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Processo n.º 495/2011
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos vindos do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, em que é recorrente o Ministério Público e são recorridos A., Unipessoal, Ldª, B. e C., foi interposto recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), para apreciação da (in)constitucionalidade da norma « … do artigo 8.º, n.º 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05 de junho,…», cuja aplicabilidade foi recusada com fundamento na violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, contidos nos artigos13.º, n.º 1 e 18.º, n.º 2 e, bem assim, das normas que proíbem o duplo julgamento criminal e a transmissibilidade da responsabilidade penal, plasmadas nos artigos 29.º, n.º 5 e 30.º, n.º 3, todos da Constituição da República Portuguesa.
2. O recorrente, tendo alegado, formulou as seguintes conclusões:
«…
1. Diferentemente do que ocorre com o artigo 7.º-A do RGIFNA e artigo 8.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RGIT, não se vislumbra no n.º 7 do artigo 8.º deste último diploma, que a responsabilidade solidária pelas multas, decorra de uma qualquer conduta própria e autónoma relativamente àquela que levou à aplicação da sanção penal à pessoa coletiva.
2. Deste modo, essa responsabilidade solidária equivale a uma transmissão de responsabilidade penal, que é constitucionalmente proibida (artigo 30.º, n.º 3 da Constituição).
3. Assim, a norma do n.º 7 do artigo 8.º do RGIT, na interpretação segundo a qual, os administradores e gerentes de uma sociedade, condenados pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal (artigo 105.º, n.ºs 1 e 4 do RGIT), cuja pena cumpriram, são ainda solidariamente responsáveis pela multa em que a sociedade, pela prática do mesmo crime, também ela, foi condenada, é inconstitucional por violação do princípio constitucional referido e dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.
4. Termos em que deve negar-se provimento ao recurso.
…».
3. Os recorridos, apesar de notificados, não apresentaram contra-alegações.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
4. Constitui objeto do recurso de constitucionalidade a norma constante do artigo 8.º, n.º 7 do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), cuja redação é a seguinte:
Artigo 8.º
(Responsabilidade civil pelas multas e coimas)
1. Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas coletivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis:
a) Pelas multas ou coimas aplicadas a infrações por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa coletiva se tornou insuficiente para o seu pagamento;
b) Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento.
[…]
7. Quem colaborar dolosamente na prática de infração tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infração, independentemente da sua responsabilidade pela infração, quando for o caso.
8. […].
Pretende o recorrente ver apreciada a (in)constitucionalidade da referida norma, tendo em conta os parâmetros constitucionais contidos nos artigos 13.º, n.º 1 (princípio da igualdade), 18.º, n.º 2 (princípio da proporcionalidade), 29.º, n.º 5 (proibição de mais que um julgamento pela prática do mesmo crime) e 30.º, n.º 3 (intransmissibilidade da responsabilidade penal), todos da Constituição da República Portuguesa.
Vejamos.
5. Relevam para apreciação das enunciadas questões, os seguintes factos:
5.1. No Tribunal Judicial da Figueira da Foz (1.º Juízo), no âmbito do processo n.º 1/09.3IDCBR, em 24 de março de 2010, foi proferida sentença penal condenatória, cuja decisão é do seguinte teor:
«…
Nestes termos o Tribunal julga a acusação totalmente procedente e em consequência decide:
1. Condenar o arguido B. por crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.ºs 1 e 4 do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho, na pena de 200 dias de multa, à razão diária de 3 euros, o que perfaz o montante de 600,00 € a que corresponde subsidiariamente 133 dias de prisão;
2. Condenar o arguido C. por um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.ºs1 e 4 do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho, na pena de 200 dias de multa, à razão diária de 2,50 euros, o que perfaz o montante de 500,00 €, a que corresponde subsidiariamente 133 dias de prisão;
3. Condenar a arguida “A. Unipessoal, Lda” por um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 7.º, 12.º, n.º 3, 105.º, n.º 1 e 4 do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho, na pena de 400 dias de multa, à razão diária de 5 euros, o que perfaz o montante de 2.000 €;
…».
5.2. O Ministério Público, não tendo a sociedade arguida procedido ao pagamento da multa em que havia sido condenada, formulou, em 24.03.2011, promoção em que concluiu da seguinte forma:
“...
Face ao que acaba de se expor e tendo em consideração, como já supra se referiu, que os responsáveis da sociedade arguida B. e C. foram condenados, nos presentes autos, como coautores do crime de abuso de confiança fiscal, juntamente com a sociedade arguida, resta concluir que a norma acabada de analisar é aplicável ao caso vertente.
Nestes termos promovo em conformidade com o disposto no artigo 8º, nº 7, do RGIT, se considerem B. e C. solidariamente responsáveis pelo pagamento da multa a que a sociedade “A., Lda” foi condenada, no valor total de € 2 000,00 (dois mil euros), determina-se que os mesmos procedam ao pagamento de tal quantia, em prazo a fixar.
...”. (sublinhado nosso)
5.3. Sobre tal promoção veio a recair, em 9 de maio de 2011, decisão judicial em que, se proferiu a seguinte decisão:
“...
Em face do exposto, e nos termos do artigo 204º da Constituição da República Portuguesa, recuso a aplicação do artigo 8º, nº 7 do Regime Geral das Infrações Tributárias (fls. 112-113), aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de junho, na concreta situação dos autos, declarando-a inconstitucional, na aplicação suscitada, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, contidos nos artigos 13º, nº 1 e 18º, nº 2, e das normas que proíbem o duplo julgamento criminal e a transmissibilidade da responsabilidade penal, vertida nos artigos 29º, nº 5 e 30º, nº 3, todos da Constituição da República Portuguesa.
Consequentemente, indefiro o promovido a fls. 245.
...”. (sublinhado nosso)
5.4 Nessa mesma decisão judicial, deixa-se explícito que:
“...
Em terceiro lugar, é substancialmente diferente o facto “imputado” àqueles que se veem vinculados pela obrigação de pagamento. Enquanto que, nos casos do nº 1 do artigo 8º do RGIT, se trata de lhes imputar a falta de pagamento, nos casos do nº 7 trata-se de lhes imputar a prática (ou pelo menos colaboração na prática) da infração cuja consequência é o pagamento da multa ou coima.
À primeira vista, poderia dizer-se que esta seria a “diferença que faz a diferença”, permitindo que o mecanismo de responsabilização escape à censura constitucional. Isto porque, no caso do nº 7 do artigo 8º do RGIT, o facto censurável está na própria infração, o comportamento doloso é precisamente aquele que se quis punir. Ora, para quem busca, como fundamento do mecanismo de responsabilização pelo pagamento da multa, um juízo de censura, não haverá “melhor” do que encontrar a conduta que se criminalizou.
Sucede que este argumento se abre – pelo menos à luz de casos como o dos presentes autos – a uma crítica muito simples: por esse concreto facto, já os agentes foram punidos.
Dito de outro modo, se o legislador constrói uma reação ao facto ilícito, compreende-se que – com as limitações que se assinalaram e que não foram respeitadas no texto da lei – escolhendo como tal facto o não pagamento de multa e encontrando como responsáveis determinadas pessoas, faça recair sobre estas, numa mistura de garantia e punição, a consequência do pagamento.
Mas se escolher como facto ilícito a colaboração dolosa na infração, independentemente da culpa na falta de pagamento (é assim que se constrói o nº 7 do artigo 8º do RGIT), então a obrigação de pagar a multa surgirá sempre como consequência da prática do crime e apenas dela.
Quando, em casos como o dos autos, os visados pela norma foram já condenados pela prática do crime e tiveram a sua pena concretamente determinada, não se vê como poderá fazer-se duplicar a consequência da prática do crime sem violação do princípio ne bis in idem. Substancialmente, estar-se-á simplesmente a fazer recair sobre o arguido uma segunda consequência pela prática da infração. Este teria, assim, pelo tribunal, definida a punição da prática do crime – digamos assim – na sua base, ou no seu mínimo, à qual eventualmente se aditará uma outra, na hipótese de a coarguida não pagar a multa, determinada esta segunda consequência nos termos constitucionalmente intoleráveis já realçados. Tudo funciona – insiste-se – substancialmente como uma segunda condenação, sem ajustamento possível da pena.
Em suma, a deslocação do epicentro da ilicitude do nº 1 para o nº 7 do RGIT torna este menos sólido nos seus fundamentos, porque do primeiro pode ainda dizer-se que o legislador encontrou uma diferente ilicitude, que permite escapar à censura da violação do mencionado princípio.
...”.
6. O Tribunal Constitucional já se pronunciou, por diversas vezes, relativamente ao artigo 8.º, n,º 1, alíneas a) e b), do Regime Geral das Infrações Tributárias, e, bem assim, em relação à correspondente norma do artigo 7.º-A do Regime Jurídico da Infrações Fiscais Não Aduaneiras, na medida em que deles resulta uma responsabilidade subsidiária para os administradores, gerentes ou outras pessoas que exerçam funções de administração em sociedades comerciais pelas coimas aplicadas em processo contraordenacional por factos praticados no período de exercício do cargo ou por factos anteriores «quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa coletiva se tornou insuficiente para o seu pagamento».
Este Tribunal, sem embargo da divergência jurisprudencial ao nível das pronúncias em Secção, quanto a tal matéria, decidiu em Plenário, designadamente, no Acórdão n.º 437/2011 - «… não julgar inconstitucional o artigo 8.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT, quando interpretado no sentido de que consagra uma responsabilidade pelas coimas que se efetiva pelo mecanismo da reversão da execução fiscal, contra gerentes ou administradores da sociedade devedora. …» -, e, bem assim, no Acórdão n.º 561/2011 - «… não julgar inconstitucional a norma do artigo 7.º-A do Regime Jurídico das Infrações Fiscais Não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90 de 15 de janeiro, na parte em que se refere à responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes pelos montantes correspondentes às coimas aplicadas a pessoas coletivas em processo de contraordenação fiscal. …» - (ambos os acórdãos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Nos citados acórdãos, para alcançar tal resultado, perfilha-se, para além do mais, o entendimento de que a responsabilidade prevista naqueles preceitos legais é a responsabilidade civil delitual ou aquiliana por facto próprio dos chamados – gerentes, administradores e outros -, ainda que a título subsidiário, não prescindindo, portanto, da verificação dos respetivos pressupostos gerais de tal espécie de responsabilidade, ou seja, como no primeiro se deixa referido expressamente, « …são chamados , a título subsidiário, na exata medida do dano que produziram à Administração Fiscal ao terem impossibilitado, pela sua administração o pagamento das coimas devidas», afastando-se, por inadequada, a convocação de qualquer dos parâmetros contidos nos artigos 30.º e 32.º da Constituição.
Todavia, no n.º 7 do artigo 8.º do RGIT, donde é extraída a norma aqui em causa, prevê-se não uma responsabilidade subsidiária mas sim solidária, determinando-se em tal preceito legal que «[q]uem colaborar dolosamente na prática da infração tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infração, independentemente da sua responsabilidade pela infração, quando for o caso» (sublinhado nosso), donde se conclui que a mesma pessoa pode responder autonomamente e a título pessoal pela infração por si cometida e pela qual seja punido e, bem assim, responder solidariamente pela mesma infração cometida, também, pela pessoa coletiva e em função da qual esta venha a ser punida.
Haver-se-á, assim, de ter em conta a especificidade do presente caso relativamente àqueles que foram objeto de análise e decisão nos Acórdãos n.º 437/2011 e 561/2011, especificidade essa que obsta, desde logo, à transponibilidade da jurisprudência neles firmada para o presente caso, porquanto aqui está em causa uma responsabilidade solidária do gerente relativamente a infração tributária cometida por pessoa coletiva, que já não uma mera responsabilidade subsidiária.
Todavia, sobre tal questão de (in)constitucionalidade da norma extraída do artigo 8.º, n.º 7, do RGIT já o Tribunal Constitucional se pronunciou no seu Acórdão n.º 1/2013 (Processo n.º 373/2012 – 3.ª Secção), considerando que “a imposição de uma responsabilidade solidária a terceiro para pagamento de multas aplicadas à pessoa coletiva, quando ele não possa ser corresponsabilizado como coautor ou cúmplice na prática da infração (...) configura uma situação de transmissão da responsabilidade penal, na medida em que é o obrigado solidário que passa a responder pelo cumprimento integral da sanção que respeita a outra pessoa jurídica”. No entanto, visto que, atenta a factualidade vertida no caso, a responsabilidade solidária do gerente acrescia à responsabilidade própria decorrente da sua comparticipação na prática da infração, o Tribunal concluiria que em causa estaria, já não uma situação de transmissão de responsabilidade penal, mas a violação do princípio do ne bis in idem, consagrado no n.º 5 do artigo 29.º da CRP.
7. Ora, não há dúvida que o dispositivo vertente – o n.º 7 do artigo 8.º, do RGIT – consiste em mais um caso de extensão da responsabilidade sancionatória em que venha a incorrer a pessoa coletiva a outros sujeitos jurídicos, não estando em causa a mera extensão da responsabilidade ressarcitória pelo pagamento de multas ou coimas. Porém, desta feita não é possível atacar o preceito pelo facto de este corresponsabilizar outras pessoas (humanas ou jurídicas) independentemente da sua participação na comissão da infração em causa, visto que aquele exige uma “colaboração dolosa” do agente nessa comissão, ou, por outras palavras, a ativação da responsabilidade penal/contraordenacional do “devedor solidário” está dependente da colaboração deste na prática da infração (cfr. o Acórdão n.º 481/10, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Tal não obsta a que se ergam ao artigo 8.º, n.º 7, do RGIT outros obstáculos, maxime, outras garantias do processo penal, tais como o princípio da pessoalidade das penas, dedutível a partir do artigo 30.º, n.º 3, da CRP. Doutrina e jurisprudência confluem no sentido de extrair deste normativo a proibição de que “a pena recaia sobre uma pessoa diferente da que praticou o facto que lhe serve de fundamento” (cfr. o Acórdão n.º 337/03, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, e Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed. revista, Coimbra, 2007, p. 504).
Aliás, como é consabido, «…[a] verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside efetivamente numa incondicional proibição do excesso; a culpa não é o fundamento da pena, mas constitui o seu pressuposto necessário e o seu limite inultrapassável: o limite inultrapassável por quaisquer considerações ou exigências preventivas – sejam de prevenção geral positiva de integração ou antes negativa de intimidação, sejam de prevenção especial positiva de socialização ou antes negativa de segurança ou neutralização. …» (cfr. J. Figueiredo Dias, Direito Penal, Tomo I, 2.ª edição, páginas 82 e 83).
As sanções penais têm uma natureza pessoalíssima, daí defluindo que a medida de tais sanções, assim como a própria moldura sancionatória que as baliza, há de permitir, sob pena de subversão completa daquela natureza, a valoração de fatores pessoais do agente e da sua conduta culposa (cfr., neste sentido, o Acórdão n.º 481/10, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Pois bem, o artigo 8.º, n.º 7, do RGIT determina a responsabilidade sancionatória de quem tenha colaborado dolosamente na prática da infração, resultando quer a moldura sancionatória, quer a medida de tal responsabilidade, de critérios estranhos à conduta dos sujeitos aí responsabilizados, ou, pelo menos, de critérios que não permitem de todo respeitar a natureza pessoal e específica já assacada às sanções penais.
Daí que se haja de concluir pela inconstitucionalidade do preceito em causa, por violação do princípio da pessoalidade das penas.
III. Decisão
Nos termos supra expostos, decide-se:
a) - julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 30.º, n.º 3, da Constituição, a norma do artigo 8.º, n.º 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias, na parte em que se refere à responsabilidade solidária dos gerentes e administradores de uma sociedade que hajam colaborado dolosamente na prática de infração tributária pelas multas aplicadas à sociedade.
b) – negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Lisboa, 28 de maio de 2013.- José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Maria João Antunes (com declaração) – Maria de Fátima Mata-Mouros (vencida de acordo com a declaração junta) – Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei o julgamento de inconstitucionalidade da norma em apreciação. O meu julgamento assenta no princípio da pessoalidade das penas, consagrado no artigo 30.º, n.º 3, da Constituição, enquanto proibição de que a «a pena recaia sobre uma pessoa diferente da que praticou o facto que lhe serve de fundamento» (Acórdão n.º 337/2003). O que tem refração, segundo Gomes Canotilho/Vital Moreira, na extinção da pena e do procedimento criminal com a morte do agente, na proibição da transmissão da pena para familiares, parentes ou terceiros e na impossibilidade de sub-rogação no cumprimento da pena (Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., Coimbra Editora, 2007, anotação ao artigo 30.º, ponto IV.). Neste sentido, o princípio da pessoalidade das penas autonomiza-se do princípio da culpa (não há pena sem culpa nem pena superior à culpa).
É a impossibilidade de pagamento da pena de multa por um terceiro – uma das refrações do princípio – que faz dela uma autêntica pena criminal e não um mero direito de crédito do Estado contra o condenado, o que garante a eficácia político-criminal desta sanção na proteção de bens jurídicos constitucionalmente protegidos (sobre isto, Figueiredo Dias, Direito penal português. As consequências jurídicas do crime, Coimbra Editora, reimpressão, § 121 e ss.). Esta razão vale também quando a pena de multa seja aplicada a uma pessoa coletiva.
Maria João Antunes
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencida pelos seguintes fundamentos:
1. Pelo presente acórdão o Tribunal Constitucional julga inconstitucional a norma do artigo 8.º, n.º 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias, “na parte em que se refere à responsabilidade solidária dos gerentes e administradores de uma sociedade que hajam colaborado dolosamente na prática de infração tributária pelas multas aplicadas à sociedade”, por violação do disposto no artigo 30.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
Da fundamentação do acórdão decorre que o parâmetro constitucional violado se traduz, concretamente, no princípio da pessoalidade das penas, dedutível a partir do artigo 30.º, n.º 3, da CRP. Este entendimento pressupõe, por conseguinte, a natureza penalmente sancionatória da comunicabilidade da responsabilidade pelo pagamento da multa estabelecida no artigo 8.º, n.º 7 do RGIT.
2. Entendo, todavia, que não será essa a melhor compreensão do preceito em referência.
Em primeiro lugar será conveniente lembrar que a norma em apreciação se insere no domínio do Direito Penal fiscal, área do Direito Penal secundário onde a empresa surge como sujeito privilegiado de imputação jurídica, convocando uma multiplicidade de agentes que concorrem na realização da infração. Ora, no domínio da responsabilidade sancionatória das pessoas coletivas não é diretamente transponível o princípio constitucional da intransmissibilidade da responsabilidade penal. Este princípio, relativamente a pessoas individuais, assenta na ideia da pessoalidade da culpa, que não é possível aplicar às pessoas coletivas.
3. De todo o modo, a comunicabilidade da responsabilidade prevista na norma em análise não se apresenta como uma medida sancionatória de natureza penal.
O regime de comunicabilidade da responsabilidade pelo pagamento de multa constitui, de há muito, regra no direito penal secundário. Já mesmo antes da consagração da responsabilidade criminal das pessoas coletivas no Código Penal de 1982, era possível encontrar em legislação de direito penal secundário, normas com estrutura equivalente à ora em análise, estabelecendo a responsabilidade solidária da pessoa coletiva pelas multas aplicadas aos seus representantes ou empregados (v. artigo 4.º do Decreto-Lei 31 328, de 21 de junho de 1941). A vigência de tais normas em época anterior à previsão da responsabilidade penal das pessoas coletivas não se compadece com a atribuição de outra natureza, que não seja a meramente civil, à referida obrigação.
É certo que no caso em presença estamos perante a responsabilização dos gerentes de uma pessoa coletiva pela multa aplicada pela infração por esta cometida. A razão de ser da responsabilidade solidária contemplada continua, porém, a ser a mesma: a garantia pelo pagamento do quantitativo monetário da multa.
4. Reportando à norma ora em apreciação importa começar por delimitar a dimensão da responsabilidade solidária nela estabelecida. Esta dirige-se, tão-só, ao pagamento da quantia monetária em concreto (e de natureza fungível) que foi atribuída à pena de multa aplicada ao agente. A comunicabilidade da responsabilidade não se estende ao substrato penal da multa, enquanto teor valorativo da pena criminal que encerra o dever de realizar as finalidades das penas, e nessa medida se apresenta com natureza “pessoalíssima” (como se refere no acórdão), não podendo, por conseguinte, ser transmissível ou comunicável.
E sendo assim, a solidariedade passiva prevista na norma em análise não traz, em si, implicada qualquer deturpação da “pessoalidade” da responsabilidade penal. Com efeito, da referida obrigação solidária de pagamento da multa não decorre qualquer consequência de natureza estritamente penal. O obrigado solidário apenas responde pelo pagamento na medida do seu património. Se não tiver património para solver aquela garantia, não sofre qualquer sanção adicional, nem essa responsabilidade, de garante, é levada a inscrição no seu certificado criminal.
5. No domínio do Direito Penal secundário, não partilhamos da ideia de que a comunicabilidade da obrigação de pagamento da multa ao gerente da pessoa coletiva retira o caráter de pena às medidas sancionatórias que podem recair sobre as pessoas coletivas em consequência de um crime cometido em seu benefício, frustrando os fins do Direito Penal de proteção de bens jurídicos.
A realidade sociológica da empresa e a criminalidade fiscal e económica por ela gerada não respeitam necessariamente a lógica inerente à dogmática penal clássica. No ambiente peculiar da criminalidade de empresa não é possível afirmar que o legislador tenha menosprezado a ideia de expiação/ sacrifício inerente à aplicação de uma sanção criminal, degradando a sua dignidade penal, pelo simples facto de prever a comunicação ao gerente da responsabilidade pelo pagamento da multa.
O vínculo de representação existente entre o gerente e a sociedade afasta o comprometimento da dignidade penal decorrente da comunicabilidade da responsabilidade pelo pagamento da multa nos casos, como os abrangidos pela norma em referência, em que a pessoa singular colaborou dolosamente na prática da infração, incorrendo também ela em responsabilidade penal, a título individual, pelo mesmo crime. Longe de degradar a natureza sancionatória da pena em mera relação creditícia, a referida comunicabilidade concorre para assegurar a efetividade do seu cumprimento, na medida em que a pessoa singular/gerente se identifica com a pessoa coletiva/sociedade na entidade funcional que representam.
Sem descurar o património do Direito Penal, a comunicabilidade em referência encontra justificação nos deveres jurídicos de garante do gerente, bem como na presunção de benefício emergente das infrações cometidas.
6. Atendendo, assim, à natureza da obrigação decorrente da norma, não configurável como uma sanção penal, ela surge como instrumento adequado aos fins a que se destina: garantir o pagamento da quantia monetária em que a pessoa coletiva foi condenada, respeitando ainda o princípio da culpa quanto aos pressupostos da responsabilidade civil respetiva, uma vez que a colaboração dolosa do obrigado solidário é condição da atribuição da responsabilidade.
Considerando que a norma ora em apreciação se dirige apenas aos administradores ou gerentes (e não a outros agentes, como os trabalhadores ou a mandatários sem poderes de representação) da sociedade, na medida em que estes se identificam com a pessoa coletiva que representam, é de concluir ainda que a solidariedade no pagamento da multa surge igualmente como necessária para promover a autorresponsabilidade das entidades coletivas.
Finalmente, a regra das obrigações solidárias segundo a qual o obrigado solvente mantém direito de regresso contra o obrigado principal afasta o risco de desproporcionalidade na comunicabilidade desta obrigação.
Maria de Fátima Mata-Mouros