questão das normas apreciadas nos já citados Acórdãos 34/96 e 611/96 (prazo para apresentação da motivação de recurso em processo penal militar), 41/96 (prazo para se requerer diligências contraditórias em processo de querela) e 406/98
(prazo para requerer a abertura de instrução). Por outro lado – e, porventura, decisivamente –, há que trazer à colação a alínea d) do referido artigo 380º, assim redigida:
'O juiz auditor, logo que receber o processo com o libelo, determinará, por despacho, que a cada um dos réus se entregue, sob pena de nulidade, uma nota de culpa que, além da cópia do libelo e do rol de testemunhas deverá conter as declarações seguintes:
(...) d) Que, depois de terminado o prazo a que se refere o número anterior, até três dias antes do julgamento, lhe é permitido aditar testemunhas ou substituir as indicadas, contanto que residam na localidade onde funcionar o tribunal ou, no caso contrário, se comprometa a apresentá-las;' (itálico aditado) O regime em apreço, vigente no Código de Justiça Militar, é, pois, substancialmente idêntico (no que ora importa, que é apenas a apresentação do rol das testemunhas) ao que se contém nos artigos 315º e 316º do Código de Processo Penal de 1987. De facto, pode aditar-se tal rol de testemunhas ou modificá-lo por completo até três dias antes do julgamento – no caso do Código de Processo Penal, 'contanto que o adicionamento ou a alteração requeridos por um possam ser comunicados aos outros até três dias antes da data fixada para a audiência'– desde que as testemunhas residam na localidade onde funcionar o Tribunal (ou na comarca, no caso do Código de Processo Penal); e pode também aditar-se o rol de testemunhas ou mudá-lo por completo até três dias antes do julgamento (ou, no caso do Código de Processo Penal, contanto que o aditamento ou alteração possam ser comunicados até três dias antes da data fixada para a audiência) para todas as outras testemunhas, desde que se assuma o compromisso de as apresentar.
É dizer que entre as diferenças de regime relativas ao tempo para apresentação do rol de testemunhas se inclui o prazo inicial, que, porém, não se reveste de um efeito preclusivo: em cinco dias pode o réu em processo penal militar indicar, por exemplo, uma única testemunha que, posteriormente, pode nem querer que seja ouvida. Em processo penal 'comum' tem o arguido, para o mesmo efeito, vinte dias. Porém, enquanto neste tipo de processo o arguido tem os mesmos vinte dias para apresentar a sua contestação, em processo penal militar o réu tem, como se disse, a prerrogativa de apresentar a sua defesa por escrito, 'seja na secretaria do tribunal dentro de cinco dias, seja na audiência de julgamento', podendo o prazo para a realização, variável em função das circunstâncias mas nunca sendo inferior a 8 dias (cfr. artigos 385º, n.ºs 1 e 2 e 386º, n.ºs 1 e 2 do Código de Justiça Militar), ser mais extenso do que em processo penal
'comum'. E enquanto neste a possibilidade de alterar ou aditar o rol de testemunhas cabe ao Ministério Público, ao assistente e às partes civis, além de ao arguido
(artigo 316º, n.º 1 do Código de Processo Penal), em processo penal militar o réu recebe, juntamente com a nota de culpa, cópia do libelo e do rol de testemunhas da acusação (artigo 377º, n.º 1, alínea e) do Código de Justiça Militar) e só ele pode alterar ou aditar o seu rol de testemunhas (artigo 380º, alínea d) do mesmo Código). Por último, enquanto a possibilidade de alteração ou aditamento do rol de testemunhas em processo penal existe até ao dia em que seja possível comunicar aos outros tal alteração ou aditamento com três dias de antecedência em relação
à data marcada para a audiência, em processo penal militar tal prerrogativa existe até três dias antes do julgamento. Quando se confrontam os dois regimes, o que avulta não são, pois, as diferenças de pormenor, mas a semelhança de fundo – e, sobretudo, a inexistência de um efeito preclusivo da apresentação do rol de testemunhas, numa formalidade distinta da apresentação da defesa por escrito (a qual pode ter lugar ainda na audiência de julgamento). Ora, num tal quadro, afigura-se inadequado, como já se escreveu nos Acórdãos n.ºs 287/2000 e 319/2000 (publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 17 e 18 de Outubro de 2000), 'isolar um ponto do regime global para fazer comparação'. Como se escreveu no Acórdão n.º 663/99, (publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Fevereiro de 2000):
'Pretender fazer valer uma igualdade formal em matéria de uma regalia específica ou norma específica, desconsiderando todo o universo de diferenças que a justifica, bem como o sentido da própria regulamentação globalmente considerada que a impõe (...), seria desconsiderar o próprio sentido do princípio da igualdade, que exige o tratamento diferenciado do que é diferenciado tanto quanto exige o tratamento igual do que é igual. Sendo certo, aliás, que a igualdade de uma circunstância pode, no conjunto, agravar a desigualdade - basta que a igualização se faça a favor da parte mais favorecida em todas as outras circunstâncias.' Nesse mesmo acórdão se escreveu que 'não é uma igualdade formal que está em causa'. Ora, atendendo ao quadro legal em que se inserem as normas comparadas (do Código de Justiça Militar e do Código de Processo Penal), parece dever concluir-se que, pese embora a desigualdade inicial do prazo para junção do rol de testemunhas – entre outras – o que releva é uma substancial equivalência no que diz respeito ao regime de apresentação destas. Mas não é apenas em confronto com o princípio da igualdade que o regime do Código de Justiça Militar sustenta a comparação com o Código de Processo Penal sem ofensa aos princípios constitucionais. Também no que diz respeito ao direito de acesso aos tribunais e das garantias de defesa em processo penal o regime ora sob apreciação se não afigura conflituante com as exigências da Lei Fundamental, não sendo no seu conjunto mais desfavorável para os réus do que o do Código de Processo Penal, como se viu. Ora, aplicando o critério que este Tribunal definiu no já citado Acórdão n.º
34/96, impõe-se, também desta perspectiva, a conclusão da conformidade constitucional:
'O primeiro momento da análise implica que se averigue se, em si, um prazo de cinco dias para [aqui, juntar um rol de testemunhas livremente modificável, no original para interpor e motivar o recurso] é limitativo do direito de acesso aos tribunais e das garantias de defesa em processo penal. Ora, a resposta positiva só se imporia se o prazo fosse ostensivamente exíguo e inadequado para a organização da defesa. Fora deste âmbito, não há, obviamente, um direito a um certo prazo. Se o prazo de cinco dias fosse manifestamente incapaz de permitir a defesa seria inconstitucional. No caso de não ser possível fazer, nem em geral nem na situação normativa concreta, tal afirmação, nenhum juízo de inconstitucionalidade se imporá, na perspectiva estrita do direito de acesso aos tribunais e das garantias de defesa em processo penal.' Porque, como se viu, a indicação do rol de testemunhas no prazo inicial fixado na lei para o processo penal militar não preclude a sua (eventualmente completa) alteração e/ou aditamento subsequente, não pode valorar-se a diferença de prazo existente entre o processo penal militar e o processo penal 'comum' como lesiva do direito de acesso aos tribunais e das garantias de defesa em processo penal. Porque, como igualmente se viu, tal diferença de prazo, no contexto do regime global em que se insere, não pode ser tida como lesiva da igualdade, conclui-se que, ao contrário do decidido no tribunal a quo, a norma em causa, no quadro legal em que se inscreve, não viola a Constituição. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional o artigo 380º, alínea c), do Código de Justiça Militar b) Por conseguinte, conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida de acordo com o presente juízo de não inconstitucionalidade. Lisboa, 12 de Dezembro de 2001 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa